Nas três Leituras (Jr 1,4-10; 2 Tim 4,1-5; Lc 10,1-12), a Liturgia refere-se à missão de todo o enviado do Senhor ao seu povo, pondo em relevo três pontos fundamentais:
- Todo aquele que é enviado é um escolhido de Deus: “Antes que fosses formado no seio de tua mãe — dizia o Senhor a Jeremias — antes do teu nascimento, já eu te havia consagrado” (Jr 1,5). E não objetes que és uma criança, que não sabes ainda falar, porque eu te inspirarei o que hás de dizer a todos aqueles a quem eu te enviar (Jr 1,7).
- Para os homens assim vocacionados, escolhidos por Deus e enviados ao seu povo, a tarefa principal e primeira é pregar a Palavra de Deus, oportuna e inoportunamente e, em seu nome, insistir, repreender, ameaçar e exortar, sempre com paciência. É o que recordava S. Paulo na 2ª Carta que escreveu a Timóteo (4,2).
- Apesar da sua eficácia, apesar de poder ser rejeitada, a Palavra de Deus é um convite livre feito a homens livres. Se, portanto, os homens a não aceitam, se os homens recusam o dom da Paz que ela traz, Vinde-vos embora! — diz o Senhor aos 72 discípulos escolhidos para anunciar a Boa Nova em todas as cidades e lugares aonde ele deveria ir posteriormente (Lc 10,10). Vinde-vos embora e, em gesto violento, mas claro, dirigido aos que rejeitaram a vossa mensagem de paz, sacudi até o pó dos vossos sapatos! Mas, entretanto, anunciai uma última vez a proximidade do Reino de Deus que vós pregais e, assim, se vê rejeitado.
Como Palavra de Deus que é, esta mensagem é para hoje e é para nós.
Amigos e cristãos desta comunidade da Serra do Pilar:
Esta tarefa eu tenho de desempenhá-la em fidelidade absoluta aos princípios postos em destaque pela Palavra proclamada na Liturgia de hoje:
- Antes de mais, como um enviado de Deus ao seu Povo. Terei, portanto, de ser fiel ao seu Espírito, mas livre de toda e qualquer pressão ou influência.
- Depois e primariamente como ministro da sua Palavra que deverei meditar e conhecer, e pregar, oportuna e inoportunamente, instruindo, insistindo, repreendendo e exortando.
- Finalmente, dirigindo o convite livre que é essa Palavra, a homens que a podem receber ou rejeitar. Mas, neste caso, há a diretiva clara do Evangelho de hoje: “Quando entrardes nalguma cidade e aí vos não receberem, saí para as praças e dizei: Até o pó que da vossa cidade se pegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, ficai sabendo: está próximo o Reino de Deus” (Lc 10, 10-11).
É difícil nos nossos dias esta tarefa. Acelerou-se a evolução política, económica, social e cultural do nosso mundo, e a Igreja ficou presa a tempos passados. No desejo reto de ser fiel, deixou-se ultrapassar.
E se sentimos um desfasamento grande face aos tempos, a tentação pode ser dupla: agarrarmo-nos ao passado, às suas formas, às suas estruturas e à sua mentalidade, e tentar fazê-las sobreviver em dias que são os de hoje, pretendendo injetar vida no passado que já não é história, porque esta constroem-na apenas os homens vivos. Esta tentação é muito grande, é real. Apalpa-se a cada momento. Contra isto estou prevenido; vo-lo digo.
Mas a outra tentação é também real: querer para a Igreja aquilo que ela não comporta, pretendê-la fiel a quaisquer homens ou situações de vida que não os de hoje, é igualmente falso.
A tarefa é grande, portanto, mas nem a utopia do possível nem a institucionalização negativa de formas e estruturas podem meter medo àqueles que acreditam no Deus único e vivo, cuja primeira palavra dirigida ao homem acabado de criar foi “Crescei e multiplicai-vos; enchei a terra, sujeitai-a e dominai-a” (Gn 1,28), isto é, recriai-a, reinventai-a.
Esta tarefa que é a humanidade é também para a Igreja parte integrante e essencial desta humanidade, para esta Igreja do nosso tempo envolvida em roupagens antiquadas e antiquantes. Esta tarefa é para nós, cristãos desta vila de Gaia que, se é nova de nome, nova se quer de facto: Vila Nova de Gaia, ou simplesmente Vila Nova, como ainda há bem poucos anos diziam (talvez ainda digam) as gentes simples das aldeias deste concelho. Portanto, rosto novo para esta Igreja que é sempre nova desta Vila Nova, é tarefa para vós e para mim: tarefa que é programa e apelo.
Sempre que é preciso andar caminho novo, corre-se o risco de errar ou, pelo menos, de não acertar totalmente: é preciso também contar à partida com a resistência dos que possam pretender caminhos velhos e estafados, nada abertos portanto ao verdadeiro espírito que, soprando sempre o mesmo sobre a sua Igreja, se manifesta de formas diferentes e novas conforme os homens que constroem os tempos. Vão ser, portanto, muitas as dificuldades.
Vou tomando conta delas pouco a pouco. Algumas conheço-as já. Doutras suspeito. Não valerão paninhos quentes nem reformismos estéreis: as pessoas e as instituições que existem merecem respeito e, certamente, louvor; mas nada poderá ser entrave. E, sempre tudo e em tudo, se procurará no Evangelho a reta orientação para tudo o que se empreenda.
Em mim encontrareis, assim o espero, com a graça de Jesus Cristo, um espírito sacerdotal já temperado por idênticas dificuldades vividas noutros trabalhos e noutras comunidades. Nem elas me farão retroceder num caminho que tem de ser novo para ser fiel ao Espírito de Deus revelado aos homens em Jesus Cristo, mas em cada tempo.
Estas necessidades que existem no seio da comunidade e que, algumas delas, trarão problemas (oxalá que não-compreensões!), não poderão desviar-nos a atenção do meio sociológico que nos cerca. Estamos em pleno coração de Vila Nova de Gaia, em zona que engloba, talvez, a sua maior zona de convívio — a do Mucaba — mas circundada por uma zona de pobreza material (escarpa da Serra, encostada a Santa Marinha, etc), a par de uma outra zona de aparente desafogo material. A todos estes homens, a Igreja é enviada a pregar e a salvar; e nem a urgência de questões internas nos pode fazer esquecer que somos Igreja de Jesus Cristo, portanto evangelizadora, missionária, isto é, enviada a todo o homem e ao homem todo.
…
Esta primeira ideia que vos deixo e que é o programa da ação pastoral que hoje começa aqui, na Serra do Pilar, irá sendo explicada em pormenor e traduzida concretamente, sem falsos escândalos, firme e lucidamente todos possamos ajudar.
A alteração que hoje se introduz na vida da comunidade — esta celebração das 11 horas — quer ser uma primeira realização deste espírito que nos anima.
Queremos conseguir uma celebração de Domingo que seja o encontro alegre e fraterno de homens com fé; queremos uma celebração que tenha lugar no programa da semana e não seja mais ritualismo de um cristianismo sociológico: queremos uma celebração universal como a Igreja, para jovens, adultos e crianças, contanto que sejam todos, gente do nosso tempo; queremos uma celebração que, na alegria da fé e na liberdade de que o próprio domingo é tradução, celebre cristãmente a vida e a mesma fé, recordando a Morte e Ressurreição do Senhor Jesus Cristo.
A celebração não é minha; muito menos se dará espetáculo. Ela será o que a comunidade conseguir. Eu apenas lhe emprestarei o serviço da presidência que como Padre, me compete.
A experiência de anos passados noutras comunidades certamente nos ajudará. Cristãos amadurecidas na fé no seio doutras comunidades prestar-nos-ão serviço valioso de uma ajuda desinteressada e pobre que é a tradução do espírito que une as igrejas locais das quais nasce a Igreja Universal. De todos me cumpre aceitar o serviço que, pobre e desinteressadamente, querem dar: e a alguns particularmente devo agradecer o auxílio que me prestaram em horas bem mais difíceis que esta, de procura, de incerteza e até de alguma dor.
Este trabalho cujo programa tão breve e resumidamente vos deixo. Começa praticamente com a Eucaristia. Nela vai subir para Deus este projeto que, a executar por homens (se for esta a Sua vontade), é obra do seu Espírito presente em nós desde o dia do Batismo. Nela terei presentes as vidas e projetos de quantos fazem parte comunidade.
E vós, pedi por mim também, não facilidades no trabalho, nem a simpatia dos homens; pedi, sim, que, pelo meu ministério sacerdotal, nesta Vila Nova de Gaia e nesta comunidade da Serra do Pilar, o Senhor esteja mais presente na história dos homens.
(Esta foi a primeira homilia que fiz aqui na Serra do Pilar, no dia 3 de Novembro de 1974, faz hoje 45 anos)
Arlindo de Magalhães, 3 de novembro de 2019