O outro

Ann Lukesh

A lepra era considerada na Bíblia e no Judaísmo como a mais terrível doença que podia afetar um homem. Daí o cuidado em evitá-la, excluindo o leproso da comunidade e destruindo tudo o que pudesse ter a sua mancha. A legislação de Moisés sobre a lepra não tinha preocupações terapêuticas; visava apenas defender e preservar a comunidade de qualquer contaminação. Segundo a Lei, os leprosos tinham de andar com as vestes rasgadas, os cabelos soltos, e a cara tapada; ao pressentirem alguém aproximar-se, eram obrigados a gritar “Impuro!”, a fim de que os sãos se afastassem. Estavam rigorosamente proibidos de entrar em Jerusalém ou nas aldeias e cidades. Fora disso, podiam viver onde quisessem, mas fugindo sempre do contacto com os sãos. Em muitos lugares havia uma espécie de refúgios, cidades dos mortos, para onde os leprosos eram enviados, sem retorno, bem como, mais tarde os cristãos atacados pela doença, já devidamente sacramentados com a então dita extrema unção!. Eram na prática mortos-vivos. 

Não podemos, pois, entender esta palavra lepra no mesmo sentido que ela tem hoje na ciência médica. O facto de os leprosos serem obrigados a mostrar-se ao sacerdote indica também que, por detrás da lepra, havia forças misteriosas que era preciso esconjurar. Israel, o povo de Iavé, tinha de ser um povo puro. A teologia rabínica considerava que a era um castigo de Deus. Daí a pergunta que um dia os discípulos fizeram a Jesus: “quem pecou, ele ou os pais?” (Jo 9,2)

Isto durou Idade Média dentro até quase ao nosso tempo: não sei se alguém viu um curioso filme Molokai, terra maldita, uma ilha perdida no Pacífico onde se recolhiam os leprosos expulsos da sociedade europeia. Conhecida a doença só praticamente no fim do século passado, o seu diagnóstico, que ainda hoje é relativamente difícil, era mesmo assim muito complicado. E, como sempre acontece nestes casos, quando uma coisa se não conhece com precisão, alarga-se-lhe o quadro. Por isso, no mundo antigo, leproso era todo aquele que tivesse uma qualquer dermatose (doença da pele). Se, na Antiguidade, nada mais lhe restava senão ser apartado da sociedade e esperar a morte perdidos pelos montes, na Idade Média passou a ser acolhido numa leprosaria ou gafaria (gafo era um outro nome dado ao leproso), construída normalmente com dinheiro de gente rica deixado em testamento para essa “obra de caridade”). Onde haja uma ponte antiga ou medieval, Alfena ou Lagoncinha, por exemplo, lá está sempre uma capela de S. Lázaro, o padroeiro destes doentes, a dar notícia de uma antiga gafaria.

Lázaro, o pobre da parábola do rico (Lc 16,19-31) que tinha o corpo coberto de chagas, portanto leproso, tornou-se S. Lázaro e acabou por tornar-se o advogado dos doentes leprosos. Daí os lazaretos (também ditos leprosarias ou gafarias) construídos ao lado das poucas pontes que existiam e os lazarentos! S. Lázaro, portanto, o patrono dos excluídos, dos leprosos, mas também dos padeiros!, ou não é verdade que eles estão de algum modo excluídos da sociedade, até trabalham de noite e dormem de dia! Aqui está. Da doença à exclusão!

Lembro-me muito bem. Na década de 1950, mesmo em frente da casa dos meus Pais, morava a Ti Rosa Lopes com um sobrinho seu, já adulto e leproso. Nós não podíamos tocar-lhe…, fugíamos. Um dia, inesperadamente, aparece uma carrinha, querem pendê-lo, não conseguem apanhá-lo nem a pontapé, pois o queriam levar para a leprosaria Rovisco Pais, da Tocha, o que conseguiram de uma maneira desumana e bestial. Nós ficámos a chorar. Pouco tempo à frente disseram-nos que o Francisco tinha morrido. E nós, miúdos, voltámos a chorar.

Por tudo o que conto, pouco a pouco nasceu nas populações o sentimento de defesa do contágio e a atitude da exclusão do que não é como nós. E isto foi terrível; isto é terrível, ontem como hoje. 

Nada disto é novo. Excluídos e a excluir foram, ao tempo, os cátaros e todos os dissidentes, heréticos ou não, queimados vivos quantos!, os defensores da pobreza e dos pobres a partir do séc. XII, etc., etc. E em Espanha, durante séculos, houve uma limpeza de sangue que era preciso provar, instrumento jurídico aprovado pela Igreja e pelo poder real que, até ao séc. XIX, excluía de muitas corporações e do território nacional os judeus e seus descendentes, os mouros e os penitenciados da Inquisição? 

E, em Portugal, como se passaram as coisas com a história dos cristãos-novos e cristãos-velhos, quando só estes tinham certos direitos que eram negados aos outros, muitas vezes apenas suspeitos que não conseguiam provar que não eram descendentes de judeus nem de mouros, o que, em definitivo tinha que ser feito até à sétima geração?

Um exemplo. Na vila que existiu ao lado da ponte de Canavezes onde houve uma capela de S. Nicolau e uma gafaria, os leprosos das leprosarias não podiam tomar banho nas caldas, tinham de o fazer à parte em duas tinas de pedra.

E como era no Estado Novo? Para ser funcionário público, por exemplo, e outros cargos, que era preciso fazer o juramento anticomunista? E na Igreja, como era? Não era preciso fazer (e eu fiz sem perceber o que fazia!) o juramento anti modernista? Não é verdade que foi tudo isto junto, toda esta mentalidade, que originou o holocausto antissemita dos nazis, o ódio entre palestinianos e judeus e vice-versa ou entre muçulmanos e europeus (cristãos)?

A Europa cristã teve sempre as suas lepras e os seus leprosos. Porque a mania da limpeza acabou, quantas vezes, a passar por cima de todas as exigências da liberdade, da igualdade e da fraternidade, para não falar nem da caridade nem do respeito mais liminar da dignidade e da sacralidade do Homem, exclusão social, marginalização social, xenofobia, racismo, sei lá que mais.

O Outro é sempre um perigo. Entre as nações (guerra quente ou guerra fria), na política, na economia, no comércio, na escola, o vizinho do lado, o tipo que vai à minha frente na estrada ou que vem atrás em cima de mim, o Outro não é meu irmão, é leproso, afaste-se e grite que é impuro, porque não tem nem direito nem saúde nem dinheiro, porque não é igual a mim e porque é diferente e perigoso por causa do que tem e do que pensa, é perigoso mesmo que eu saiba que ele é bom e que tem ideias e exatamente porque são as suas. Por essas e por outras é que Ele, comedor e bebedor, evidentemente leproso e amigo de mulheres e outras gentes de má vida, publicanos e pecadores, teve o fim que teve!

Unidade dos cristãos

Escola do Torne

Em 20 de Janeiro de 1981 — há 40 anos, portanto — fiz, pela primeira vez, uma homilia na igreja do Torne, na semana de Oração pela Unidade dos Cristãos.

Apresentei-me, dizendo assim: «Quantas vezes, desde miúdo, desci esta Avenida de Gaia e reparei nesta pequena igreja que sempre me foi dita sectária, se não pior! Mas hoje é possível, Irmãos! O Senhor fez maravilhas e a sua Obra é esta: subo a este púlpito não por favor ou deferência, mas porque estou em casa de Irmãos, e em casa de Irmãos eu sou Presbítero da Igreja de Deus.
E esta alegria que me enche quero testemunhar-vo-la porque é maior que eu, porque é fruto da Obra do Espírito de Deus».

Não me lembro já bem de como as coisas começaram. Lembro-me, sim, que um dia, não sei se atemorizado se atrevido, bati à porta do Rev.o Guedes Coelho, presbítero da Igreja do Torne, que eu não conhecia nem nunca tinha visto… e foi amor à primeira vista. Não recordo quanto tempo mediou entre o nosso primeiro encontro e o tal dia 20 de Janeiro de 1981. Mas o resto, daí prá frente, mais ou menos, muitos conhecem.

Eu disse, daqui mesmo, nesse dia:
«A Unidade é para a Igreja o que a Liberdade é para o Homem. Sem a Liberdade, o Homem está mutilado e oprimido; sem a Unidade, a Igreja está partida, fraturada, dividida nos seus membros. Mas, assim como o organismo reconstrói a unidade relativamente ao braço partido, consolidando-o e restituindo-lhe capacidades, assim a Igreja fraturada reconstrói a Unidade embora o seu refazer seja longo e doloroso (é talvez necessário pôr “gesso”!); mas a Unidade refaz-se. A Unidade é uma vocação da Igreja, é uma tarefa para a Igreja, tarefa e vocação de toda a Igreja, não só nem principalmente das hierarquias.

Porque construir a Unidade é ser fiel à vocação batismal, tanto quanto o perder a Unidade foi a consequência de processos históricos, e sempre mútuos, de pecado e infidelidade; construir a Unidade é ser fiel à vocação batismal: “procedei de um modo digno do chamamento que recebestes… suportando-vos uns aos outros no amor esforçando-vos por manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz” (Ef 4,1-3). Por isso, aquela palavra de Paulo “um só Senhor, uma só Fé e um só Batismo” (Ef 4,5) é a nossa condição mas também a nossa tarefa.

Por paradoxal que pareça, condição e tarefa. Condição porque efetivamente todos quantos estamos aqui reunidos em oração reconhecemos como Senhor unicamente a Jesus de Nazaré. Nesta fé nos reunimos, marcados que estamos pelo Batismo, o Sinal da Água e do Espírito. Mas é também a nossa Tarefa porque essa é a vontade do Senhor, “Que eles sejam um” (Jo 17,11)! Será que ele sabia que a unidade é quase sempre?, muitas vezes? algumas só?, um impossível? Como é no casal?, nas famílias?, nos grupos?, nas comunidades?, entre os amigos?, dentro da mesma nação e entre as nações? A unidade é um impossível?, é algo que necessariamente se perde?, ou algo que necessariamente se constrói? Se quereis a minha opinião, não sei. Mas julgo que é sobretudo algo que o homem constrói, ou algo com que o homem responde ao dom de Deus. Daqui a dificuldade da unidade, seja ela qual for. Só quem provou o amargo da desunião é capaz de saborear a unidade».

Passados 40 anos…

  1. “Sempre que dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20) foi o tema genérico da Semana de Oração que se celebrava naquele ano de 1981. Foi nisto que acreditámos, o Rev.o Guedes Coelho e eu. Não quisemos fazer nada de especial, muito menos dar nas vistas, mas no mínimo, rezar apenas o Pai-nosso em conjunto uma vez por mês. Se é muito, se é pouco…

2. “Também vós deveis lavar os pés uns aos outros” (Jo 13,14). Foi este grande gesto que Jesus assumiu com espanto repulsivo do próprio Pedro. Os modernos consideraram o lava-pés uma cerimónia da Semana Santa. Mas não. S. João conta que Jesus “deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos”, e Mateus, Marcos e Lucas acrescentam “fazei isto — o pão e o vinho — em memória de mim” (Mc 14,22; Mt 26,26; Lc 22,20).
Tudo isto diz da importância do lava-pés na memória das Igrejas. Na Eucaristia, sentados à mesma mesa, os Irmãos partiam e comiam o Pão e bebiam o Vinho, em memória de Jesus (Lc 22,19); mas lavar os pés uns aos outros, (isso sim!) é fazer o que ele fez e como ele fez.
Pensávamos chegar lá. Mas não: ainda andamos por cá.
O meu amigo Guedes Coelho morreu, andava eu por Espanha, soube-o muito mais tarde. Chorei-o por lá.

O sacrifício do tempo

Brian Kershisnik

Lembrarão todos o que disse aqui a semana passada: João, foi para o deserto, e o primo atrás dele …

… o deserto era, ao tempo, um lugar de rocha dura calcária, nem de areia sequer. Era a morada dos demónios (Mt 12,43) e o esconderijo de bandidos e piratas. Pode ser que Jesus por ali se tenha refugiado em busca de solitude e a fugir das grandes multidões (Mt 4,1). 

O certo é que João batizou Jesus. Uma vez batizado, o céu abriu-se-lhe e viu-se o Espírito a descer sobre ele e uma voz que, vinda do céu, dizia: “Este é o meu filho  

No dia seguinte, segundo o evangelista João – o primo – que agora se dirá “o Baptista”, ao ver Jesus, disse-lhe: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29).

Quem e porquê “Cordeiro de Deus”?

O cordeiro era, naquele mundo, naquele tempo e naquela cultura, um elemento muito importante.

Que belo era o animal dos muitos rebanhos que então havia, animal manso, bondoso e carinhoso, importante na vida e na alimentação; sem defesa, ou melhor, um desamparado, escolhia-se também para se comer e ser sacrificado, no Templo e na festa pascal, em pagamento a Deus de quanto se fazia contra ele, e agora pedia perdão. 

Este rito era tão importante que chegou ao dia de hoje, sobretudo na linguagem litúrgica (“Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós!”), na linguagem teológica (”Cristo, nossa  Páscoa foi imolado”  [1Cor 5,7]), e na arte sacra. Serão poucas as igrejas românicas, góticas e de toda a Renascença, até fins do séc. XVI, que não tenham pinturas ou esculturas do Cordeiro nas suas paredes e altares.

Depois, já depois da Renascença, não há nem cordeiros nem ovelhas nas igrejas, há pombas: esta igreja onde celebramos, construída já depois dos inícios do séc. XVI, em 1538, está cheia de aves (o artista desenhava mal as pombas)!

(podem ver ali uma pintura do Cordeiro de Deus, e as aves [pombas] na madeira dourada de todos os seus altares desta igreja) 

Pombas porquê? Era um animal belo, mais sobretudo no seu voo, e que ficava mais barato…! Afinal, não tinha Noé “soltado uma pomba para ver se as águas do dilúvio tinham já secado a superfície da terra?” (Gn 8, 8). E João Baptista, depois de batizar o primo, não viu ”o Espírito que descia do céu como uma pomba, a voar sobre ele”? (Jo 1,13). 

Os hebreus ofereciam sacrifício de um cordeiro “puro, sem manchas e sem defeito” a Deus, para remissão dos pecados. O sacrifício de animais era frequente entre vários grupos étnicos, em várias partes do mundo. 

Na Bíblia é referido, por exemplo, o caso de Abraão que, para provar a sua fé em Deus teria de sacrificar o seu único filho, imolando-o e queimando-o numa pira de lenha, como era costume para os sacrifícios de animais – o relato bíblico refere, contudo, que Deus não permitiu tal execução. 

A morte de Jesus Cristo, considerado pelos cristãos como filho unigênito de Deus, tornou estes sacrifícios desnecessários, já que sendo considerado perfeito o seu filho, sem pecado e tendo ele nascido de uma virgem por graça do Espírito Santo, era assim o amor de Deus para com a humanidade.

A Liturgia cristã, natalícia desde 25 de Dezembro, terminou já há oito dias; hoje é já Tempo Comum que só termina no final de Novembro. Daqui a nem dois meses, entre os meados de Fevereiro e Maio, o Tempo será Pascal (primeiro de preparação, e só depois de celebração).

Assim se entende a importância do calendário cristão:

1. O calendário que conhecemos e celebramos (!) não poderia ser melhor para o cristianismo. No tempo greco-romano quem mandava era o tempo e a agricultura… 

2. Mas o tempo cristão deixámo-lo morrer: o paganismo matou-o, foi por ele abafado.

3. Nós, os cristãos, poderemos continuar a festejar tempos velhos que deixámos calcar?, ou como haveremos de conseguir maneiras novas de celebrar o Natal e a Páscoa? Bastam as batatas e aquilo a que puseram o nome de prendas?

Batismo de mudança

Jerzy Nowosielski (Polish, 1923–2011), The Baptism of Jesus Christ in the Jordan, 1964

A pregação profética de João, um pouco mais velho que seu primo Jesus, pôs tudo de pernas para o ar, sobretudo do Templo e, de cima para baixo, da Galileia até à Judeia.

Algo acontecia. Um pouco o mesmo que agora vivemos, com a pandemia Covid-19: mesmo sem querer é necessário mudar tudo: os costumes, a forma de vida, costumes e regras de conduta, alterar não só a vida de algumas pessoas, mas de todas as comunidades e mesmo de todas as sociedades. 

Começa-se a sentir que é preciso mudar, reformar, recriar… Eu fui professor de Teologia Pastoral …, e começam já a ser bastantes e não só de perto, antigos alunos e colegas que me pedem que os ajude a perceber que fazer…

João… não vinha do Templo, apesar de seu Pai, Zacarias, ser um sacerdote do Templo (Lc 1,57). João não quis servir o Templo. Foi para o deserto e viveu ali “até se apresentar a Israel” (Lc 1,80). Portanto, João não tinha nada que ver com o Templo, nem com os sacerdotes, nem com o sagrado. Deus enviou-o a ele para preparar a Boa Notícia, o Evangelho.

E o povo respondeu ao chamamento de João. Aproveitou as águas do rio Jordão e arranjou um gesto real, mas simbólico: meter-se na água, todo ele e sair logo. Era um morrer e nascer de novo

Aparece Jesus, a somar essa massa de toda a gente pecadora, desorientada, a quem João chamava raça de víboras (Lc 3,7b). Jesus meteu-se na fila dos pecadores, misturou-se com o povo, como mais um de tantos (Fl 6,7-9). Digamos que Jesus incarnou no humano, entre a massa da gente, entre o povo e como o povo. Este foi o ponto de arranque da grande lição que Jesus nos deu: o mais humano revelou-nos o divino.

Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas (Mt 3, 13…, Mc 1,9… e Lc 3,21) registam o que aconteceu. 

«Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João, no Jordão. Quando saía da água, viu os céus abertos e o Espírito descer sobre ele como uma pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu filho muito amado!» (Mc 1,9-11).

Quando Jesus saiu das águas batismais do rio Jordão o céu abriu-se, e desceu uma pomba. Marcos filmou: «Quando saía da água viu os céus abertos e o Espírito descer sobre ele, como uma pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu filho muito amado, em ti pus o meu encanto”» (Mc 1,9-11). Era o Espírito Santo!, parecia uma pomba! (Mt 3,16). 

A pomba é uma ave muito simples e bela. Quando eu andava na escola, em Balteiro, não parei enquanto o meu Pai não me conseguiu uma pomba… A minha professora deu-ma, o meu pai tratou de um pombalinho. Necessita de muitos cuidados…

A pomba era no mundo antigo uma coisa…! A beleza do seu voar!

A pomba acabou por parecer àquela gente Deus a descer céu abaixo, o Espírito Santo!

«Sobre o reino repousará o espírito do Senhor» (Is 11,2): «O espírito de Deus está sobre mim» (Is 61,1), sempre tudo representado por uma pomba. Logo no fim do dilúvio, a pomba fora verificar se as águas ainda cobriam a terra! (Gn 8,8…)…

Este pensar da sacralidade da pomba chegou à liturgia e à arte sacra e mesmo à linguagem simbólica do nosso tempo, até a teológica. 

Mas voltemos ao encontro de Jesus com João nas bordas do Jordão. Depois de João haver batizado o primo Jesus, depois de todos perceberem que tinha «descido o Espírito Santo!, parecia uma pomba!» (Mt 3,16), houve logo problemas entre os seus discípulos: «levantou-se uma discussão entre os discípulos seus e os de João e um outro judeu, acerca dos ritos de purificação» (Jo 3,25). Mas João não se incomodou que algum(s) dos seus discípulos o tenham abandonado e seguido no grupo de Jesus (Jo, 3,25-26).

Foi então que se aclarou quem era João: «Eu não sou o Messias, mas apenas o seu enviado à frente» (3,28). 

Resumindo. A Jesus, tal como a seu primo João, não lhe interessou o Templo e seus sacerdotes, nem os rituais, os sacrifícios, as leis e as normas. Para Ele era claro que o mais preciso era ajudar os que, pela honestidade e até pelo sofrimento, lutam a encontrar o caminho que nos leva a Deus.

O grande mistério

Etiópia, celebração da Epifania

No princípio, logo depois da Ressurreição, era tudo muito simples: os seguidores de Jesus (ainda se não chamavam cristãos, só mais tarde, Act 11,26) “eram uma eclesía (quer dizer: um grupo, uma assembleia) de discípulos fiéis ao ensino dos Apóstolos, que, sempre que se reuniam, um deles levava um pão que partia depois e distribuía por todos, e, ali juntos, todos comiam um naco, tal como Jesus lhes disse — “fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Depois oravam, recordavam… (Lc 22,12.19).

Certamente, isto acontecia quase sempre em casa de um deles, na sala de cima. 

Mas, quase logo, este grupo (esta eclesía – assembleia, palavra que depois daria também igreja) se alargou. Rapidamente chegados a Antioquia (1.500 Kms), por exemplo, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de cristãos (Act 12,25).

Quer isto dizer que, primeiro em Jerusalém, mas estendendo-se logo por todos os lados da Cidade Santa, e por todo o mundo grego, rapidamente cristãos chegaram a Roma, a capital do império romano. 

Entretanto nascera já também uma festa a celebrar a epifania (isto é,a manifestação) do Filho de Deus que “habitou entre nós”, da luz que “resplandeceu nas trevas … e nós vimos a sua glória” (Jo 1,14). 

Mas o primeiro cristianismo, oriental, correu também para o mundo romano.

Sabemos pelos evangelhos que o nascimento de Jesus andou cheio de um maravilhoso maravilhoso. Assim, “Dia de Reis” é uma das festas tradicionais maiores celebrada em todo o mundo católico. Neste dia comemora-se a visita de um grupo de Reis Magos (Mt 2 1 -12), vindos do Oriente, para celebrar a “epifania do Senhor”, ou seja, o aparecimento, o nascimento de Jesus, o Filho de Deus, por Ele enviado para a salvação da humanidade (os reis magos referem uns sacerdotes persas que se dedicavam à astrologia, ciência secreta que gerava adivinhos, profetas videntes…).

Portanto, a solenidade da Epifania oriental fixou-se no dia 6 de Janeiro, “Dia de Reis”, na que se tornou uma das festas tradicionais maiores de todo o mundo. “Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, vieram do oriente uns magos a Jerusalém, perguntando: Onde está aquele que nasceu Rei dos Judeus? É que nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo” (Mt 2,1-2).

Seguiram uma estrela e, mostrando assim ao mundo o cumprimento da profecia de séculos, chegando ao palácio do rei Herodes, de surpresa e perguntando “pelo Messias, o recém-nascido rei dos judeus”.

A Bíblia diz que os magos continuaram a caminhar até a “casa (onde) viram o menino com Maria sua mãe”. Adoraram então o Messias, e entregaram-lhe os presentes: ouro, incenso e mirra. O ouro, significa a realeza de Jesus; o incenso, a sua essência divina e a mirra, a sua essência humana. 

Por tudo isto, no Oriente, celebrava-se o Grande Mistério do nascimento do Senhor: ele é o “Enviado do Pai” (Gal 4,4), o Senhor, Messias e Cristo, enviado a todas as gentes da Terra, no dia 6 de Janeiro… Portanto: a Oriente, o mistério…

Em Roma, porém, os cristãos romanos do Ocidente decidiram celebrar o nascimento de Jesus noutro dia, naquele em que os romanos celebravam já, desde há muito, uma grande festa pagã, o Solstício de Inverno (24-25 de Dezembro), dia em que, no seu movimento aparente, o sol atinge a sua distância máxima da terra: era a festa do deus pagão Sol invencível, substituído então pelo Deus, Sol da justiça (Profeta Malaquias 4,2), do Sol nascente (Zc 3,8), o nosso Rei (Is 33,22), numa palavra, o rei de toda a terra (Zac 14,9).

Mas o Mundo grego rapidamente chegou ao Ocidente, no seu extremo peninsular, Ampúrias: um centro comercial criado pelos comerciantes gregos na Península Ibérica (acima de Girona, à sua direita, junto ao mar). Desta cidade restam ainda hoje ruínas monumentais que nos explicam porquê, na Espanha, ser o 6 de Janeiro a data da festa natale não a de 25 de Dezembro) a maior, e com muitas prendas, a exemplo dos Reis Magos que ao menino “entregaram os seus presentes, abrindo seus cofres“ (Mt 2,11).

Os evangelhos não dizem nada sobre a data do seu nascimento, não têm nada de rigor histórico. Esforçam-se por explicar o mistérico do que se passou. 

Claro que a imaginação popular colocou depois em cena toda uma série de pormenores que não constam: a gruta, o boi e a vaquinha (na antiguidade eram sempre os animais que aqueciam os humanos, e por isso as cortes do gado estavam sempre situadas por debaixo dos lugares de dormida); mas nada disso pertence ao sóbrio relato de Lucas. Foi sobretudo a imaginação dos evangelhos apócrifos que adornou com detalhes a singeleza do texto evangélico. Tudo isto levou a que desde o séc. IV que os cristãos tivessem decidido celebrar o nascimento de Jesus no dia em que os romanos festejavam o Solstício de Inverno (24-25 de Dezembro), substituindo-a pela festa do deus cristão, o Sol invencível

O Natal surgiu, portanto, na tentativa de cristianizar esta festa do solstício de Inverno pagão, já que o Cristo tinha sido chamado o sol da justiça (Mal 4,2), o astro que nasce do alto (Lc 1,78), a luz que se revela às nações (Lc 2,32). 

A sua primeira mensagem é a da humanidade do nosso Deus: o mistério de um Deus tornado ser humano. É a festa do otimismo cristão.

Família

Este foi um ano diferente de todos os outros. Não podemos pensar a família sem ser à luz de todas as tribulações pelas quais temos passado.

Família são os que, de um momento para o outro, ficaram fechados em casa, juntos muito mais horas do que até então era habitual. Com as aulas online e o teletrabalho, 24 horas por dia no mesmo sítio, com as mesmas pessoas, com quem só estávamos tanto tempo juntos ao fim de semana e nas férias. E passar 15 dias juntos nas férias não é, de todo, o mesmo que estar 15 dias seguidos fechados em casa. E quantos 15 dias se passaram! Com Setembro, e o regresso à escola, a rotina assemelha-se mais ao que nós víamos como normal. Mas, ainda assim…

Família são os que visitávamos, com mais ou menos frequência. Os avós, principalmente. Mas também os afilhados e os padrinhos, os tios e os primos, e aqueles que, sem laços de sangue, se tornam mais família do que os parentes. De um momento para o outro são-nos tirados, porque não pertencem à nossa “bolha”, e as visitas, quando as há, sabem a transgressão.

Família são os que se reúnem para celebrar a fé. Foram meses de porta fechada. Meses difíceis para quem, como eu, encontra na Celebração Dominical a paz, o equilíbrio e a força para começar cada semana. A força que vem do estarmos juntos, em comunhão.

Um dia, quando regressava do trabalho, passei pelo Eufrázio no seu passeio. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Vi, naquele momento e naquele homem que caminhava solitário, toda a Comunidade, toda a família que há tanto tempo não via e que tanta falta me fez…

Família são as crianças que vi crescer aqui, na Catequese. Todos meus filhos, de uma certa forma. Ensinei-lhes a ligação entre o Natal e o solstício, entre a Páscoa e as fases da Lua. Mostrei-lhes Jesus enquanto homem, igual a nós, nosso irmão, que nos pede para nos amarmos uns aos outros. Mas como sermos amor em tempo de pandemia?… Ensinei-os a ver Deus no pôr-do-sol, nas estrelas, na brisa e nas ondas. E também dentro de nós. Mas, confinados, como ver Deus no próximo, de quem não nos podemos aproximar?…

Nada nem ninguém nos preparou para viver desta maneira, mas ainda assim vamos conseguindo. Porque em cada um de nós existe a capacidade de sermos bons irmãos, bons cristãos, bons amigos, de sermos boas pessoas e de termos a generosidade de olhar pelos outros, mesmo à distância. 

Pedimos-te Deus que olhes por nós e pelas nossas famílias e nos dês a coragem para ultrapassar as dificuldades porque Tu és o verdadeiro exemplo!

Ana Neves e Elsa Fernanda

Natal

Lucio Fontana

Foi maravilhoso para a Humanidade o que aconteceu na Galileia, a região dos galileus que, em Israel, se entendiam como os ignorantes e impuros, gente com quem os judeus se não se podiam relacionar. O desprezo dos antigos pelos galileus era tão forte que, no ano 362, o imperador romano Juliano (331-363), o último imperador pagão do mundo romano, numa carta dirigida ao presidente do Eufrates, Artabio, falou-lhe da “estupidez dos galileus”.

O que sucedeu na Galileia foi que o anjo Gabriel, enviado a Maria – a tal virgem que daria à luz um filho – … a dizer-lhe assim: Conceberás e darás à luz um filho a quem… Deus dará o trono de seu Pai David; ele reinará para sempre na Casa de Jacob e o seu reinado não terá fim (Lc 1,31-33). Depois disto, todo o Novo Testamento afirmaria repetidamente que Jesus é da descendência [e Casa] de David (Lc 2,4; Rm 1,3; Mt 1,20; Lc 1,27; 2,4; Ap 5,5; 22,16). 

Por isso ainda, quando ele nasceu, o Povo que andava nas trevas viu uma grande luz (Is 9,2). Mas os seus não o receberam (Jo 1,11b), embora ele fosse mesmo a Luz verdadeira que vinha ao mundo para iluminar todos os homens (Jo 1,9).

Foram poucos, de facto, os que se deram conta do que então aconteceu, sempre só os pobres, todos os mais andavam noutra

Alguns pobres pastores (Vamos a Belém ver o que aconteceu, Lc 2,15); os sempre misteriosos Magos, Simeão, o Velho (os meus olhos viram a salvação que trouxeste a todos os povos, Lc 2,30), e a mãe, ela sobretudo que, conforme tinha sido prometido a nosso Pai Abraão, o Altíssimo derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes, encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os de mãos vazias (Lc 52-53).

Paradoxalmente, este menino haveria de ser um sinal de contradição para muitos em Israel (Lc 2,34) e para muitos mais fora de Israel: lá e ao longe, então e hoje. Continua a sê-lo.

Chegámos ao Natal, estamos no Natal: a meia semana que ainda falta serve para nele nos mergulharmos ainda mais. 

Apesar de esta festa carregar ainda hoje — apesar da pantomina — muito da utopia da antiquíssima e pagã Festa dos Loucos, a verdade é que, para nós, cristãos, ela exprime aspirações muito profundas e muito sérias. Os primeiros cristãos souberam inventar o Natal do Sol da Justiça. E eu não me resigno à ideia de que os cristãos do meu tempo não sejam capazes de o celebrar Hoje, quando os Sinais dos Tempos são de dificuldade, que é o que mais acicata a esperança. 

Boas festas de Natal, mesmo coibidos pelas circunstâncias que nos envolvem!

— Foi na cidade de David que vos nasceu um Salvador, que é o Messias, o Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolvido em panos e reclinado numa manjedoura (Lc 2,11).

Mas… como foi isto possível? Como pôde Deus ter nascido? Recordo-me daquelas palavras emocionadas que o escritor cristão primitivo pôs na boca de José: “Como é possível? Como é possível ter forma de criança Aquele que criou todos os seres? Como pôde fazer-se pequeno na terra Aquele que é grande nos céus? Como pôde um estábulo conter aquele que contém todo o universo? Como podem estes bracitos ser envolvidos em panos, se é o seu braço que governa o céu e a terra? Como é isto possível?” (Analecta sacra 1,229). 

Começou aqui a magia do Natal.

Cristo Rei

Jyoti Sahi

Quando, em 1925, o Papa Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei, ele quis, por um lado, reagir deste modo a uma mentalidade que, ao tempo, pretendia confinar o religioso e o sagrado à esfera do rigorosamente individual e, por outro, combater os excessos do clericalismo que defendia o predomínio do religioso sobre uma justa autonomia das realidades terrestres. 

Era, no fundo, a velha questão das relações Igreja/Mundo.

E a disputa estava bem acesa: estavam ainda vivas na memória de uns e de outros factos tão marcantes como o Syllabus de Pio IX (1864), que condenava toda a modernidade, a famosa encíclica Pascendi de Pio X (1907), que condenava o modernismo por ser o “conjunto de todas as heresias”, e depois o cartão vermelho mostrado ao movimento do Sillon (1910), que agrupava os cristãos que queriam a abertura ao mundo, e o verde levantado à Action Française de Maurras, o pai dos totalitarismos do século; no meio de tudo isto, a encíclica As Novas Realidades (1891), em que Leão XIII apelava ao respeito para com o mundo e suas realidades – e desde logo a “pobreza imerecida” -, o que levou muitos batizados e muitos setores da Igreja a rezarem pela conversão do Papa!

Neste contexto, a criação da festa de Cristo Rei apareceu como uma arma a defender o Antigo Regime e a recusar o mundo moderno (os mais velhos recordamos os tempos das “almas bravas de soldados” transportando bandeiras e cantando “clarins, vibrem clarins!”, sobretudo nas procissões). Mas o catolicismo moderno nunca teve grande devoção por esta festa de Cristo Rei.

Mas os três evangelistas sinópticos dizem que Jesus foi crucificado, ele e mais dois homens. Marcos diz que eram dois ladrões (15,27); Mateus, dois salteadores (Mt 27,38), e Lucas, dois malfeitores (Lc 22,33). 

Perguntam-se, hoje, vários historiadores se estes dois ladrões, também chamados salteadores ou malfeitores, eram, mas é “rebeldes políticos”!

Flávio José (30?-100), historiador judaico-romano, atento sobre aos movimentos anti-romanos do seu tempo, é de opinião que a morte de Jesus teve, de algum modo, algo de rebeldia política. 

Pelo que os evangelhos contam, Jesus nunca causou motim político nenhum, nunca falou contra Roma ou a ocupação romana da Judeia, tão pouco da crueldade dos militares romanos, dos abusos fiscais ou da repressão militar.

É possível que o título de “rei” que lhe deram…

— Véspera da Páscoa, por volta do meio-dia. Disse então Pilatos aos judeus: ”Aqui está o vosso rei”.
Mas eles bradaram: “Fora, fora! Crucifica-o”.
Disse-lhe então Pilatos. “Hei de então crucificar a vosso Rei?”.
Replicaram os sumos sacerdotes: “Não temos outro rei senão César” (Jo 19,14-15).

O Direito romano tinha fundamentalmente dois pilares básicos: a defesa inviolável do direito de propriedade e a defesa do poder dos poderosos.

Mas esses pilares assentam nos antípodas da letra e do espírito de quanto Jesus viveu e ensinou.

Jesus queria afirmar que havia um “outro Mundo” a construir. 

Um mundo não levantado sobre o poder e o capital, mas de honradez e de respeito pela igualdade dos direitos e garantias de todos os homens, um mundo cheio de bondade e capaz de ajuda aos que sofrem.

Nisso consiste o reinado de Jesus, que chocou e continua a chocar, 2020 anos depois, com todos os reinados do Tempo que passa.

Volto a Pio XI, que, como já disse, instituiu, em 1925, a festa de Jesus Cristo-Rei, pois quis foi exaltar o poder e a glória da Igreja e do próprio Papa sobre todos os poderes do Mundo. Depois da 1ª Guerra Mundial, um mundo a passar da Monarquia para a Democracia, do Campo para a Fábrica…, cantava-se assim:

«Abram alas, terra em fora,
Por entre frémitos de luz.
Deus nos chama, é nossa a hora,
Alerta pela Cruz!

Almas bravas de soldados,
Senhor, já surgem de além,
E há caminhos não andados
Que esperam por alguém.

Em nós, acendei em nós, ó Deus,
Flamas de um nobre ideal
Clarins, vibrem clarins,
Por amor de Portugal.»

Que tal?

A alegria do Reino

Ain Vares

Esta pequena história acabada de ler-se (25,1-13) pode ter sido recolhida por Mateus, que a apanhou quando, numa estadia de Jesus com os discípulos no fim dos seus dias, em Jerusalém, este lhes contou muitas outras parábolas (Mt 21,18 – 22,14). 

Embora fale do perigo, da ameaça, do juízo, da condenação, do sofrimento e da morte, não se pode – diz ele – perder a alegria que sempre tem de encher o nosso viver, de encher a nossa vida.

Jesus não contou uma parábola sobre a parusia (uma vinda de Jesus), nem do seu fim pessoal ou da História. 

O noivo de que se fala é Deus, o noivo da noiva “Israel, esposa infiel de Deus que viverá para sempre com ela, conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor” (Os 2, 21-22).

Não se trata, portanto, de medo diante do juízo final ou de Deus, mas de se ser cristão, seguindo Jesus e, portanto, viver em alegria a felicidade. 

Que temos e teremos limitações e misérias, disso ninguém duvida. 

Mas ninguém pode tirar-nos ou diminuir-nos a constante alegria do que vive e vai viver uma festa que é o Reino de Deus.

«Nós somos mulheres e homens deste tempo, somos do hoje, do aqui e agora, ou seja, somos chamados a assumir, em cada situação concreta, a nossa humanidade, com o que isso comporta de história, de civilização e de cultura, de sonho e de projeto.

Nada do que acontece no mundo em que vivemos nos pode deixar indiferentes. Alegrias e tristezas, certezas e dúvidas, glórias e fracassos, … tudo o que é humano tem a ver connosco, tem a ver comigo.

Ser cristão — e mais ainda, cristão leigo — é viver neste mundo, com lucidez e com empenhamento. É viver como a outra gente, vida aparentemente igual à dos outros homens e mulheres, mas vida vivida com a consciência de que Jesus está no meio de nós, que faz caminho connosco, como demonstrou aos discípulos de Emaús (Lc 24,23…). É viver com a fé que Deus está a criar, pela ação do seu Espírito Santo, os novos céus e a nova terra, no seu eterno presente, sabendo que cada um/a de nós é obreiro/a singular e único, deste projeto.

Viver com paixão o presente é sinal do reino de Deus nas circunstâncias concretas em que nos é dado existir, ou seja, é estar atento/a aos sinais dos tempos e procurar descobrir neles aquilo que poderá ser fermento de um pouco mais de verdade e transparência na  minha vida pessoal e nas minhas relações com os outros; um pouco mais de fraternidade e de solidariedade à nossa volta, nas relações laborais ou na participação cívica e política; um pouco mais de concórdia e de tolerância e de paz em todas as situações.

Viver com paixão o presente é fazer-se próximo/a daqueles e daquelas que mais precisam da nossa ajuda: os pobres, os doentes, os idosos, os que estão sozinhos, os presos, os injustiçados, os que, diariamente, são atirados para a margem do sistema socioeconómico e caem no desemprego, na precaridade ou mesmo na exclusão social. 

Viver com paixão o presente é ser portador de esperança e de um são otimismo, valores tanto mais relevantes quanto vivemos num tempo que, apesar de todos os triunfos já alcançados, é um tempo marcado por um grande desencanto e um grande temor. 

… É próprio dos tempos de crise que se generalizem sentimentos coletivos de índole depressivo. E nós, certamente, já os experimentámos, talvez em nós próprios/as e, seguramente, em algumas pessoas à nossa volta, para quem sempre tudo vai mal.

… Ser cristão ou cristã, no tempo presente, implica a superação destes três tipos de tentações: o conservadorismo, a inércia, a aceitação acrítica da cultura dominante.… Esta mulher e este homem novos são os discípulos de Cristo, continuadores da sua missão, a que a Igreja no seu todo dá expressão e visibilidade, no mundo contemporâneo.» (Manuela Silva – Utopia cristã e aventura humana, Multinova, 2002, p. 235)

Um só Senhor

Muitas vezes ou quase sempre, as relações entre a religião e a política, são intensas a de conveniência. Sobretudo em questões económicas. O poder religioso e o político têm muitas vezes necessidade um do outro e ajudado igualmente. Concretamente, muitas vezes, o poder político favorece o religioso – donativos e até isenções fiscais – e o religioso legitimando as decisões do rei ou do imperador, do rei ou presidente.

No tempo de Jesus, como sabemos, os judeus tinham de pagar impostos aos romanos. Ou seja, suportavam a humilhação de viverem dominados pela potência do império e tinham também de pagar impostos, e grandes.

Claro que as pessoas resistiam a pagá-los, pois até porque não eram para melhorar as suas condições de vida.

Por isso perguntavam a Jesus como podia ser! 

Metiam-no num aperto: se dizia que era preciso pagar, o povo exasperava-se, se dizia que não, tinha de enfrentar os militares romanos.

A famosa resposta de Jesus: O que é de Cesar é de César, o que é de Deus é de Deus, O culto que Jesus queria não era o culto do Templo, era o culto da Liberdade perante os poderes deste mundo, sem consertos nem habilidades, em “espírito e em verdade”, diria João (4,21-24).

E a isso não estavam dispostos os fariseus.

Mas no ano 538 aC, Ciro, o Persa (2 Cro 36,22 /Esd 1,1; Is 44,28) sobe por aquele Médio Oriente acima e conquista a Babilónia, ano 539 aC, proclamando que  os deportados judeus podem voltar à sua terra: “Eis o que o Senhor a Ciro, seu ungido: Vou derrubar as nações à tua frente, desatar o cinto dos reis, abrir-te as portas das [suas) cidades. Nenhuma ficará fechada. Irei diante de ti a aplanar-te os caminhos pedregosos” (Is 45, 1-2).

Os judeus exilados estão, portanto, a partir de agora, autorizados a regressar à sua terra de Judá, em particular a Jerusalém, para reconstruir o Templo. E obrigou a Babilónia a devolver ao Templo todos os tesouros arrebatados, e deu mesmo dinheiro para pagar a reconstrução do Templo. 

Claro que os melhores judeus do tempo, os profetas, concluíram que Ciro havia sido escolhido por Deus para libertar o seu Povo exilado: “Para que se cumprisse a Palavra do Senhor, Ciro, rei da Pérsia, mandou publicar em todo o seu reino o seguinte decreto: ‘O Senhor, Deus do céu encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém’” (Esd 1,1). “Eis o que o Senhor… diz a Ciro: ‘És o meu pastor e cumprirás em tudo a minha vontade’. E a Jerusalém dirás: ‘Serás reedificada’, como ao Templo ‘Serás reconstruído’” (Is 44).

Que diria Israel a tudo isto? “Desperta, Jerusalém! Eu, o Senhor, sou o teu Deus! Desperta e levanta-te! Reveste-te da tua força, Jerusalém, cidade santa! Fugi da Babilónia…, mas não às escondidas: o Senhor irá diante de vós e o Deus de Israel seguirá na vossa retaguarda!” (Is 51 e 52). ”Saireis radiantes de alegria e ireis em paz para vossas casas. Montanhas e colinas irromperão a cantar diante de vós, a cantar. E todas as árvores dos campos em que passardes vos aplaudirão. Em vez de silvas crescerão ciprestes, e em vez de urtigas crescerá a murta. Isto será um título de glória para o Senhor e um sinal eterno que jamais perecerá” (Is 55).

Eu, o Senhor, sou o Senhor e mais ninguém!” (Is 45,6), ouviste?

Parece que não!

Uma vida redentora

Todos conhecemos o Cântico da Vinha de Isaías, um dos mais belos de todo o Antigo Testamento.
Conhecedor profundo do percurso espiritual do seu povo, Jesus arranca dele a sua parábola. O cultivo da vinha, em primeiro lugar, feito com cuidado e carinho. Depois, um proprietário absentista que arrenda a vinha a caseiros. Finalmente, e fazendo-se eco das correntes revolucionárias zelotes do seu tempo, os caseiros que, após terem espancado e mesmo assassinado os criados que vinham recolher as rendas, mataram o filho do dono pensando que, assim, ficariam eles com o terreno.
Este terá sido o ensinamento original da parábola. É possível que Jesus tenha querido distanciar-se das posições dos zelotes – os nacionalistas do seu tempo que pretendiam reconquistar o Templo aos romanos e se negavam a pagar-lhes impostos – opondo-lhes os “bem-aventurados construtores da paz” e os que não respondem à violência com outra violência.
A parábola sofreu, no entanto, alterações posteriores fundamentais.
Num primeiro momento, a Igreja primitiva rapidamente percebeu que o Messias “veio para o que era seu, mas os seus não receberam” (Jo 1,11). Os novos e derradeiros agricultores a quem se entregou a Vinha seriam mesmo os Doze e as comunidades à volta deles reunidas.
Mas… durante muitas gerações, deu-se à morte de Jesus, uma 1ª explicação, expiatória: ele morreu na cruz para assim poder ser oferecido a Deus um sacrifício, que ele, Deus, exigia e que lhe era devido pela ofensa que lhe fora feita pelo pecado do homem Adão. Teoria expiatória, dizia. Em substituição do pecador, morreu Jesus: sobre a sua cabeça juntaram-se os pecados da humanidade. Jesus entendia-se, portanto, como um preço de resgate. Portanto, Jesus morreu pelos nossos pecados.
Nesta teologia, profundamente influenciada pela mentalidade ético-jurídica do mundo romano (quem deve paga), a vida de Jesus só tem um sentido: ele nasceu e viveu para, morrendo na cruz, (2ª explicação) pagar a Deus uma dívida que lhe era devida pela humanidade. A uma ofensa infinita um resgate infinito: como este resgate não podia ser pago pelo homem, aí está o filho de Deus a pagar a culpa do homem! Nesta explicação, Jesus, enviado do Pai, vem a restabelecer a ordem alterada pelo pecado com a sua morte na cruz: expiar e redimir.
Esta teoria – que foi ainda ensinada aos que somos mais idosos – começou a ser contestada por muitos lados, pelo menos o Vaticano II (houve, portanto, outras explicações, 3as explicações). Ainda pior: até então, não havia lugar para a ressurreição: Jesus teria vivido para morrer.
Mas… não se considerando a historicidade da cruz de Jesus, a gente não obtinha resposta à pergunta. E a pergunta era esta: quem quis a morte de Jesus?, quem quis a cruz?, foi Deus?
A cruz é um produto da nossa história (4ª explicação), não da cabeça de Deus. Foi um crime e não a necessidade da morte de Jesus na cruz, um crime cometido pelo poder que esmaga a verdade e a justiça. Ou será que o nosso Deus precisava de um crime para salvar o homem? Não, sem qualquer dúvida que não: o nosso Deus salva o homem pelo seu amor ao homem e por mais nada.
É que a vida de Jesus não é só a sua morte. É toda a sua vida que é redentora. Que quer isto dizer?
A morte de Jesus é não a explicação da sua vida, mas o momento culminante da sua vida. Se Jesus tivesse vivido outra vida não tinha tido a morte que teve.
Jesus não morreu em vez dos nossos pecados, tão pouco por causa dos pecados dos homens, como hoje se morre em qualquer ataque terrorista, ou por qualquer acidente de automóvel, ou até na luta de um bombeiro na luta contra um incêndio.
A morte de Jesus é a expressão culminante e a verificação incontestável de toda uma vida de amor solidário e entrega generosa à causa do Reino. Jesus salvou-nos não pela sua morte mas por uma vida que culminou na cruz, vida “que não era possível que ficasse sob a morte”; por isso mesmo, como disse Pedro à multidão no dia de Pentecostes, “Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte” (At 2,24).
Mas “A vinha do Senhor do Universo é a Casa de Israel e os homens de Judá são a casta escolhida. Ele espera retidão, mas há só sangue derramado; esperava justiça e há só gritos de horror” (Is 5,7). Como se vê!

Arlindo de Magalhães, 4 de outubro de 2020

Gesto radical

Hank Willis Thomas, Emily Shur, Eric Gottesman eWyatt Gallery, ‘Four Freedoms’

Depois de ter andado pela Galileia daqui pràcolá, era o mês de Nisan do ano 30 (Nisan era o primeiro mês do ano judaico e correspondia a parte dos nossos meses de Março e Abril) e Jesus decidiu-se a fazer uma peregrinação arriscada a Jerusalém: “dirigiu-se resolutamente para Jerusalém”, apontou Lucas (10,51). Todos os anos, imensa gente partia para lá, em peregrinação, para ali celebrar a Páscoa. Da Galileia à capital eram uns 3/4 dias a pé. 

Ao chegar via-se, com deslumbramento, toda a cidade: o palácio de Herodes, também o de Antipas…, mas o que mais chamava a atenção era o Templo: aquela era a casa de Deus?! Nela entraria nos dias pascais seguintes uma enorme multidão de peregrinos a cantar hinos de ação de graças e dispostos a cumprir os sacrifícios rituais. Só os homens judeus. Pagãos, mulheres, leprosos, cegos e paralíticos, esses não entravam, ficavam em pátios exteriores, longínquos do “santo dos santos”, lugar onde só entrava o sumo-sacerdote, o único mediador entre Israel e o seu Deus.

Daqui vem a palavra sacerdote [usada no paganismo e no judaísmo] > sacerdos [em latim]: [sacer > sagrado] + dos > dádiva; portanto, o sacerdote dá o sagrado… ao homem.

Os primeiros cristãos não usavam a palavra, porque não havia sacerdotes. Havia, sim, presbíteros. A palavra grega presbiteros quer dizer idoso. O presbítero era, portanto, o escolhido entre os idosos para presidir sacerdote à comunidade)

Foi então que as coisas começaram a correr mal. À porta do templo, vendiam-se e compravam-se os animais necessários para os sacrifícios: era mais fácil que levá-los de casa!

Jesus perdeu a cabeça? O certo é que começou a expulsar os que vendiam e compravam no templo: «entrou no templo e expulsou dali todos os que nele vendiam e compravam; derrubou as mesas dos cambistas e as bancas dos vendedores de pombas, dizendo-lhes: “A minha casa é cada de oração. Mas vós fazeis dela um covil de ladrões!” (Mt 21,12-14».

Ora, atacar o templo, aquele lugar santo, era atacar o coração do povo judeu! Só ali era possível oferecer a Deus um sacrifício agradável, obtendo assim o seu perdão. Ainda não havia missas nem outras coisas, e ainda não tinha surgido um homem chamado Lutero…, faz este ano 500 anos…, havemos de falar disso lá mais para diante, mas ainda este ano.

O gesto de Jesus foi radical. Anunciava o juízo de Deus não contra aquele edifício – o templo de Jerusalém — mas contra um sistema económico, político e religioso que não era do agrado de Deus! Jesus tinha ido longe de mais. O pessoal de segurança do templo e os soldados romanos perceberam que era necessário vigiá-lo de perto pois que atacar o templo punha tudo em perigo: o templo do judaísmo e a paz querida pelos romanos. Aquele homem chamado Jesus — talvez o nome deste galileu tivesse já chegado a Jerusalém — despertava desconfiança. Portanto, olho nele! Talvez não fosse aconselhável detê-lo de imediato, ainda para mais rodeado de tantos seguidores e simpatizantes. Mas se for o caso, então prende-se e até, elimina-se.

E Jesus, que tinha descido a Jerusalém, para celebrar a Páscoa com os seus discípulos, não conseguiu levar a cabo o seu desejo: antes de chegar essa noite pascal, foi preso e acabaria por ser executado. Apenas teve tempo para uma ceia de despedida, onde ainda apontou caminhos para o Reino e, dizendo aos discípulos que deveriam viver em atitude de serviço mútuo, começou a lavar-lhes os pés, dizendo-lhes: “dei-vos exemplo para que, assim como eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15).O que perguntara “Quem dizem os homens que é o Filho do homem? … “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,13.15), digamos que a “calcar terreno”, e depois disse aos discípulos “queaproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mt 17,26), morreria crucificado, castigo esse reservado sobretudo aos escravos.

Arlindo de Magalhães, 30 de agosto de 2020

A fé que nos salva

Herbert Boeckl, Saint Peter`s rescue from the Lake Galilee (1925, pormenor), Catedral de Maria Saal, Carinthia (Áustria)

Em época de desejada fuga mundi, a Palavra deste Domingo conduz-nos até ao monte para, dali, regressarmos ao “mar alto” de que não devemos querer fugir. Já me explico. Mas, antes de mais e como sempre, vamos ao(s) texto(s). 

Na primeira leitura escutámos o conhecido episódio da tríplice teofania no Horeb, com Elias como co-protagonista. Rapidamente reconhecemos a “trama” do texto e a “simbólica” dos seus elementos, também devido à espécie de “paralelo” com a teofania a Moisés, no Sinai, embora no texto de Elias só a «ligeira brisa» («fino silêncio», na tradução certeira de D. António Couto) é verdadeira manifestação da presença/passagem de Deus por ali. Mas gostaria de ir por outro caminho, fixando-me não nos ditos “elementos naturais” (vento, terra, fogo), mas antes num lugar: o monte. 

Não vou repetir o que já tantas vezes (e certamente melhor do que eu) outros aqui mesmo disseram sobre a simbologia (bíblico-espiritual, histórico-cultural ou outras) do “monte” e do que ele significa até para a história e identidade (passada, presente e futura) da nossa Comunidade. Atrevo-me, tão só, a recordar algumas “expressões-chave”, como que uma “armadura de clave” a indicar o “tom” do que direi de seguida. 

A simbologia do “monte” (com o seu “cume”) destila-se, para o caso presente, com três “d’s”: desejo, desafio e deserto. Desejo de ver o que “para lá” (ou a partir) deles se vislumbra; desafio de vencer as dificuldades que a subida nos apresenta e de, atingido o cume, lá “deixarmos a nossa bandeira” (ou “postar” a nossa selfie), para depois descer, não sem (in)esperadas dificuldades; deserto de radical (porque biológica) solidão, na vitória ou na derrota que eles nos possam impor, pela (in)capacidade de (n)os superarmos. Por outro lado, sobe-se ao monte não para nele ficarmos (“montar tenda”) mas para, lá chegados, e depois de “vermos” e “ouvirmos” o que eles nos revelam (com mais ou menos “ecos”, exteriores ou interiores), deles regressarmos, porventura “por outro caminho”, ao “vale” por onde corre o rio da vida… 

Permanecendo no monte, abrimos agora o Evangelho, mantendo a página-porta de Elias entreaberta. 

Assim, se o Horeb é, para Elias, lugar de fuga e de algum descanso (embora “sobressaltado”), o “monte” (sem nome) a que Jesus sobe é lugar de silêncio potenciador da oração. Elias “chega” ao Horeb literalmente “alimentado” e “comandado” pela voz do anjo/Deus (1 Rs 19, 7-8); no Evangelho, é Jesus quem, depois de alimentar uma multidão (Mt 14, 21) decide livremente procurar um refúgio para orar… sozinho. Ambos experimentam o desafio da solidão e do silêncio, inauguradores de um espaço-tempo que não se mede com relógios (Elias «passou a noite», Jesus esteve «desde o cair da tarde» até à «quarta vigília da noite» – entre as 3h e as 6h da madrugada, portanto)… 

Elias é “todo ouvidos”: não diz palavra, limita-se a escutar e a cumprir o que Deus lhe manda («Sai fora», «permanece»). Enquanto que Deus “faz acontecer” («o Senhor passou»), Elias apenas vê (o vento que «fendia as montanhas e quebrava os rochedos»), sente («um terramoto»), presencia (um «fogo»)… mas somente quando ouve («uma ligeira brisa») é que “percebe” que Deus está verdadeiramente ali…

No Evangelho, se inicialmente acompanhamos Jesus no silêncio (procurado no monte), logo o texto tudo interrompe e (nos) desassossega: da barca em que os discípulos viajavam sozinhos, “obrigados” por Jesus, ecoam gritos de desespero. Sem o seu Mestre (o mesmo e único que tinham visto a acalmar semelhante tempestade – Mt 8, 23-27) e a ter que enfrentar os ventos que (afinal!) eram contrários, nada podem! Tal grupo em tal barca com tal medo: assim viu Tertuliano, logo no séc. II-III, a própria Εκκλησίαekklesia (comunidade, Igreja), de então e de sempre. Ao terror provocado pelo revirar da barca, soma-se a visão terrífica de uma figura desconhecida e disforme («um fantasma») que caminha sobre as águas e vem na sua direção. Tudo veem, mas nada percebem, porque nada re-conhecem; tão turbado está o seu olhar e tão profundo é o seu grito que só a voz de Jesus, deles tão bem conhecida, os pode esclarecer e apaziguar: «Tende confiança. Sou eu. Não temais». Irrompe então a figura de Pedro, que tenta aproximar-se de Jesus… mas logo “perde o pé”, vacila. Talvez seja a forma de o evangelista nos dizer: de nada vale pensarmos que bastará estarmos materialmente perto de Jesus (ou das suas “figurações”) se não estivermos sobretudo próximos d’Ele pela e na fé… 

Torna-se agora claro o “percurso” a que inicialmente aludi: é quando aceitamos o desafio do silêncio, do deserto e da solidão que se nos é revelado o mandamento e a sua exigência de resposta: enquanto Elias nada diz mas faz, os discípulos gritam (de susto) e respondem, pela voz de Pedro, mas com dúvidas e com medo! Assim, só a fé (que escuta e vê “de outro modo”) pode garantir a “certeza da presença”: uma certeza que inspira uma confiança que vence toda a dúvida (embora nunca a anulando). Só assim brota a confissão de fé («Tu és verdadeiramente o Filho de Deus»), só possível porque fundada numa “experiência pós-pascal”: é o saber que Jesus já venceu a morte (e, nela, toda a espécie de “tormentas”) que permite a Mateus colocar tais palavras nas bocas dos discípulos. É essa experiência – da qual também nós partilhamos, ainda que “dois mil e tal” anos depois, que nos permite reconhecer a presença constante de Deus. Sabemos que Ele (nos) fala, e até “de muitas maneiras” (Dei Verbum 2. 4)… Mas também sabemos (a muito custo) que, por vezes, Ele também Se cala… Contudo, nem assim Ele está ausente ou distante: o “segredo” será sempre o de estarmos dispostos para O procurar, confiando que, qual “Pai pródigo”, Ele vai estar lá/cá sempre. 

Esta confissão de fé, densa e necessariamente “comunitária”, é ela mesma o busílis da própria identidade da Igreja-comunidade, aqui e sempre embarcada e peregrina nos mares (tantas vezes encapelados) da História. E pouco importa se uns vêm nesta barca um pequeno bote ou um veleiro, a nau “S. Gabriel” de Vasco da Gama ou a canoa do velho Santiago e do jovem Manolin do romance de Hemingway: os perigos que o mar dos tempos nos apresenta poderão ser tão reais quanto o “grande peixe” de Hemmingway ou tão imaginários como o “Mostrengo”/”Adamastor” de Camões, Rabelais ou Pessoa, mas a luta há de ser sempre a mesma: a da coragem, do destemor, da valentia de procurar sempre a “terra à vista” do Reino prometido (mesmo que não se tenha mapa e como guia apenas alguns trémulos luzeiros no firmamento e um astrolábio a requerer recorrente afinação), uma luta que será sempre contra o medo, contra o susto, contra o desespero, evitando, a todo o custo, o fundo do mar, esse lugar do eterno esquecimento (ou seja, do pior “inferno”: alguém sabe o nome de algum grumete de Pedro Álvares Cabral que “ficou pelo caminho” até ao Brasil?). 

Assim, diante das múltiplas (e quase permanentes) “tempestades” que a História (passada, atual ou futura) nos faz/fará atravessar, não consigo deixar de me rever na pergunta (desejando igual identificação na resposta) de D. Hélder Câmara: «Pensas, então, que as fraquezas da Igreja levarão o Cristo a abandoná-la? Quanto mais nossa fragilidade humana atingir a Igreja – que é nossa e d’Ele – mais Ele a sustentará com o Seu apoio, com o Seu carinho».

E é esta (e só esta) a “fé que nos salva”.

Luís Leal

O excesso da graça

Safet Zec (2016)

Nunca compreendi, e continuo a não compreender, por que razão estão alguns textos bíblicos carregados de exageros e paradoxos. Hoje, de Isaías a Mateus, uma meada de estranhezas e excessos! Quem acredita verdadeiramente que se pode comprar sem dinheiro? Ou então, quem acredita, na sua lucidez, que se pode dar de comer a cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças, com cinco pães e dois peixes?  Confesso-nos, talvez, da nossa grande falha estrutural: há em nós um apetite obsessivo pela luta contra o caos. Não é estranho, por isso, que quase todas as cosmogonias do mundo antigo, do Oriente ao Ocidente, estejam tecidas sobre a trama desse combate (Chaoskampf). Quem não tem dinheiro não pode comprar o que quer que seja. Quem somente tem cinco pães e dois peixes não pode dar de comer a cinco mil homens, a não ser que nos esteja a falhar o alcance de sentido dos textos. 

Sobre um outro texto do Evangelho segundo Mateus [cf. Mt 21, 33-43], José Augusto Mourão escrevia: «Alimentamo-nos de ficções, de sonhos, de visões. E de parábolas. Entre o ser e o dever ser corre um rio, quase sempre intransponível. O Somnium Scipionis [o Sonho de Cipião, um texto de Cícero que abre também a uma visão de excessos] é a visita diária de quantos passam este mundo entre estas duas margens. O crente, porém, ao contrário do fanático, é aquele que procura, que interroga, no “temor e no tremor”, como diria Kierkegaard, as margens dos seus sonhos». A 4 de Julho de 1942, um mês particularmente tenso da vida de Etty Hillesum, um ano e meio antes da sua morte em Auschwitz, assim destilava a sua confiança no excesso: «Cada camisa lavada que vestes é ainda uma espécie de festa. E cada vez que te lavas com um sabonete bem cheiroso numa casa de banho, que é só para ti durante meia hora, também». Etty vivia entre margens. 

O autor dos textos do Deutero-Isaías também. Margens que Rainer Maria Rilke topografou: «Entre a máscara do nevoeiro/ e a do verde da verdura,/ eis o instante sublime em que a natureza/ se desnuda mais do que lhe é habitual.// Olhem para a beldade! Reparai nos ombros/ e na luminosa franqueza que não usa de pudor…/ Será coisa breve – o Verão vai compor a cena/ luxuosa onde ela vai desempenhar outro papel». Trago aqui a estranheza da natureza que se desnuda mais do que lhe é habitual com a mesma intensidade com que recito o versículo sagrado de Etty: Cada camisa lavada é ainda uma espécie de festa. Ou então de Isaías: «Todos vós que tendes sede, vinde à nascente das águas. Vós, que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei. Vinde e comprai, sem dinheiro e sem despesa, vinho e leite». Isaías antecipou, pelo paradoxo, a largueza do Reino. 

O décimo quarto capítulo do Evangelho segundo Mateus não é uma fábula, como as de Esopo. É uma parábola-em-ação – diria. Não tem uma moral, portanto. Introduz, muito mais do que potenciaria uma estória moralizante, uma rutura na ordem da visão. As estórias moralizantes, tal como as lentes que nos receitam os oftalmologistas, têm por função corrigir as disfunções da nossa perceção visual, ajustando, com precisão canónica, o nosso olhar àquilo que se consegue ver com o sentido da visão. Mas o autor do Apocalipse viu novos céus e nova terra [cf. Ap 21, 1]! Tal como a parábola-em-ação – diria eu – do Evangelho segundo Mateus: «Ordenou então à multidão que se sentasse na relva. Tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e recitou a bênção. Depois partiu os pães e deu-os aos discípulos, e os discípulos deram-nos à multidão. Todos comeram e ficaram saciados. E, dos pedaços que sobraram, encheram ainda doze cestos. Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças». As parábolas do Reino, que antecedem este capítulo evangélico, falam fundamentalmente de largueza. Esta narrativa também. Diz do excesso a que todos somos chamados. Tenho um amigo, cuja mãe, ao jantar, colocava sempre sobre a mesa um prato a mais. À estranheza dos filhos, perante o excesso, respondia sempre com a gramática da graça: Nunca se sabe quando Cristo nos entra pela casa adentro! O mesmo é dizer: Cinco peixes e dois pães, para cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças!

A partilha, que seria a costumeira hermenêutica moral desta narrativa evangélica, somente vale, se antecedida for pela liberdade que dá corpo ao desassombro de uma vida teologal que se converte à largueza do Reino, onde todos têm lugar à mesa. À mesa, há sempre lugar para mais um. Essa é a utopia cristã. Sim, utopia: tem lugar em lugar nenhum. Tem lugar mesmo onde aparentemente não há lugar. Deus nos salve da obsessão pela ordem, aquela que não sabe que cinco pães e dois peixes podem alimentar cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças! Talvez aí possamos recitar, com intensidade, comoção e verdade, Isaías, Mateus ou o final do Ardente Texto Joshua, de Maria Gabriela Llansol: 

bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível
bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos mundos
bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo

José Pedro Angélico 

Fermento

James Tissot (séc. XIX)

A Parábola é uma narrativa muito própria dos Evangelistas. Mateus reúne, neste cap. 13, as que dizem respeito ao Reino de Deus. Hoje escutamos três: “O trigo e o joio”; “o grão de mostarda” e o “fermento”.

Semear… germinar… cuidar… colher… comer.
Semear… germinar… cuidar… colher… comer.
Semear semente!
Semear palavra!
Semear o homem e a mulher… o ser humano!

Mas como se semeia se não se tem semente…? Não se atira a semente para a terra (húmus)… Mas se não se lavrou e adubou a terra? Se não se guardou a semente do ano anterior? Se TUDO foi consumido?! Mas, quem cuidou?! Quem é precavido! Esse pode SEMEAR! Pode acontecer que o inimigo venha semear “joio no meio do trigo”… mas o joio e o trigo não são SEMENTES? Se o são e porque o são, podem, têm, de ser lançadas na terra… Morrer para germinar; germinar para morrer e cada uma segundo a sua natureza, produzir cem, sessenta, trinta por cento… o seu objetivo é o mesmo? O de ser levado ao moinho, depois à masseira, ao forno e à mesa para alimentar, “dar de comer a quem tem fome” (Mt. 25, 35)? Não! Cada uma tem o seu fim, o seu objetivo, o seu propósito. Mas as duas estão interligados no campo… no germinar e cuidar. Por isso o dono do campo deixou ambos crescer. E na devida altura: quando já não representavam perigo uma para a outra, quando eram autónomos; cada qual foi para o seu lugar: joio em molhos para queimar; e o trigo, no celeiro. 

A semente do grão de mostarda é lançada na terra, morre para germinar; germina para morrer e ser abrigo, aconchego, sinal, sombra refrescante. 

O fermento é misturado com a massa e leveda… para produzir… dar muito e em abundância para “dar de comer a quem tem fome” (Mt. 25, 35) 

Nestes acontecimentos da semente e do fermento, sobressai uma particularidade simples e desconcertante: tudo acontece, tudo se realiza no silêncio, no mistério da noite e nas entranhas da terra. Não adianta pular ou saltar… Não se pode / deve apressar o tempo. Tudo é MISTÉRIO. Tudo acontece enquanto “O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos duma criança”… 

E assim deve continuar para que o regozijo, o desassombro de quem come um pão, um “molete”, se deleite quando o come, sinta o seu gosto, o prazer do pão fresco… 

E assim deve continuar para que o regozijo, o desassombro, o mistério da semente de mostarda… já árvore, seja… 

“Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…

(Miguel Torga 1907 – 1995

Envio

Amadeo de Souza Cardoso, ‘A casita clara – paisagem’ (1915)

Contrariamente aos rabinos do seu tempo, que, à volta de uma sinagoga, se rodeavam de alguns poucos discípulos, Jesus era um Mestre – um Rabi – itinerante: “percorria as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas” (Mt 4,23). Ou seja, não se sentava à espera que discípulos e outros o procurassem, ia antes ao seu encontro, à sua situação de vida.

Jesus não era também como os sacerdotes do Templo, que simplesmente recolhiam os animais que iam ser sacrificados e com o dinheiro dos fiéis, mas com estes não se preocupavam nada.

Jesus não procedia como os fariseus, que só ligavam às elites. Ele dirigia-se “em primeiro lugar, às ovelhas perdidas da Casa de Israel” (Mt 10,6). Nem se reunia com os discípulos à maneira dos rabinos do seu tempo que se entretinham a discutir as minudências e casuísticas da Lei. Não!: Jesus antes corria andanças e acudia a necessidades. Por isso, depois de os escolher – no relato evangélico de hoje -, envia-os.

Esta perspetiva é absolutamente nova em Israel. Ele faz — envia — uma coisa que nem sacerdotes nem fariseus nem rabinos faziam, entupidos todos com o serviço religioso do Templo ou com a interpretação exata da Lei.

Os Evangelhos são muito claros. Começou pela Galileia…

A Galileia era um território situado a norte da Palestina (composta pela Samaria-Judeia (Jerusalém)-Idumeia), mas que não lhe pertencia. Por isso mesmo, chamava-se também “a Galileia dos gentios” (Mt 4,15). Jesus nasceu na Galileia, por ali cresceu e começou a sua pregação e passou a maior parte da sua vida. Uma vez por outra subiu a Jerusalém.

Quando em Março passado começou a pandemia, nós andávamos com ele “de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa Nova do Reino de Deus” (Lc 8,1).

A samaritana (a Samaria situava-se a sul da Galileia) encontrou-a no poço, o cego ao passar na aldeia sem nome (Jo 9,1), Zaqueu esteve com ele em Jericó, mas foi ele que disse que queria ir a sua casa (Lc 19,5), o centurião topou-o numa rua à entrada de Cafarnaúm (Mt 6,5), ainda mais para sul, já a sogra de Pedro, doente, foi visitá-la a sua casa, que nem sabemos onde era (Mt 8,14), os discípulos foi chamá-los ao lugar onde eles viviam, à borda do Mar da Galileia (Genesaré), onde consertavam as redes (Mt 4,21), Levi, talvez Mateus, estava no posto de cobrança em Cafarnaúm a receber os impostos (Mc 2,14); vinha a descer do monte e encontrou o leproso (Mt 8,1), ia de novo para Cafarnaúm, para casa de Jairo, e cruzou-se com a mulher que sofria de uma hemorragia havia mais de doze anos (Mt 9,20), ia para Tiro e Sídon e saiu-lhe ao caminho uma outra mulher cananeia (Mt 15,21), saía de Jericó e aparecem-lhe dois cegos que haveria de curar (Mt 20,29)…

Podia continuar-se esta lista dos encontros de Jesus. Mas já basta: ele andava ele sempre de um lado para o outro, à procura das “ovelhas sem pastor” (Mt9,36). Mais do que os episódios, é importante a sua atitude.

Muitos procuravam-no: Nicodemos (Jo 3.1 ss), a família (Mt 12,48), o jovem rico (Mt 19,16), numa palavra, as grandes multidões (Mt 21,8, Lc 6,17, etc.). Mas fundamentalmente era ele que andava de lugar em lugar a procurar e a deixar-se encontrar por todos.

Mesmo assim, não deixa de ser estranha – digamos – a recomendação que dá aos discípulos quando os envia em missão: “Não sigais o caminho dos gentios, nem entreis em cidades dos samaritanos. Ide primeiramente às ovelhas perdidas da Casa de Israel”. Era o particularismo judaico a funcionar! Os primeiros cristãos – judeus todos eles – herdaram-no dos seus maiores e projetaram-no depois no próprio Jesus; Mateus pô-lo a dizer “não fui enviado senão às ovelhas perdidas da Casa de Israel” (Mt 15,24), embora tenha sido ele próprio logo a dizer, no seu Evangelho de infância, que os Magos – pagãos – foram a Belém “adorar o menino” (2, 2), e colocado na boca de Jesus aquela palavra de espanto dita ao centurião romano, “não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé!” (Mt 8,10), sinal claro de que “Deus até das pedras pode suscitar filhos de Abraão” (Mt 3,9).

Eucaristia e justiça

Amadeo de Souza Cardoso, ‘Procissão Corpus Christi’ (1913)

Um teólogo espanhol, Manuel Gesteira, disse que a Eucaristia é como escrever — não com a caneta, mas com sinais — um tratado de teologia política: ou protestamos contra uma sociedade em que alguns oprimem a maioria, ou antecipamos o Reino dos Céus. Se o não fizermos, a Eucaristia é uma mentira.

Conta uma história que um piedoso marquês, um dia, na fila para receber a comunhão, deixou passar à sua frente um dos seus criados, dizendo-lhe: “Passa tu, que aqui somos todos iguais!”. Ao que o criado respondeu: “Só aqui?!”.

Uma vez, o conhecido teólogo brasileiro Leonardo Boff disse tudo doutra maneira: “Ricos e pobres comungam juntos na Igreja, mas excomungam-se mutuamente na fábrica”.

A mentira está em que a igualdade experimentada durante a celebração pode não ter qualquer influência na vida real. Isto mesmo aconteceu já em Corinto; Paulo acusou assim os Coríntios: “Quando vos reunis, não comeis a Ceia do Senhor; comeis é cada qual a sua!” (1 Cor 11, 20-21). Já, nessa altura, comiam os ricos dum lado e os pobres no outro. Paulo disse aos primeiros: “Comeis e bebeis o vosso próprio castigo!” (1 Cor 11,29).

Séculos mais tarde, S. João Crisóstomo (347-407) diria que, para a celebração, ninguém se preocupasse com solenidades e ornamentos, mas, sim, com a justiça.

Conta-se ainda que Sto. Ambrósio (340-397), bispo de Milão, entrou uma vez em conflito com o imperador Teodósio que, para vingar o assassínio de um funcionário, tinha mandado passar à espada uma multidão de gente que enchia o estádio de Tessalónica, lugar onde acontecera o homicídio. O bispo escreveu-lhe exigindo-lhe penitência pública. E disse-lhe mais: que, enquanto a não cumprisse, não celebraria a Eucaristia diante dele. E Teodósio aceitou e cumpriu a excomunhão temporária – oito meses – fazendo penitência pública.

Não pretendo com isto que tenhamos de esperar que desapareça o último resto de injustiça para que possamos celebrar a Eucaristia. Isso só ocorrerá quando tivermos alcançado a plenitude do Reino e, no cimo do monte, nos sentarmos à mesa e nos servirem as “carnes gordas e os vinhos velhos” (Is 25,6). Só quando tudo isto for realidade, então sim, aí, dispensaremos os sinais e acabarão os sacramentos, e o Corpo de Deus que somos nós consigaremos então realizar a obra de Deus, a opus Dei.

Um teólogo espanhol, Escrivá de Balaguer, canonizado em 2002, gritou que, verdadeiramente, o cristão é o que, na vida quotidiana, através do exercício do trabalho profissional e do cumprimento dos deveres pessoais para com Deus, a família e a sociedade, atua como um fermento de valores humanos e cristãos no ambiente onde está inserido.

S. Escrivá de Balaguer, roga por nós!

Vulnerabilidade global

Fez em Março passado 6 anos que o conheci. Tivemos uma grande conversa que se poderia resumir nestas palavras: ”A fé cristã numa era de incerteza”.

Vinha de longe, lá nascera e lá vivia, homem de cultura diferente, estranha até. Em certos pensares e fazeres, no entanto, coincidíamos.

Por exemplo, disse-me ele, evito as reuniões do clero, não porque não goste dessa gente simpática que são os meus irmãos no sacerdócio, nem porque me sinta de qualquer forma superior — não tenho motivo para isso —, mas por uma simples razão: quase sempre que o faço, assalta-me um misto de tristeza, de compaixão e desamparo, e uma perceção de que, apesar da abnegação e da boa vontade de muitos sacerdotes, este mundo está amaldiçoado.

O tema desses encontros já me haviam surpreendido, sobretudo quando andei por Salamanca e a ensinar por aqui, tanto que, em certas ocasiões, timidamente, levantei algumas perguntas: “Em que é que isto vai dar? Que restará desta Igreja, dentro de alguns anos? Igrejas vazias — como as destes dias?, acrescento agora —, ou como doutras, cheias, mas com a polícia pelas costas?”.

Os cristãos do nosso tempo têm de entender o cristianismo como um estilo de vida cuja dimensão profunda é a espiritualidade e a solidariedade para com aqueles que são tratados injustamente na e pela sociedade.

E aqui retorno aos Atos, a ler o textinho quase todos os dias: “no primeiro dia da semana, reuniam-se em grupo (em grupo dir-se-ia em eclesia > hoje, em igreja), mas esperavam uns pelos outros. Quando estivessem todos ou quase, depois de recordarem algum episódio ou um ensinamento — ainda não tinham escrito um livro a ser chamado evangelho (boa notícia) —, comiam um pão e bebiam um gole — como lhes havia dito o Senhor, — em sua memória” (Mt 18,20).

A última que ele me mandou, o meu amigo, foi esta: “A noite escura do espírito em que as pessoas são confrontadas com o silêncio de Deus e sentem a sua ausência, é um tempo extremamente importante para o crescimento e maturação espiritual de uma pessoa”.

E pronto! Agora comunicamos só por e.mail; por WhatsApp, não. Há dias, aconteceu-lhe — parece-me — o que a mim me sucede muitas vezes: sem querer, o dedo fugiu-lhe… e o meu telelé tocou, mas só um segundo! Comunicamos só por e-mail.

E ele disse-me assim:

«Muitos de nós pensávamos que a epidemia iria conduzir a uma espécie de blackout (apagão) de curta duração, a uma interrupção das atividades sociais habituais de um modo ou outro previsíveis, e, depois, tudo voltava a ser como antes.

Mas não vai mais ser assim. Aliás, nem seria bom que tentássemos que fosse. Depois desta experiência global, o mundo já não será o mesmo, e, provavelmente, está certo que seja assim.

Em momentos de graves calamidades naturais, é natural que nos preocupemos sobretudo com as necessidades materiais necessárias à sobrevivência. Mas “nem só de pão vive o homem”. Talvez tenha chegado o momento de examinar as implicações mais profundas deste golpe infligido à segurança do nosso mundo. Podemos dizer que o inevitável processo de globalização atingiu o seu cume: a vulnerabilidade global de um mundo global é agora evidente» (Halík).

Repito: 

«A vida é um dom de Deus.
Mas um misterioso vírus, em menos de três meses,
colocou o mercado financeiro em alerta,
desacelerou a economia global,
modificou os hábitos quotidianos, 
reavivou medos ancestrais
e pôs em xeque os líderes do planeta. 
E obrigou-nos a confirmar a fragilidade humana
e a disputar a sobrevivência, 
a sentir a necessidade do abraço e a valorizar o coletivo,
a vergar-nos diante da “mão poderosa e misericordiosa” que tudo fez
e a sondar a (re)significação da vida.» (Lino Maia)

Pão de justiça

Homilia do Pe. Gaspar no 18º Domingo do Tempo Comum (91.08.04), na celebração dominical da Comunidade da Serra do Pilar (Vila Nova de Gaia)

(…) Reunidos para celebrar a Eucaristia, celebramos a comunhão com todos os presentes e com toda a Igreja, mormente com os membros desta comunidade ausentes por motivo de férias.

Ao direito e ao dever de trabalhar corresponde o direito e o dever de descansar. Trata-se do respeito de cada um por si e pelos outros, realizado não só pelo descanso semanal, mas pelo descanso anual. E, num tempo em que a competitividade da produção exige a muitos a venda das férias e o trabalho contínuo sem descanso semanal (com risco de despedimento), e quando o novo pacote laboral se avizinha ameaçador dos direitos dos trabalhadores, com as organizações sindicais sem capacidade de reivindicação suficiente, teremos nós, Igreja, de retomar o nosso papel supletivo de exigir o descanso semanal aos domingos e festas de guarda.

O [relato do] milagre da multiplicação dos pães e diálogos seguintes introduzem-nos na complicada questão, e fundamental, do alimento, do trabalho para o produzir, das formas de o repartir, das relações geradas nestes processos, bem como dos objectivos que o devem marcar.

A qualquer pessoa e a qualquer sociedade é necessário garantir o pão, como sinal do alimento que garante a vida. Antes de mais, garantir o direito à vida, diariamente. Jesus situa-se nesta preocupação ao garantir o alimento no milagre da multiplicação dos pães. Mas vai mais longe: pretende atingir os processos de produção e do repartir do alimento. A luta contra o pecado e a construção da Vida Nova passam por aí.

O milagre da multiplicação é o sinal (sêmiõn) duma nova Economia e das novas forças (dúnamis) a orientar o mundo da economia. Ao mesmo tempo que se manifesta preocupado com a fome do povo e enfrenta a situação, para a resolver, Jesus não está disposto a criar dependências e a favorecer preguiças: «Procurais-me, não porque tenhais entendido o sinal, mas porque comestes o pão e ficastes saciados». Jesus não veio estabelecer uma sopa dos pobres ou alimento para os preguiçosos. Estas [as sopas] resolvem alguns problemas, mas criam dependências e menorizam as pessoas. Todos devem participar no processo de produção dos alimentos segundo as suas capacidades, e é função da sociedade organizar os processos produtivos de forma que todos e cada um tenham possibilidade de participar, à sua medida, mesmo os deficientes. A participação neste processo é não só o meio de cada um não ser pesado para o seu irmão ou para a sociedade, mas o caminho para uma autonomia e uma independência que são a base da liberdade efectiva de pensamento e de acção.

«Trabalhai pelo alimento que permanece»: dar de comer um dia não resolve uma situação. Trata-se de trabalhar por um processo em que o produzir estará de tal forma organizado que cada um terá por justiça (e não apenas por caridade) aquilo que lhe pertence. Nós, como Igreja, temos dificuldade em abordar as questões morais (os valores humanos) que se põem ao processo produtivo. Desculpamo-nos com a falta de capacidade técnica. Estas desculpas não aparecem nas questões de moral sexual. Mas o que nós temos é medo de enfrentar o sistema económico, as pressões dos poderosos e a atracção dos ricos.

Estamos mais à vontade na questão da distribuição, sopas dos pobres, Conferência de S. Vicente de Paulo. Tudo trabalho importante: mas que não seja para criar dependências humilhantes ou para camuflar a máquina que continua a fabricar pobres. Ou para a desculpar.

Distribuir, começa na retribuição justa do trabalho. E à luz do pão repartido do milagre, não podemos deixar de referir que o milagre económico português que tem fabricado alguns ricos e muitos pobres, que tem aumentado o fosso entre uns e outros e mantém a percentagem dos que vivem abaixo do limiar da pobreza em 35%, é um milagre contra o milagre da multiplicação dos pães. Porque o milagre de Jesus é de multiplicação e de distribuição, e o milagre português é de multiplicação e de acumulação. E aqui, queiramos ou não, está o seu pecado. Aquele é pela fraternidade, este é pela desigualdade; aquele sacia a todos igualmente, este apenas a alguns; naquele sobraram doze cestos, neste, os cestos de pão que eram precisos para matar as fomes dos deserdados ficaram a engordar as contas bancárias dos que já comem demais.

«A Obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou». Acreditar em Jesus não é apenas olhar para ele e dizer «eu creio». É sobretudo acreditar nos seus processos, no seu método, nos seus valores. Numa sociedade voltada para a produção, a competição e o consumo, como poderemos lançar os processos duma repartição justa a fraterna dos bens produzidos? Quando nos são propostos como modelo a atingir os níveis de riqueza da Europa e os seus processos de enriquecimento, como fazer valer os direitos dos desempregados, dos empobrecidos, dos reformados, dos países do 3º Mundo, à custa de quem o Norte tem enriquecido? Ainda é possível acreditar numa alternativa fraterna para o Mundo? Ou continuamos a aceitar pacificamente ordenados de 200 contos por mês a par de rendimentos de 15 tostões/mês. «A Obra de Deus é que acrediteis». Há dezassete anos os pobres acreditaram no seu poder de participação. Mas tudo fizeram para que desacreditassem de si próprios e se remetessem a uma participação pelos votos. A lei do menor esforço e a preguiça fizeram o resto: se tivessem quem lhes desse de comer todos os dias, tanto trocavam a liberdade pelas cebolas do Egipto, como corriam atrás de qualquer um que lhes fizesse o milagre diário de dar o pão (e o circo).

O pão do céu no deserto foi um pão para garantir a liberdade face ao poder atractivo do Egipto, um pão que possibilitava a continuidade do processo libertador. O Pão que Jesus dá é mais do que isso: é não só o sinal das fomes corporais saciadas, mas o sinal e a fonte destas ânsias de liberdade total, de fraternidade completa, de participação e de partilha, construção de um mundo novo de mãos dadas, solidários, que alimenta em nós a vida e as capacidades de Deus, no denunciar de sistemas injustos e no anunciar de alternativas geradoras de amor e de fraternidade.

O anúncio de Jesus

Foi na Páscoa de 1995, há 25 anos: a passagem do Pe. Gaspar, após uma vida mergulhada no mundo do trabalho, guiado pelo Evangelho de Jesus. Este texto sobre o Reino de Deus foi escrito para utilizar em Catecumenado de Adultos. Acaba por ser o mais completo que escreveu sobre o Reino de Deus e faz parte de uma série de catequeses com o título genérico de «Jesus: quem é?». Fica para a reflexão pascal, nesta Semana Maior de 2020.

Tendo em conta as possíveis opções de Jesus face ao mundo do seu tempo, e dado que ele não escolheu nenhuma das possibilidades oferecidas às opções das pessoas, podemos perguntar então que é que Jesus queria, que é que ele veio fazer, por que é que Jesus lutou, em que é que se empenhou, o que quis?

Não se anunciou a si mesmo. Nem chegou triunfalmente, dizendo: «Eu sou Deus, o Filho de Deus, o Espírito de Deus. Vim porque o fim do Mundo está perto! Feliz aquele que agora me adorar!» (Orígenes, Contra Celso).

Jesus anuncia o Reino de Deus que está iminente: “Convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). É preciso vermos o que quer dizer Reino de Deus, porque pode querer dizer coisas diferentes, conforme as pessoas. Todos aceitam que Reino de Deus significa soberania de Deus sobre o Mundo. Mas não é apenas a soberania de Deus que os sacerdotes do Templo anunciavam como tendo sido instaurada no princípio da Criação: é o Reino de Deus dos tempos finais que estão iminentes! Não é a soberania de Deus manifestada num domínio político-religioso ao jeito dos zelotes: será estabelecido pacificamente e começava no interior o homem. Não é um juízo de vingança favorável apenas a uma elite de perfeitos moralmente, como o pensavam os fariseus ou os monges de Kumram: é a abundância da Graça de Deus em favor de todos, mas sobretudo dos perdidos e dos miseráveis. Nem sequer somos nós que o fazemos vir (como pensavam também judeus fariseus e monges de Kumram): é da iniciativa gratuita de Deus.

Jesus o proclamou não com muitas teorias, mas através de comparações simples, as parábolas. Através delas e das suas atitudes, Jesus foi dizendo que tipo de Reino vinha anunciar:

– um Reino em que os homens virão a ter a plenitude de tudo, em que qualquer dívida será perdoada e todo o mal será vencido;

– um Reino em que os pobres, os famintos, os aflitos, os oprimidos, poderão enfim levantar a cabeça; acabarão também a dor, o sofrimento, a morte;

– um Reino difícil de descrever: falam melhor dele as parábolas da Nova Aliança, da semente que germina, da seara madura, do grande banquete, da festa real;

– um Reino de justiça completa, liberdade total, de amor a toda a prova, de reconciliação universal, de paz eterna.

E é neste sentido que falamos que o Reino de Deus será um tempo de salvação, tempo de plenitude, tempo da total presença de Deus: este será o Futuro! É para aí, para ele, que tudo caminha!

Jesus anunciou este Reino para muito próximo. É verdade que acreditamos que este Reinado de Deus sobre o Mundo começou com Jesus. Mas não se realizou definitivamente. Os primeiros cristãos, na continuidade de Jesus, também esperavam o aparecimento do Reino para os anos da sua vida. E o Reino não veio na sua plenitude. Enganaram-se. Havia uma perspectiva histórica errada. Em Jesus também parecia haver esta perspectiva histórica errada. Mas Jesus não podia errar? A Carta aos Hebreus diz que ele é igual a nós em tudo excepto no pecado; e o Concílio Vaticano II reprovou um texto proposto em que se pretendia dizer que Jesus é igual a nós em tudo excepto no pecado e na ignorância. O que significa que a Igreja admite que Jesus possa ter sido vítima da ignorância como os homens, segundo os conhecimentos científicos do tempo.

Ora, a verdade é que Jesus admitia a narrativa da criação do mundo como se ela fosse histórica, como toda a gente até há bem pouco admitia. Mas, apesar de haver um erro histórico, ela não deixa de ser verdadeira: Deus esteve no início da História do Mundo; o que significa que o passado pertence a Deus. Também no que respeita ao fim dos tempos, apesar de ter havido um erro de perspectiva histórica (Jesus estava inserido no contexto dos apocalipses judaicos), não deixa de haver também verdade: o Futuro pertence a Deus, apesar de não sabermos como é que ele vai acontecer, as formas científicas e históricas do seu aparecimento. Neste aspecto, tanto como para os primeiros tempos, é preciso desmitizar os últimos tempos, para não cairmos em erros históricos e sabermos destrinçar o que é verdade teológica e verdade histórica! Não confundir!

Aceitar que Deus está no nosso Futuro, no Futuro do Mundo, implica que se estabeleça uma tensão entre o presente e o Futuro, pois que o presente é uma preparação para o Futuro. É aqui que se enquadra a conversão. Dois aspectos:

— Este Mundo de hoje é imperfeito, está cheio de contradições e de injustiças, de males de toda a ordem. Está repleto de desumanidade, para [poder] ser aquilo que nós esperamos: a realização do homem todo e de todo o homem. Isto é: nós vivemos em tensão para o Futuro, acreditando que aquilo que Jesus começou, também ele o levará a seu termo, acabando a obra iniciada. Nele tudo será consumado, quando todas as coisas atingirem a unidade em Cristo.

— Mas é muito importante que o Futuro não nos aliene. Não vivemos apenas para o Futuro como se o presente não existisse. O Futuro remete-nos para o presente a fim de o transformarmos e irmos, desta forma, preparando e apressando o seu acontecer. O mundo presente deve ser não só interpretado em função do Futuro, mas deve ser transformado em função do Futuro, já que Jesus não veio ensinar uma teoria sobre como interpretar o Mundo e o Homem, mas ensinar a transformar o Mundo e o Homem: criar o Homem Novo que todos ansiamos.

«O que Jesus pretendia? Jesus quer um Homem Novo, diferente, com uma orientação totalmente nova, com uma mudança radical da sua consciência, com um novo pensamento e uma nova acção. Mas isto temos nós ouvido muitas vezes dizer. Que significam estas expressões?

1. Jesus quer um Homem que sirva apenas ao Deus Iavé, o único Deus verdadeiro! Por isso não pode servir a dois senhores. Nem ao dinheiro, nem às honras. Nem mesmo aos pais quando estes aparecem como concorrentes de Deus. Neste campo reina a espada e não a paz. Por isso se impõe uma conversão ao Senhor como único Senhor. Metanoia = conversão: transformação da vontade e adesão a uma outra escala de valores, os valores de Iavé.

2. Deus quer o Bem do Homem. Não apenas o bem imediato, mas o Bem de todo Homem; Deus quer a Dignidade do Homem, a grandeza do Homem, isto é, a realização total do Homem, a sua Salvação! Foi isto que Jesus veio anunciar. Deus não é visto por Jesus sem o Homem nem, muito menos, contra o Homem, mas ao seu lado. Por isso, não se pode, depois de Jesus, ser piedoso (= estar ao lado de Deus) e ao mesmo tempo ser desumano (= contra o Homem).

3. Tudo é relativizado em favor do bem do Homem: a Lei, o Templo e os ritos cultuais, o ascetismo do jejum, o cumprimento do sábado… O Homem, depois de Jesus, passa a ser a medida da Lei e não a Lei a medida do Homem! Para conseguir estes objectivos, Jesus torna-se tremendamente combativo.

4. Amar a Deus com todo o coração e ao Próximo como a nós mesmos. Sem ser a mesma coisa, amar a Deus e ao Próximo, estes dois objectos do amor não se confundem como se fossem a mesma coisa, mas também não se opõem. Podemos dizer que, depois de Jesus, ambos os objectos do amor exigem: amar a Deus exige que amemos o Próximo e, vice-versa, amar o Próximo exige que amemos a Deus. Os homens não se amam apenas porque se ama a Deus: são amados por si mesmos, por aquilo que valem! Próximo é aquele que precisa de mim.

5. Jesus insiste na importância de amar os próprios inimigos, preceito que ninguém mais tinha ousado pronunciar. O amor não tem fronteiras, porque Deus também ama todos os homens. Por isso enuncia a regra de ouro, tanto na sua formulação negativa (“não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”) [1] como na positiva (“faz aos outros aquilo que quiseres que te façam a ti!”)».


[1]. O que efectivamente não é verdade, pois que a regra de ouro, na sua formulação negativa, não aparece na boca de Jesus: é uma formulação rabínica anterior ao Novo Testamento. 

Texto publicado em Arlindo de Magalhães, Padre Gaspar. A via do trabalho e da pobreza. Coimbra 1998.