A Partilha Fraterna

A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), de Pieter Bruegel (1564-1638)

A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), de Pieter Bruegel (1564-1638)

Claro que reconhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros (Jo 13,35). Por isso, a fé sem obras é morta (Tg 2,17). Claro também que tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos é a mim que o fazeis (Mt 25,40). Também neste campo, a prática dos primeiros cristãos é notável e normativa: de Jerusalém à grande campanha desencadeada por Paulo nas igrejas da Grécia a favor da comunidade primitiva, até mesmo à Igreja de Roma, a quem, exactamente pela sua capacidade de atender aos pobres, foi entregue a presidência da caridade de todas as igrejas.

Pecados? Tiago não foi inocente ao dar um exemplo: Suponhamos que entra na vossa assembleia um homem com anéis de ouro e bem trajado, e entra também um pobre muito mal vestido… (2,2). Nem Paulo aos Coríntios: enquanto um passa fome, outro embriaga-se (1ª, 11,21). Eles sabiam do que acontecia pelas comunidades! Mesmo assim, ao longo do tempo, a História regista a impressionante capacidade da Igreja de, em tempos adversos, animar e inspirar obras de caridade, suprindo, na maior parte dos casos, a inércia e a incapacidade de resposta da sociedade civil. Só já quase no nosso tempo é que uma grande tomada de consciência viria alterar muita coisa: é preciso ir às causas. Por isso,

torna-se necessário um discernimento cada vez mais apurado para captar, na sua origem, situações nascentes de injustiça e instaurar progressivamente uma justiça menos imperfeita. (…) A atenção da Igreja deve entretanto, [também] voltar-se para os novos pobres – impedidos por toda a espécie de dificuldades, inadaptados, velhos e marginais de origem diversa – para os aceitar, para os ajudar e para defender o seu lugar e a sua dignidade numa sociedade endurecida pela competição e pelo fascínio do êxito (Paulo VI – OA, 15).

Neste sentido, escrevia há pouco a Profª Manuela Silva:

Há um paradoxo que atravessa a relação da Igreja portuguesa com a pobreza: é inegável que a Igreja se preocupa com os pobres e está na primeira linha da ajuda directa aos pobres. Mas, enquanto faz isso, tem um défice manifesto em tudo o que se refere à denúncia dos processos de empobrecimento, das situações de injustiça na génese da pobreza e na formação da consciência dos cristãos acerca dos mecanismos da desigualdade e da exclusão.

Partilhar bens (não só nem principalmente serviços e dinheiro) é uma palavra. Ir às causas, outra. Sobretudo nas Comunidades, a terceira.

Uma Igreja que não partilha não responde ainda a toda a exigência da comunhão com Cristo e em Cristo. (…) [Mas] É urgente, cada vez mais, nas nossas comunidades, este espírito de partilha, abrindo-se às necessidades dos irmãos e das outras comunidades mais carenciadas (Bispos Portugueses – Os cristãos leigos…, 1989, 15).

Isto não quer dizer, no entanto, que a Igreja não deva organizar-se neste campo da partilha de bens, quais?, a nível diocesano e nacional. Foi este o espírito que ajudou a nascer entre nós, no já longínquo início dos anos 80, o nosso Serviço da Partilha ou Ajuda Fraterna, carregado de nomes (a Zirinha, o Santos, o Chico, o Rocha, etc) e de méritos. Mas não vivemos do passado. E é este o espírito que precisamos de recuperar.

Duas coisas. O Serviço da Partilha Fraterna da Comunidade não dispensa nem a atenção nem a ajuda fraterna efectiva de cada um dos membros da comunidade, onde for preciso, a quem for necessário. A Ajuda Fraterna é uma obrigação da Comunidade, não apenas do Serviço. Em princípio, o Serviço da Partilha Fraterna apenas poderá responder melhor a algumas situações concretas. Mas não funciona como descarga de consciências individuais.

Segundo. O nosso serviço de Partilha Fraterna está em fase de reorganização. Porque casos novos a exigirem intervenção estão sempre a aparecer. E porque se sente necessidade de reunir num só serviço uma série de capacidades vocacionadas para esta área que não faz sentido nenhum trabalharem cada uma para seu lado. Precisa de dinheiro este Serviço? Sim, precisa de algum dinheiro. Mas não muito. A essas necessidades cada vez mais responde o Estado, via Segurança e Assistência Sociais. A Ajuda Fraterna precisa, sim, de capacidade(s) para ajudar fraternalmente.

As contribuições em dinheiro para a Ajuda Fraterna depositam-se naquele pequeno móvel que está à entrada da igreja, miniatura de um antigo templo, uma pedra por cima, e assim não sabe a [mão] direita o que faz a esquerda (Mt 6,3). E uma vez por ano, neste início do Advento, revertem para ela as ofertas recolhidas numa celebração da Comunidade. Em tempo de Advento, convém recordar sempre: Aquele que há-de vir que é Aquele que já veio, vem hoje. Quando, Senhor? Quando te vimos com fome e com sede, e nu e preso, e te atendemos? (cf Mt 25). Sabemos todos a resposta.

Serra do Pilar, 2003

História da Partilha Fraterna

inventario 18

Móvel da Partilha Fraterna. “A mão direita não sabe o que faz a esquerda” (cf Mt 6,3). Por isso, do dinheiro que ali cai não há contas. Mas, sobre ele, uma pedra por cima.

Ao longo da História tem sido impressionante a capacidade da Igreja de, em tempos adversos, animar e inspirar obras de caridade, suprindo na maior parte dos casos a inércia e a impossibilidade de resposta da sociedade civil. No entanto, foi só quase no nosso tempo que ela percebeu que era necessário ir às causas da pobreza, mais do que curar-lhe as feridas. Escreveu há anos já a Profª Manuela Silva:

“Há um paradoxo que atravessa a relação da Igreja portuguesa com a pobreza: é inegável que ela se preocupa com os pobres e está na primeira linha da ajuda directa aos pobres. Mas enquanto faz isso, tem um défice manifesto em tudo o que se refere à denúncia dos processos de empobrecimento, das situações de injustiça na génese da pobreza, e na formação da consciência dos cristãos acerca dos mecanismos da desigualdade e da exclusão”.

Partilhar bens (não só nem principalmente serviços e dinheiro) é uma coisa; ir às causas, outra.

“Uma Igreja que não partilha não responde ainda a toda a exigência da comunhão com Cristo e em Cristo. (…) “[Por isso,] É urgente, cada vez mais, nas nossas comunidades, este espírito de partilha, abrindo-se às necessidades dos irmãos e das outras comunidades mais carenciadas” (Bispos Portugueses – Os cristãos leigos…, 1989, 15).

Isto não quer dizer, no entanto, que a Igreja não deva organizar-se neste campo da partilha de bens, a nível diocesano e nacional. Foi este o espírito que ajudou a nascer entre nós na já longínqua volta dos anos 70 para os 80 o nosso Serviço da Partilha ou Ajuda Fraterna. Dei-me um dia destes à tarefa de investigar como e quando. A Comunidade tinha nascido nos finais de 1974 e era ainda adolescente. De início não se preocupou com a questão. 4 anos depois, no entanto, estávamos em 1978 (12 de Dez), dissese assim na homilia: “Porque é que a nossa Comunidade tem tido sempre dificuldade em reflectir e levar à prática a partilha de bens, materiais ou de outra ordem, partilha que é, no entanto, absolutamente indispensável em qualquer Comunidade Cristã?”.

No início da Quaresma seguinte, 1979, distribuiu-se a toda a Comunidade um documento – Reflexão para o tempo da Páscoa – dividido em três partes: A Comunidade Cristã, A vida de Caridade e A Partilha de Bens. Na homilia de 5ª Feira Maior desse ano, assim: “Temos falado muito de Partilha de Bens. Mas percebeis, Irmãos, porque é que sempre defendi que fosse a Eucaristia o lugar único de Partilha de bens materiais? É que Eucaristia e Caridade são inseparáveis na vida da Igreja”. E na Vigília Pascal desse mesmo ano: “ Continuamos em mãos com uma reflexão sobre a Caridade Fraterna e a Partilha. E temos de levar à frente esta tarefa. Os grupos que se têm reunido para o efeito continuarão a fazê-lo” (FD 199).

Não foi fácil esta caminhada, a julgar do facto de nos papéis se não encontrarem mais notícias dela. No entanto, em Dezembro desse mesmo ano de 79, publicava-se a primeira de cinco folhas dominicais (226, 227, 228, 233, 444) que, com o mesmo título – “Idosos, reformados e sós” -, noticiavam o movimento que originou a criação de Centro da Convívio da Serra do Pilar. A Comunidade passava aos actos. A par, surgiria uma coisa que levou o nome de “Casos especiais”: “A Comunidade tem sido solicitada em alguns casos inadiáveis, graves e bastante onerosos. … Propomo-nos, portanto, organizar um serviço de Partilha Fraterna que … atenda a estas necessidades” (FD 298).

Em Setembro de 1981, dizia-se na abertura duma Assembleia da Comunidade no início do Ano Pastoral: “A comunidade Cristã vive no espírito de partilha de bens, o que tem de verificar-se, antes de mais, no seu interior”. E em 2 de Maio de 1982: “Para as despesas da Comunidade, o dinheiro não chega, temos saldo negativo. Pelo contrário, para a Ajuda Fraterna, tem chegado, embora também só possamos atender a alguns casos mais graves e urgentes”. Nesta altura, estaria, portanto, já estruturado e em funcionamento o grupo da Partilha Fraterna. Tanto assim que o arquitecto Zé Nobre desenhou e Pai Carvalho executou o móvel dito da Partilha Fraterna que ali está, à entrada da igreja, para ser apresentado à Comunidade no dia 5 de Dezembro de 1982.

A Folha dominical desse dia publicou os desenhos do Zé Nobre e sua interpretação. Em título, [Móvel da] Partilha Fraterna. Só que, nesse 5 de Dezembro, um domingo, ninguém o viu ou olhou para ele: todos os que entravam na igreja eram imediatamente agredidos com a notícia “O Sr. Santos morreu”. Quem era o Sr. Santos? No Livro da Vida está escrito assim:

“Ele foi dos primeiros que entre nós se encarregaram deste serviço (PF) comunitário. A grandeza de estatura que inegavelmente tinha entre os Irmãos, homem de coisas essenciais que com elas unicamente se ocupava, ajudou a que, com a discrição que lhe admirávamos (dava-se sempre pela sua falta quando não estava), um Serviço que nascera contestado se tivesse afirmado pela Partilha generosa dos Irmãos”.

Um ano depois da sua morte, decidiu-se que o 2º domingo do Advento, em princípio o mais próximo do 5 de Dezembro, o dia da sua morte, fosse, entre nós, o dia da Partilha Fraterna. Quando, em 2002, o Serviço da Partilha Fraterna se esvaziou de responsáveis houve que, imediatamente, responsabilizar outros, que uma Comunidade Cristã, seja ela qual for, não pode estar sem Partilha Fraterna. Porque Ele anda por aí com fome e com sede, sem abrigo de qualquer espécie, nem de roupa. O Serviço da Partilha Fraterna da Comunidade não dispensa nem a atenção nem a ajuda fraterna efectiva de cada um dos membros da comunidade, onde for preciso, a quem for necessário. Porque a Ajuda Fraterna é uma obrigação da Comunidade, não apenas do citado Serviço.

Em princípio, a Partilha apenas poderá responder melhor a algumas situações concretas e especiais. Mas não funciona como descarga de consciências individuais. Viria depois o Banco Alimentar. Não é fácil e exige muita disponibilidade. E que bem funciona! E sempre a mão esquerda sem saber o que faz a direita (Mt 6,3). Porque estas coisas esquecem e há sempre alguns que o não sabem, digo ainda que todas as contribuições em dinheiro – mesmo o € semanalmente jejuado – destinadas à Ajuda Fraterna, se depositam naquele pequeno móvel que está à entrada da igreja, miniatura de um antigo templo. Hoje é diferente: hoje, até as ofertas a recolher de imediato se destinam à Partilha Fraterna. Em tempo de Advento, convém sempre recordar: Aquele que háde vir é Aquele que já veio, e o mesmo que vem hoje. “Quando, Senhor? Quando te vimos com fome e com sede, e nu e preso, e te atendemos?” (cf Mt 25). Sabemos todos a resposta.

Homilia na Serra do Pilar, 2011.12.04, 1º domingo do Advento