A Vinha do Senhor

Poucas culturas dependerão tanto de um trabalho carinhoso e delicado do homem e do clima como é o da vinha.

A Palestina, terra de vinhas — era famoso o vinho do Líbano (Os 14,8) e o de Jelbón, cerca de Damasco (Ez 27,18) —, ensinou Israel a apreciar o fruto da videira e a acarinhar um trabalho difícil que dependia muito do clima. Por isso, sempre a religiosidade antiga sempre se associou à misericórdia ou castigo de Deus: se havia vinho, graça de Deus; se a cultura era fraca, castigo divino.

Cultura preciosa e difícil, longa até, tinha qualquer coisa de misterioso. No mínimo, de diferente, percorrida da vinha à adega, ao bom vinho, sobretudo o velho e bem tratado (Is 26,6), o que «alegra o coração do homem», dizia o Salmista (104,15), o que tem «espírito», dizemos nós, sinal da alegria de Deus.

Por tudo isto, o Povo de Israel foi muito justamente considerado a Vinha do Senhor, como tão bela e poeticamente se exprimiu o Profeta Isaías: “A vinha do Senhor do Universo é a Casa de Israel e os homens de Judá serão a casta escolhida” (Is 5,7). Esta vinha, a Casa de Isarel, o Senhor a cultivou com carinho e atenção: mas não deu uvas boas. Ela era «a sua plantação preferida, “dela esperava o Senhor a rectidão, mas, afinal, só deu sangue derramado; esperava a justiça, e só deu gritos de horror» (Is 5,7).

Nesta altura do ano, a utilização destes textos bíblicos traduz a grande consonância existente entre a Liturgia e o ritmo da antiga (e ainda actual) vida rural e agrícola (europeia). Agora que, na Europa mediterrânica, onde foi criada a Liturgia, particularmente a romana, as uvas estão maduras e se fazem as vindimas, cascos e lagar já lavados e pessoal contratado ou, em muitos casos, “pessoal reunido” (familiares. amigos, turistas…), a vindima como que comunga, em zonas vinícolas, um aroma que anda no ar. E é a partir deste trabalho agrícola, neste momento o mais premente, que a Liturgia cristã arranca para a proclamação da Palavra.

É verdade que, se as vindimas são, no ritmo agrícola da vida rural, a última das grandes colheitas do ano (logo entrava o Outono e se iniciava um ritmo quotidiano mais pausado, que anunciava a chegada do Inverno), na nossa vida moderna e urbana, ao contrário, é o ano que começa: terminaram definitivamente as férias para todos, começaram as aulas e também o ano político, o judicial, o económico, o laboral, etc.

Com tudo isto, a Liturgia como que dá uma «guinada», perdoe-se-me o termo: depois desta temática da Vinha, todo o ambiente litúrgico se volta para os Fins, começa progressivamente a ser escatológico, num clima que se adensará e crescerá de intensidade até ao fim do ano litúrgico, que desembocará no Advento, o tempo por excelência da celebração da Escatologia.

Chegados aí – ao Advento – a Liturgia não mais abrandará a comandar e conduzir toda a vida eclesial, nomeadamente na sua vertente pastoral, até ao cume que é a Páscoa, que, por sua vez, tem no Pentecostes o seu clímax.

É importante, por isso, esta mudança temática que a Liturgia engrena por estas alturas de meados de Setembro/inícios de Outubro. Fá-lo em consonância com os ritmos rurais e agrícolas da sociedade tradicional em que foi criada a Liturgia romana ou, no caso, mediterrânica: quando o seu ritmo abrandava e mais disponíveis estavam as pessoas, fim do Outono e Inverno à porta, acelerava-se a Liturgia festiva (o Natal e, pouco depois, a Páscoa).

Embora de modo completamente diferente, também assim acontece na vida urbana. Após a grande dispersão e mobilidade das férias de Verão, as comunidades começaram já a reencontrar-se, as Assembleias a repôr-se, e é grande em todos a vontade de recomeçar…

“Até os que chegam mais tarde, recebem tanto como os primeiros!”.

Arlindo de Magalhães, 24 de Setembro de 2017

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