Homilia 2014-09-07

A leitura do Evangelho de hoje faz parte de um discurso – de um ensinamento – de Jesus sobre a atitude da comunidade para com o pecado e o pecador (Mt 18, 6/35).

Não se trata de teoria, são casos práticos, da vida das comunidades: “Se o teu irmão pecar…” (18,15), “se escandalizar…” (18,6), “se me ofender…” (18,21), “que atitude tomar com ele?” (12/18): qual a atitude do ofendido para com o injuriador?, “quantas vezes lhe devo perdoar?” (18,21).

Estamos, portanto, diante da questão das relações no interior da comunidade, de qualquer comunidade, e concretamente do perdão, esse tão difícil e hoje menosprezado comportamento cristão.

Não há comunidade nenhuma, cristã ou outra, que não conheça as dificuldades do relacionamento. Causas de todo o género, problemas atuais ou passados, contos e ditos, diferenças de opinião, incompatibilidades, maus juízos de realidades ou pessoas, maledicência e intrigas, etc.

Talvez não seja inútil recordar o caminho ou evolução da legislação ou mesmo da moral de Israel neste capítulo.

A sociedade primitiva obstinava-se a tal ponto com a falta alheia que só admitia, perante ela, uma vingança exemplar: «por uma ferida, matei um homem; por uma contusão, um adolescente» (Gn 4,23). Por isso a vingança podia ser sete ou setenta vezes maior que a falta (Gn 4,24). Perante isto, a lei de talião – «olho por olho, dente por dente» (Lv 24,20) – foi um avanço enorme, pois que, digamos, exigia já uma paridade na vingança.

Mas o mesmo Levítico daria logo um passo em frente. Se bem que não apele ainda ao perdão, insiste na solidariedade que une os irmãos, o que lhes interditava o recurso aos processos judiciais para regular diferendos: «Não te vingarás nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18). Mesmo assim, o Antigo Testamento só apresenta um exemplo de perdão, David, duas vezes magnânimo para com Saúl (1 Sa 24 e 26).

Ainda assim, seria igualmente o Antigo Testamento a dar outro grande passo em frente: «Não faças aos outros o que não queres que eles te façam a ti» (Tb 4,15).

Mas novidade-novidade, só a doutrina de Jesus: «faz aos outros o que queres que te façam a ti» (Mt 7,12), a célebre “regra de ouro”. Por isso, «assim como o Senhor vos perdoou, perdoai-vos vós também» (Cl 3,13 e 2 Cor 5,20).

O Novo Testamento multiplica os exemplos: o Cristo perdoa aos seus verdugos (Lc 23,34), Estêvão fez o mesmo aos que o apedrejavam (Act 7,60), Paulo idem aspas aos Coríntios (1ª, 4,12/13), etc.

Tudo isto se faz eco de uma descoberta progressiva, de um grande caminho, andado pouco a pouco, durante séculos em cima de séculos, do Levítico ao Evangelho, eco das dificuldades vividas concretamente pelas comunidades mosaicas e proto-cristãs. Mateus, como ouvimos ler, lembrando que o perdão é universal (18,22), tenta dar orientações para a vida comunitária, pois que não há vida que se não confronte com estas questões. As comunidades cristãs não vivem sem problemas: por isso, se bem que se não possa esquecer aquela parte da «oração que o Senhor nos ensinou» – «perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» -, ele recomenda que, sendo inevitáveis em qualquer comunidade os rancores e os sectarismos, é mais importante manter aberta a via do diálogo que proferir uma condenação. Daí as normas de procedimento em casos como os de «se o teu irmão te ofender».

Muitos procuram erradamente numa Comunidade sabe-se lá bem o quê: pertencer a um grupo exemplar e perfeito em tudo, encontrar um ambiente de vida e de fé caloroso e apaixonante de relacionamento fraterno e diferente, encantador e celestial, poder dedicar-se a esta ou aquela atividade, filantrópica ou outra, participar de um ambiente de pura gratuidade humana…. Mas ficam-se por aqui. Depois vem a desilusão.

Porque estar numa comunidade cristã sem ter consciência de que ela é sobretudo um lugar de perdão é sujeitar-se a desilusões. São inevitáveis as palavras que ferem, atitudes em que a gente tem de pôr-se na frente de outro, situações em que as suscetibilidades se chocam. É por isso que viver em comunidade implica cruz: a primeira tentação será sempre a do isolamento, ou mesmo a do pôr-se fora. Quando digo cruz quero dizer um esforço constante de entendimento, de misericórdia (cor miser = coração compreensivo, não julgador) e de perdão. Por isso Paulo dizia aos Coríntios: «Vós, os eleitos de Deus, seus santos e imaculados, revesti-vos de sentimentos de terna compaixão, de benevolência (bem querer), de humildade, de doçura, de paciência: suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, mesmo que algum tenha motivo de queixa de outro. E, acima de tudo, a caridade, que é o vínculo da perfeição. Que a paz de Cristo reine em vossos corações: é este o objeto do apelo que vos reuniu num mesmo corpo. E, por fim, vivei em ação de graças» (Cl 3,12).

Nas comunidades, é preciso dizer isto e viver isto. No mundo, não é assim; resolve-se tudo com agressões e vinganças, tribunais e, por fim, guerras, sejam elas quais forem. Mas «entre vós não será assim» (Lc 22,26). Entre nós vigore o que o Senhor Jesus Cristo nos ensinou: «Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido».

A Igreja, as comunidades, as famílias, as sociedades são na prática lugares ou sacramentos do amor de Deus aos homens e dos homens entre si. Mas todos sabemos como os grandes amores se desfazem muitas vezes em ódios maiores.

(Pe. Arlindo Magalhães)

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