Como foi possível?

Grace Carol Bromer, ‘The Four Evangelists’
https://gracebomer.wordpress.com/

Muitos dos primeiros conheceram Jesus pessoalmente; outros conheceram os que tinham conhecido Jesus; e assim por diante. Ele era o filho de Maria e do carpinteiro. Mas praticamente todos os primeiros, com excepção de Pedro – digamos assim (ver Mt 16,13-16) – só depois da ressurreição confessaram a divindade de Jesus.

Naquele tempo, ninguém sabia a data do nascimento de ninguém. Nem os primeiros cristãos tiveram grande disponibilidade no que a Jesus respeitava porque conviver com o paganismo lhes levava o tempo todo e dava conta da cabeça, para mais num Estado de direito em que religião e política se misturavam, fosse na Palestina, ou noutra parte qualquer do Império. Um pouco mais tarde, as coisas pioraram ainda: começaram a ser perseguidos (pelo estado romano). Mais difícil do que conviverem com o paganismo, foi para eles como sobreviverem no meio da perseguição. E em tempo de guerra não se limpam armas!

No séc. IV, porém, ano 313, a liberdade religiosa foi decretada no Império: o estado romano já não podia viver nem contra os cristãos nem sem eles, que já eram mais que muitos.

A partir daí, a Igreja começou a poder existir legalmente, à luz do dia: foi-lhe então possível organizar-se e – importante ainda – reunir-se. E, passados 12 anos, então sim, começou a preocupar-se com a questão da humanidade e da divindade de Jesus. Como podia ser, Deus e homem ao mesmo tempo? A pedido do próprio Imperador, a Igreja congregou-se então em Niceia, ano 325 (1º Concílio ecuménico) para debater a questão: Jesus era um homem normal, um super-homem, ou Deus também? Concordaram então os eclesiásticos, os reunidos (porque eclesía quer dizer reunião), que ele era “consubstancial ao Pai”, digamos que, feito da mesma substância que o Pai. Foi esta a expressão mágica então encontrada para o dizer. Esta palavra substância, aqui e naquele tempo, não implicava materialidade: que Jesus fosse da substância do Pai, feito do mesmo que o Pai, queria dizer que era igual ao Pai. Niceia tentou explicar melhor: “Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai, isto é, da mesma substância que o Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, nascido, não criado, embora todas as coisas, as do céu e as da terra, tenham sido criadas por ele. Por nós homens e para nossa salvação desceu, incarnou e fez-se homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia” (da declaração de Niceia).

Mas foi só andando da Páscoa para trás que os primeiros, olhando a excecional humanidade de Jesus, concluíram que, de facto, ele era verdadeiro Deus, Filho de Deus.

A reflexão não pararia aqui, no entanto: os tempos possibilitavam que se fosse muito mais longe na reflexão. Se em Niceia se andou da frente para trás, da Ressurreição para a vida vivida entre a Galileia e Jerusalém, logo de seguida se começou a pôr tudo muito direitinho, mas agora já do princípio, do nascimento para a Cruz e Ressurreição, nascido que fora de Maria, que crescera depois em sabedoria, estatura e em graça diante de Deus e dos homens, tudo isto em casa de seus pais (Lc 23,51-52). E, assim sendo, toca de celebrar o seu nascimento, o Natal.

É de 254, 29 anos apenas depois de Niceia, a primeira notícia de que, em Roma, já se celebrava o Natal. Foi tudo muito rápido. E, então sim, tudo muito direitinho, pôde dizer-se assim: “Por nós homens e para nossa salvação, 1º – desceu do céu, 2º – incarnou no seio da virgem Maria, 3º – fez-se homem, padeceu e 4º – ressuscitou ao terceiro dia”. De trás para a frente.

Mas… como foi isto possível? Como pôde Deus ter nascido? Recordo-me daquelas palavras emocionadas que o escritor cristão primitivo pôs na boca de José: “Como é possível? Como é possível ter forma de criança Aquele que criou todos os seres? Como pôde fazer-se pequeno na terra Aquele que é grande nos céus? Como pôde um estábulo conter aquele que contém todo o universo? Como podem estes bracitos ser envolvidos em panos, se é o seu braço que governa o céu e a terra? Como é isto possível?” (Analecta sacra 1,229).

Começou aqui a magia do Natal. Neste mesmo séc. IV, Atanásio (c. 296-3739, o santo bispo de Alexandria que estivera presente no Concílio de Niceia, o “martelo do arianismo” (o arianismo negava a divindade de Jesus), tinha tido necessidade de precisar: “Estas coisas não se realizaram de maneira fictícia, como disseram alguns. Longe de nós tal pensamento! O nosso salvador foi verdadeiramente homem, … era verdadeiramente humana a natureza do que nasceu de Maria segundo as divinas escrituras: era verdadeiramente humano o corpo do Senhor. Verdadeiramente humano, quero dizer, um corpo igual ao nosso” (Sermão 1 para o dia de Natal).

E que fizeram os cristãos para celebrar o nascimento deste homem que confessavam ser Deus? Muito simples.

Os cristãos conviviam ao tempo com uma grande festa pagã que movimentava toda a Europa e se celebrava a 25 de Dezembro: era a festa do início da estação do Inverno (que começa quando os dias começam a crescer e o sol a levantar-se progressivamente mais alto na linha do horizonte), a festa do Natalis Solis Invicti (Nascimento do Sol invencível). Os cristãos substituíram-na então, sem qualquer tentação de triunfalismo, pela festa do Natalis Solis Iustitiae (Nascimento do Sol da Justiça), como tinha chamado o profeta Malaquias (4,2) ao Messias que havia de nascer. Uma mesma festa com conteúdo diferente: os pagãos celebravam o astro Sol, os cristãos aquele cujo “rosto resplandecia como o sol” (Mt 17,2).

Saídos da clandestinidade, terminada a perseguição, os cristãos afirmavam-se: e se, desde o princípio, a Páscoa era ponto firme da sua celebração, ela ganhou um novo alento com a celebração do Natal, que, a partir de então, a Igreja nunca mais dispensou. Porque Jesus não é só o ressuscitado, é também o nascido. Não é só Deus, é homem também. Não é só Filho de Deus, é também Filho de Maria, sua Mãe, como haveria de ser dito 100 anos depois de Niceia, em Éfeso, no ano de 430 (3º Concílio ecuménico). Foi este o século da grande reflexão cristológica que, pelos séculos fora, não deixou de se fazer sentir noutros domínios, na iconografia, por exemplo.

O Natal não é, por isso, para os cristãos, uma celebração secundária. Por mais voltas que lhe demos, por mais que no-lo digam que é a festa “da família” e “das prendas”, a festa do Natal é a celebração de um Deus que nasceu homem como os homens, por causa dos homens e para salvação dos mesmos homens. A festa do Natal cristão é da comunidade dos cristãos e dos cristãos em comunidade. Nós não podemos passar sem o Natal!

A festa do Natal é uma festa cristã, isto é, dos cristãos. Se não é, é melhor acabar com ela, com a festa do Natal…

Arlindo de Magalhães, 24 de Dezembro de 2017

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