O silêncio é o lugar

Jasper Johns, 'Flag' (1954–55)

Jasper Johns, ‘Flag’ (1954–55)

A porta mora à espera
De perfil se ensombra
E descansa
O degrau é paciência
O umbral anúncio
O silêncio é o lugar
Onde baterão as mãos

Assim inicia Daniel Faria a Explicação das casas, articulação poética que nos coloca no exacto centro da dinâmica da história da salvação. No conjunto dessas composições, dispõe-se poeticamente a experiência do mundo como realidade suspensa, penúltima, tensa e de árdua captação:

[…]

A luz entra sempre de noite.

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.

[…]

Entre a consciência de que «a casa vem das mãos para ficar desabrigada», ou que «mesmo no interior do quarto/ És o lado de fora da casa», e a declaração de uma esperança que o poeta recusa submeter à penultimidade das coisas (Sei bem que não mereço um dia entrar no céu/ Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra), desdobra-se o sentido profundo do mistério do advento.

O advento, enquanto tempo litúrgico referido a uma história de salvação que se realiza em Jesus de Nazaré, não obedece à ritualidade cíclica do eterno retorno do mesmo, como se, em absoluto, não fosse mais do que um exercício dramático de representação de um tempo que se repete de forma monótona. É certo que o cristianismo está inscrito, também na sua disposição cultural, na dinâmica da história religiosa da humanidade, cuja trama ritual se tece, quase invariavelmente, de ciclicidade.

Há uma certa correspondência entre aquilo que cristãmente celebramos e o que, natural e culturalmente, percebemos e representamos da realidade que nos envolve. Há, por isso, uma certa correspondência entre a celebração dos mistérios cristãos e a das dinâmicas da natureza (solstícios, equinócios, sementeiras, colheitas, etc). Mas a percepção do tempo, que o cristão tem, altera por completo a ritualidade cíclica das coisas a que história religiosa da humanidade sempre se habituou, outorgando um sentido radicalmente diferente à celebração dos mistérios cristãos.

Sei bem que nos encontramos já um pouco cansados das frases batidas. Creio, no entanto, que é importante algumas delas revisitarmos, sempre que o sentido das coisas que dizemos e fazemos se encontre em perigo de confusão. Já ouvimos demasiadas vezes, provavelmente, o discurso A Diogneto (séc. II d. C.) e, muito concretamente, esta afirmação: «[Os cristãos] habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira». Para os cristãos dos primeiros tempos, ou para os discípulos da primeira hora, a vida era fundamentalmente um advento, um tempo em tensão, uma continuada espera. Nada, de resto, em descontinuidade com a dinâmica da história da salvação que, desde a consciência da fé de Abraão até à pregação do Baptista, passando pelas vozes proféticas de todos os exílios e êxodos, nos situa a todos numa continuada espera, permanente tensão, advento vital. Tal como dizia Eduardo Lourenço, a propósito desse ocidental combate cultural entre filosofia e poesia:

«A viagem é sem termo. Como Moisés, morremos à vista do que sempre buscamos. […] Só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre, mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito».

Quem senão os poetas para entrever, na opacidade das coisas, a transparência de todas elas? Não serão os profetas, de Isaías a João Baptista, poetas da transparência de todas as coisas? Quem é capaz, senão na loucura poética e profética, como o autor do Apocalipse, de afirmar ter visto «um novo céu e uma nova terra» (Ap 21, 1)?

Na sua lucidez, a um tempo louca e profética, o nosso Teixeira de Pascoaes dizia com a convicção de um místico que «a poesia não está com os sacerdotes do templo; está com os Profetas do Deserto».

Que proximidade é essa de que fala João Baptista no deserto da Judeia?

O Baptista alerta para a necessidade de preparar a vinda, porque está próximo o Reino (cf. Mt 3, 1). Quando foi que deixámos de perceber que essa iminência do Reino nos há-de acompanhar sempre? Quando foi que nos deixámos seduzir pela segurança dos herdeiros, como os descendentes de Abraão (cf. Mt 3, 9)? Em que momento deixámos que essa consciência adventícia perdesse o horizonte da espera e a percepção da penultimidade das coisas face à ultimidade do Reino? O que foi que nos seduziu tanto na ideia da sociedade perfeita para que nela deixássemos cristalizar a realização do Reino, numa identificação algo arrogante com a Igreja? Quando foi que nos esquecemos que Cristo é a Porta e que a porta mora à espera? Quando foi que nos esquecemos que Cristo é o Caminho e que o que define o caminhante são as trinta milhas diárias, como eloquentemente dizia Clive Staple Lewis, no seu Regresso do Peregrino (1933)?

Para os cristãos dos primeiros tempos, ou para os discípulos da primeira hora, a chegada do Reino continuava próxima. Se daqui a um ano nos encontrássemos, escutaríamos a Segunda Carta de Pedro dizer o seguinte: «um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos, como um só dia. Não é que o Senhor tarde em cumprir a sua promessa, como alguns pensam, mas simplesmente usa de paciência para convosco, pois não quer que ninguém pereça, mas que todos se convertam» (2 Pe 3, 8-9).

Para os cristãos do nosso tempo, ou para os discípulos da vigésima quinta, a chegada do Reino continua próxima. Estou convencido de que um certo desânimo que a consciência do retardamento escatológico causou nos cristãos dos primeiros séculos, decorrente da incompreensão de que a proximidade é a da chegada, aliada à paz constantiniana percebida como libertação, conduziu a essa tentação eclesial de tomar por sociedade o que haveria de ser fundamentalmente percebido como comunidade.

A Igreja não é o Reino. A Igreja é o ensaio do Reino, o continuado ensaio do Reino. A Igreja é o advento do Reino. E será tanto mais Reino quanto menos Igreja quiser ser. Entenda-se: será tanto mais Reino quanto melhor for capaz de, como Abraão, se abandonar à Promessa do que virá. Viver à mercê da Promessa é viver à mercê da Esperança. Viver à mercê da Promessa e da Esperança, num continuado ensaio do Reino e em atitude adventícia, é a única forma de realização comunitária.

Dizia o poeta que a casa vem das mãos para ficar desabrigada. A comunidade, enquanto ensaio, é desabrigada e desarrumada, como qualquer casa habitada. Só os museus, no abrigo da sua arrumação, nos dão a ilusão da ultimidade das coisas, na sua pose hierática disposta numa cristalização climatizada do passado. Alguns museus são verdadeiramente interessantes e cumprem a função da memória histórica, fundamental para a leitura do tempo presente e para as possibilidades que o futuro nos abre a cada passo. Mas não são mais do que isso: casas desabitadas. A Igreja é comunidade, e não sociedade. A Igreja é advento do Reino, e não Reino. E será tanto mais Reino quanto menos Museu quiser ser. A Igreja, enquanto comunidade ensaiada do Reino, há-de ser como uma casa habitada, com uma porta que se abre, uma mesa que se põe e com a desarrumação que a visita de um amigo implica, sempre que se abre a porta e põe a mesa. E a Justiça, de que falam o Isaías da primeira leitura e o Baptista do Evangelho de Mateus, é a da porta aberta e da mesa posta, de quem verdadeiramente espera a entrada de quem nos possa desarrumar:

«O amor que se chama caridade que traduz o Ágape, é ele, o Amor de Cristo, que põe a Mesa que faz a Casa, e abre a Porta. Que os latinos traduziram pela bela palavra cáritas. A Caridade, que a Fé morta, falsa fé, má fé, enganou tantas vezes!… enchendo os pobres de esmolas, sem lhes restituir os bens que lhes pertencem. A Caridade é o Amor-que-encarece, amor que faz Justiça! do verbo encarecer, a pérola do Reino, pelo poder e força da Fé que nos justifica tudo o que somos, fazemos e dizemos: a Justiça do Reino dos Céus. Não é o amor dos olhos em branco dos misticismos, mas o Amor que abre os olhos e ama com paixão, a Paixão de Cristo!, os irmãos de Cristo, todos os homens com quem Ele se identificou começando pelos Irmãos mais pequeninos que têm e contêm a presença real e mais visível de Cristo. Amor que é comunhão, comunhão-de-Pessoas que fazem a comunhão-de-Bens». [Leonel Oliveira]

Preocupa-me, por isso, a compreensão museológica da Igreja, que também hoje vive obcecada com a arrumação da casa, fechando a porta, arrumando os pratos e oferecendo a quem nela vive o indispensável para a manutenção. Viver eclesialmente em Advento é viver com a porta aberta e a mesa posta. Quem nos ensinou a escapar da Justiça iminente do Reino? (cf. Mt 3, 7) Viver em Advento é viver à espera, com a porta aberta e a mesa posta…

José Angélico, 11 de Dezembro de 2016

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *