Comensalidade

Mosaico da ‘Igreja da Multiplicação’, Tabgha-Israel

Mosaico da ‘Igreja da Multiplicação’, Tabgha-Israel

Lévi-Strauss (1908-2009), um conhecido antropólogo belga do nosso tempo, sem papas na língua, deixou dito que “o comer é a alma de toda a cultura”: “Em todas as culturas, simples ou complexas, comer é a primeira maneira de iniciar e manter relações humanas… Saber quem, onde, como, quando e com quem alguém come é conhecê-lo”. É que, ao comer, o homem estabelece uma relação primária com a Natureza, mas também consigo mesmo e com os seus semelhantes. Outro antropólogo, La Verdière (1902-1991), remata a questão assim: um almocinho “não é tanto uma questão de alimentos quanto de pessoas”! Podem ir a Barcelos comprar uma Ceia de Mistério, como a que vocês me deram em 1980, ou ver A Ceia de Leonardo Da Vinci, em Milão, que tanto basta para perceber o já dito!

Por isso, nas nossas casas, a Mesa é sempre o centro. Já o era, e há muito tempo, no tempo de Jesus. Já Abraão tinha dito aos três homens que lhe passavam diante da tenda…: “Vou buscar pão e, restauradas as forças, prosseguireis depois o caminho…!” (Gn 18,5), e Isaías que “no monte Sião e para todos os povos, o Senhor do Universo preparará um banquete de boas carnes boas e vinhos finos” (25,6). E já Platão, o grande filósofo da Grécia antiga, séc. IV antes de Cristo, tinha escrito O Banquete durante o qual os convidados discutiam O que é o Amor? Era já assim ao tempo de Jesus; não esqueçam — repito — que “o comer é a alma de toda a cultura”.

Jesus comia, muitas vezes e com gente muito variada. Tantas que rapidamente o acusaram de “Comilão e bebedor de vinho” (Mt 11,19 e Lc 7,31). Jesus comia e bebia com os seus contemporâneos. Ia a casa dos ricos: foi à de Levi (Lc 5,27-39), à de três fariseus (Lc 7,36-50; 11,31-54 e 14,1-35), mesmo à de Zaqueu (Lc 19,1-10)… Mas comia também e sobretudo com os mais pobres. De uma só vez 5.000, fora mulheres e crianças! Mas também com os pecadores e com gente de má nota: “Porque come o vosso mestre com os publicanos e os pecadores?” (Mt 9,11).

A desigualdade histórica dos homens traduziu-se sempre na existência de pobres e de ricos, de sãos e de doentes, de senhores e de escravos, de cultos e de manuais. E por isso Jesus introduziu na sua prática a comensalidade com todos, para que os “pés debaixo da mesa” pudessem fundamentar uma solidariedade fraterna que não esquecia os que “andam por caminhos e atalhos” (Lc 14,23), expressão que hoje se pode traduzir-se por “os sem abrigo”.

Pode assim imaginar-se a força verdadeiramente revolucionária e contracultural da comunidade cristã primitiva. Tentativas de conseguir o  reino que Jesus queria: um reino que pudesse realizar a refeição fraterna e abundante dos irmãos reconciliados. E por isso, ao sair de uma comida em casa de um “fariseu notável” aonde tinha entrado “para uma refeição” (Lc 14,1), Jesus disse assim: “Feliz aquele que se sentar à mesa do Reino de Deus” (v. 15). É outra maneira de dizer “Bem aventurados os pobres porque deles é o reino dos céus”. Só haverá Reino dos Céus quando os pobres se saciarem sentados à mesa do banquete. Só então se cumprirá a palavra: “os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Nova” (Luc 7,22).

O seu tempo acusou-o de comedor e bebedor de vinho (Lc 7,34, etc) pois que as comidas de Jesus eram sinais de perdão e integração gratuitos, sem nada de legalismos, nem purezas ou de discriminações. O Novo Testamento fala-nos delas, e também da prática das primeiras comunidades que praticavam deste modo a fraternidade e assim antecipavam o Reino dos Céus. Ouçamos São João Crisóstomo, o João “Boca de Ouro”:

“No velho mundo, o rico prepara uma mesa esplêndida e goza abundantemente dos seus deleites, enquanto que a pobreza impede o pobre de desfrutar luxos semelhantes. Entre nós, pelo contrário, quando celebramos a Eucaristia, as coisas são muito diferentes: há uma mesma mesa para o rico e para o pobre. Tanto o imperador como o mendigo que pede esmola têm posta a mesma mesa. Quando vires no interior da igreja, o pobre juntamente com o rico, o plebeu com o magnate, o que lá fora treme diante do príncipe sentado cá dentro, sem nenhum temor, ao lado dele, repara que começa a cumprir-se aquele profecia que diz: Então (quando chegar o Reino de Deus) apascentarão juntos o lobo e o cordeiro” (Is 11,6).

No relato evangélico de hoje, houve uma “comida” mas não havia casa nem mesa. Mas estendia-se já uma situação complicada. O Senhor tinha morrido, o túmulo tinha estado ou estava ainda vazio, dizem — algumas, sobretudo, mas também alguns — que tinha ressuscitado… Os discípulos não estavam todos, é verdade, apenas sete, mas muito desanimados: Simão Pedro, Tomé, Natanael, os dois filhos de Zebedeu e mais dois discípulos. Entre eles, Pedro, saliente-se! Tão desanimados que voltaram à pesca, retornando portanto ao passado. E depois… “Lançaram as redes…, grande quantidade de peixes….” e João arrisca: é “o Senhor”! Logo de seguida, “quando saltaram em terra, viram brasas acesas com peixe em cima, e pão. Vinde comer!” (Jo 21, 9.13).

E o que se havia quebrado com a morte e mesmo a ressurreição — que ainda não era certeza, podia lá ser?! — de imediato se restabeleceu, nomeadamente com Pedro. Por isso, “nenhum dos discípulos se atreveu a perguntar-lhe Quem és tu? Bem sabiam que era o Senhor!”. E ele “tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com os peixes!”. Onde é que eu já ouvi isto! Pronto!, não explico mais. Os mais velhos lembram-se do peixe assado? Foi assim! Exatamente assim!

Arlindo de Magalhães, 10 de Abril de 2016

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *