O Verbo

Depois da cena bíblica do Jordão (Jo 1,31-34), Jesus retirou-se para a Galileia quando ouviu dizer que João Baptista tinha sido preso. Simples precaução, fugir para longe de Jerusalém, para Cafarnaúm, muito ao Norte, nas margens do Lago de Genesaré? Talvez. Foi aí que tudo começou, relata Mateus. A sua mensagem era simples: «Arrependei-vos, porque o Reino de Deus está próximo» (Mt 3,2). E «o povo que andava nas trevas viu uma grande luz», tinha dito já Isaías (9, 2).

Com o Baptista preso, Jesus tomou a palavra e começou ele a falar. 

Os primeiros perceberam logo que ele tinha que dizer. Ensinava «como quem tem autoridade e não como os doutores da Lei», dirá Mateus, quase logo a seguir (7, 29), embora Marcos o refira muito mais cedo (1, 22), exactamente a propósito do que começou a acontecer em Cafarnaúm: «Maravilhavam-se com o seu ensinamento, pois os ensinava como quem tem autoridade e não como doutores da Lei» (Mc 1,22). Foi por isso mesmo que, no exórdio do seu evangelho, que substitui o relato da infância dos sinópticos (os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas), João começou por dizer ou disse tudo doutra maneira, logo no início: «no princípio, era o Verbo», a “Palavra” (Jo 1,1).

Este vocábulo “verbo” quer dizer “palavra” (é desta raiz – o verbo – que vem a expressão verbal, a verborreia e o verbalizar). Há muitas espécies de Palavra: de honra!, paleio ou conversa fiada, palavra mentirosa, etc. Por isso ela é sempre de alguém. Quem disse isso? E tu acreditas? De é uma preposição que indica posse ou origem. A palavra de Jesus é palavra de Deus. Por isso é que nós dizemos, quando professamos a fé, que Jesus «é Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro».

Antes dele, «Deus falou aos nossos pais muitas vezes e de muitas maneiras nos tempos antigos, mas nestes, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho» (Heb 1,1-2). 

Jesus, portanto, o nascido que tomou um nome antigo do seu povo, foi desde logo percebido como Verbo ou Palavra de Deus. Não era uma palavra qualquer, não dizia uma palavra sua, a sua palavra era de Deus. Era a Palavra de Deus.

Ora vamos lá dar o salto. Quem pode dizer a palavra de Deus senão um filho seu? «Quem conhece o Pai senão o Filho?» (Mt 11, 27). De facto, «quem não honra o Filho não conhece o Pai» (Jo 5, 23), porque «eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30), e «quem me vê, vê o Pai» (Jo 14, 8). 

Não há dúvida nenhuma – esta é a nossa fé – que Jesus é Filho de Deus. Mas não podemos esquecer que S. João nunca se preocupou com as questões da sua geração e do seu nascimento, afirmando logo à cabeça que «no princípio, era o Verbo» de Deus, e dizendo dele exactamente isto: «A Deus nunca ninguém o viu. O filho unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, é que o deu a conhecer» (Jo 1, 18). 

Palavra de Deus, portanto, e, também portanto, Filho de Deus. 

Precisamos saber o que acreditamos para não destruirmos a fé: «Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro! Gerado, não criado, consubstancial ao Pai».

Proclamação de Natal

Recordo-vos, Irmãos, a Boa Notícia,
a grande alegria há séculos dada a todo o Povo;
escutai-a com coração alegre:

Haviam passado milhões e milhões de anos
desde que, no princípio, Deus criara o Céu e a Terra.
Milhões e milhões de anos desde o momento em que
surgira o Homem, criado à Imagem e Semelhança de Deus
– Homem e Mulher –
para que fosse senhor das maravilhas do Mundo
e, contemplando a Criação, louvasse
em todo o Tempo ao seu Criador.

Depois, ao tempo que nascia a História,
Abraão, nosso pai na Fé,
escutando o chamamento de Deus,
partiu à procura de uma terra nova,
dando assim origem ao Povo escolhido.

Moisés conduziria os filhos de Abraão
na travessia a pé enxuto do Mar Vermelho,
libertando o Povo da escravidão do faraó,
tornado assim imagem do Povo de baptizados.

Cerca de 1.000 anos antes da grande noite,
David, um pobre pastor
que guardava os rebanhos de seu Pai Jessé,
fora ungido pelo Profeta Samuel
como o grande rei de Israel;
uns 300 anos depois,
Israel, que havia reincidido nas infidelidades de seus pais,
não prestando atenção aos mensageiros de Deus,
seria deportado para a Babilónia;
mas seria aí que, no meio dos sofrimentos do exílio,
aprenderia a esperar um Salvador
que o libertasse da nova escravidão,
Messias que os profetas anunciaram
e que haveria de instaurar uma nova ordem de paz e justiça,
de amor e liberdade.
“Brilhará o sol da Justiça”, gritaria Malaquias.

Finalmente, durante a 94a Olimpíada,
no ano 752 da fundação de Roma
e no 14o do imperador Augusto,
quando no mundo ocidental reinava a “pax romana”,
há 2010 anos, portanto, na contagem da era cristã,
em Belém de Judá, povoação humilde de Israel,
ocupada então pelos romanos,
num presépio,
porque não havia lugar para eles na hospedaria,
de Maria, esposa de José,
da casa e da família de David,
nasceu Jesus, Deus eterno, Filho do Eterno,
“verdadeiro Deus e verdadeiro Homem”,
chamado Messias e Cristo,
o Salvador que todos esperavam.

Ele é a Palavra que ilumina todo o Homem;
por ele foram criadas, no princípio, todas as coisas;
e Ele, que é o Caminho, a Verdade e a Vida,
habitou entre nós.

E nós, que acreditamos nele,
reunimo-nos nesta Noite santa, ou melhor,
Deus reuniu-nos nesta Noite santa,
para celebrarmos com alegria
a solenidade do Natal
e proclamarmos a nossa Fé em Cristo,

(Proclamação do Natal, adaptada do costume da liturgia hispânica)

Esperança

«O que espevita a nossa Esperança situa-se ao nível dos Sinais dos Tempos. Cada acontecimento carrega uma significação que a simples notícia não esgota. Os efeitos, nestes casos os eventos, não estão isolados das suas causas e não são tão inocentes quanto parecem em relação às consequências. Não diz o povo que “quem semeia ventos colhe tempestades”?

O que acontece nestes dias, nacional e internacionalmente, não é de molde a deixar-nos dormir sossegados. Duas coisas tiram o sono a uma pessoa: a alegria e o medo… E também são duas as coisas que adormecem um homem: o desinteresse e a tristeza… Mas os acontecimentos da Actualidade não são de molde a deixar-nos dormir sossegados!

Em relação a estes acontecimentos pode-se dizer que os Cristão deste País, por um lado, não se interessam suficientemente e, por outro, andam demasiados preocupados como toda a gente. Interessados e desinteressados ao mesmo tempo, mas não ao modo como haviam de se interessar e de se desinteressar!… Quero dizer que aquilo que lhes mete medo, não havia de lhes meter medo, e o que não os preocupa muito havia de os ocupar!… É que, em todos estes acontecimentos trágicos, dramáticos, porque carregados de perigos e de ameaças, de promessas e de esperanças, há o lado transitório, passageiro, provisório, e há também o outro Lado, a Dinâmica que já projecta o Presente, para o Futuro. 

A este nível, entre os futurólogos e nós há uma certa parecença. Uma certa parecença só na medida em que, como eles, pensamos o Futuro a partir do Presente. Mas não alinhamos, e eis a diferença fundamental, no Determinismo que vicia os seus cálculos. Nós não adivinhamos nem imaginamos o Futuro em termos materiais. Mesmo que em termos materiais isso seja muito fácil, relativamente fácil, embora fortuito mesmo assim, não estamos interessados nisso, ou melhor, [não estamos] demasiado interessados, já que se as fontes energéticas vão encontrar os seus sucedâneos ou substitutos, ou se os suportes materiais desta civilização de consumo, de esbanjamento e de bem-estar vão falhar e faltar; mas isso não conta muito para o verdadeiro Progresso. Os suportes materiais podem ajudar muito e não ajudar nada. Mas, duma forma ou doutra, não são decisivos! Sejamos francos. Não foi exactamente no tempo da maior abundância petrolífera e desenvolvimentista que a maior fome roeu a Terra nos corpos e nas almas de centenas de milhões de seres humanos? Maior abundância do que a que houve? Não é possível! E, contudo, alguém se encarregou de agarrar as maiores fatias!…

A falha destes suportes materiais não haveria de meter medo nem de preocupar em excesso aqueles que aprenderam a enfrentar a própria Morte. Podem morrer milhões e milhões de pessoas de fome e de sede?! Já morreram! Isso já foi feito, e no tempo da abundância!!! É assim, foi sempre assim, que ELES contiveram a insubmissão dos pobres e dos profetas. ELES? Sim, Eles, os Senhores da Economia, da Política, do Poder e da Força. Com o medo da Morte, ELES sempre tolheram os Vivos. Mas a falha destes suportes materiais não haveria de nos meter medo, nem de nos preocupar em excesso. Não é assim que agora nos falam de “austeridade”?… Sempre nos falaram de austeridade e de sacrifícios, ELES que nunca conheceram nem austeridade nem sacrifícios, nem nunca souberam o que é a fome, a sede e as lágrimas… Os portugueses gastam mais do que produzem? Que portugueses? Sim, há portugueses que gastam mais do que produzem, e nós conhecemo-los! 

Meus Irmãos! É o Advento, estamos no Advento: tempo das GRANDES ARRUMAÇÕES. O Advento é o Tempo da Espera. Não é que só esperemos no Advento, mas no Advento concentramos a Esperança.

QUE esperamos nós? Ou, melhor, QUEM esperamos nós? PORQUE esperamos? Sim, esta é a última pergunta e a Última Palavra dada a todos quantos nos interrogam sobre as razões da nossa Esperança.

Mas há uma Esperança?! Para a Terra?! Ou não há?! Uma Esperança reservada para o Último Dia!… Essa é a Esperança Final. Quando faltarem todos os suportes materiais, quando tudo parecer perdido, ou (quem sabe?) quando a maior segurança nos alimentar a maior ilusão e o maior engano, então a Esperança Final, a Grande Esperança de quem já nada mais espera, virá encerrar os Tempos e inaugurar a Eternidade para a qual os Tempos nos levam.

Mas há uma Esperança?! Que Esperança? Que esperamos nós nestes dias? Sim, porque também nós corremos…

O que é que nos faz estremecer? O que é que nos faz correr? O mesmo que aos outros? O que é que nos tira o sono? O mesmo que aos outros? É de medo que não dormimos? Ou é de alegria… pelo que esperamos? Andamos sonolentos?! O que é que nos faz dormir? O mesmo que aos outros? O desinteresse?!… Distanciados das coisas da Terra… sonhando em céus imaginários… Ou é a tristeza que nos faz dormir!…»

 

(homilia do Pe. Leonel na Serra do Pilar em 29 de novembro de 1981, também 1º Domingo do Advento)



Timóteo, os católicos e a Bíblia

Habituámo-nos de tal modo a ouvir falar nas duas Cartas de Paulo a Timóteo que nem sabemos quem ele foi. Então Timóteo, hoje!
Timóteo foi um primeiro cristão do tempo apostólico, da cidade de Listra, actual Turquia, filho de mãe judeo-cristã e de pai grego. S. Paulo escolheu-o como seu colaborador e, quando teve de sair de Tessalónica, deixou-o naquela cidade à frente da comunidade local. Encontrámo-lo depois com o mesmo Paulo em Éfeso, cidade donde o Apóstolo o enviaria a Corinto em missão evangélica. Voltaria finalmente a Éfeso a ocupar o lugar de epíscopo da comunidade local.
Timóteo era um rapaz digamos que tímido, tinha pouca confiança em si mesmo. Por isso, Paulo enviou-lhe duas cartas a puxar por ele, deixa-te disso, moço!, aconselhando-o a como dirigir uma comunidade. É a Timóteo que Paulo diz uma palavra célebre: «ninguém faça pouco da tua juventude» (1ª, 4,12).
Na 1ª Carta, Paulo falou-lhe da organização da Comunidade e aconselhou-o sobre como proceder relativamente aos mais variados tipos de pessoas que a integravam. Na 2ª, o Apóstolo, que se sentia já perto do seu fim, disse-lhe do modo como entendia que ele devia cumprir a sua missão, do seu lugar na Comunidade.
Nesta segunda Carta, agora mais em concreto – e reporto-me ao naco acabado de ler –, Paulo fala a Timóteo das dificuldades que ele enfrenta e terá de enfrentar. O seu raciocínio é muito simples: Timóteo tem de impedir os erros que fazem perigar a comunidade. E recorda-lhe então «as perseguições que eu próprio tive de suportar» (2ª Tm, 3,11), que não foi fácil! Vieram-lhe então à memória alguns que, tendo-o seguido, tendo-o mesmo ajudado em situações difíceis, acabaram depois por abandoná-lo para irem atrás de loucuras e teorias: «todos os da Ásia me abandonaram, inclusive Figelo e Hermógemes! E que Deus conceda a sua misericórdia a toda a família de Onesíforo que tantas vezes me confortou, e que nem quando eu estive preso se envergonhou de mim. Tu conheces bem os serviços que ele me prestou em Éfeso! E quando chegou a Roma, procurou-me trabalhosamente até me encontrar! Que o Senhor lhe faça misericórdia naquele dia! [pelo que me fez depois!]» (1,15-18). Nada, portanto, escreve ele a Timóteo, de teorias filosóficas ou cósmicas, de fórmulas mágicas (teria piada traduzir isto em moderno: horóscopos ou outras previsões, bruxas ou médiuns, conselheiros astrais; e depois os teóricos, os bem pensantes que, a determinada altura, seguem uma sabedoria que não é a do Cristo crucificado…).
«Tu, [Timóteo, que nessa altura] seguiste de perto o meu ensinamento, o meu modo de vida e os meus planos, a minha fé e a minha paciência, o meu amor fraterno e a minha firmeza, as perseguições e os sofrimentos que tive de suportar em Antioquia, Icónio e Listra (3,10-11), permanece firme naquilo que aprendeste e de que adquiriste a certeza, sabendo bem de quem o aprendeste» (3,14). Para tal, Paulo dá um conselho a Timóteo: «lê a Escritura que te pode dar a sabedoria que leva à Salvação, pela fé em Cristo Jesus. De facto, toda ela é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (3,15-16). «Assim preparado, lanço-te este desafio: proclama a Palavra de Deus, insiste a propósito e a despropósito, argumenta, ameaça e exorta, com toda a paciência e doutrina» (3,17-4,2).
Este é o texto mais explícito do Novo Testamento sobre o valor e a importância da Escritura. O Homem de Deus, o cristão, que conhece e explora as múltiplas riquezas da Escritura, fica verdadeiramente equipado – como hoje se diz; Paulo escreve preparado – para a vida; e Timóteo para o seu ministério.
A gente lê hoje este texto e espanta-se como é que a Igreja escondeu a Bíblia aos cristãos durante mais de mil anos, impedindo ou no mínimo retardando a sua tradução para as linguagens vernáculas e deixando-se morrer numa língua, o latim, que ninguém falava já, até na maior parte dos eclesiásticos, e todos com uma vela na mão, sem se saber pra quê. Os cristãos desafeiçoaram-se então, desligaram-se, do seu maior tesouro, a Escritura. Os protestantes, apesar de tudo, com 400 anos de prática em cima, já recuperaram, em parte, o gosto pela Escritura. Nós, os católicos… ainda preferimos o terço. A Bíblia, ficámo-nos por uns nacos ao domingo e deixámo-la a muitos não cristãos que a sabem um verdadeiro tesouro do património mundial, não só literário. Que é difícil de ler, a Bíblia?!
Nós, os católicos, ainda não reencontramos a Bíblia. Eu lembro-me sempre do Sr. Santos, ele ainda teve tempo de recuperar e saborear a Bíblia, e de vez em quando, quando ia para o hospital, levava-a sempre, lia-a e punha-a em cima da mesinha de cabeceira. E um dia, o médico, na sua passagem diária pela enfermaria, nunca era o mesmo da hospitalização anterior, assim a modos de meter conversa:
– «Então o senhor é protestante!».
– «Não, senhor doutor, sou católico!».
– «Ahhhh!».
São pouquíssimos os cristãos portugueses – até os padres! – que conhecem a Bíblia; podem tê-la, mas conhecê-la, não.

Comunidade imperfeita

Continuamos com a leitura do evangelho de Lucas a relatar o caminho de Jesus e dos discípulos rumo a Jerusalém. No domingo passado, líamos a parábola do homem rico que constrói novos celeiros para recolher uma grande colheita para muitos anos. Dessa forma, ele acha que o seu futuro está assegurado. Jesus explica como ele está enganado, que os bens recebidos são para ser partilhados, porque ninguém é dono da sua vida nem do seu futuro. A alternativa a construir celeiros para acumular, é partilhar, é despojar-se daquilo que na vida são falsas seguranças e garantias.

A leitura do evangelho de hoje é uma conversa mais intimista, cheia de afeto e de confiança, de Jesus com os discípulos. “Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino”. Pequenino rebanho. São poucos, têm vocação de minoria. Não hão de pensar em grandezas. É assim que Jesus os vê: como um pequeno “fermento” escondido na massa, uma pequena “luz” no meio da escuridão, um punhado de “sal” para dar sabor à vida. Uma minoria fraca e visivelmente frágil, sem apoios, sem influências e sem poderes no mundo. Comunidade imperfeita que precisa continuamente de repreensões e de correções. Mas que não tenham medo – diz-lhes. Que não fiquem paralisados pelo medo nem afundados no desânimo. Porque Deus confiou-lhes o seu reino. É decisivo aceitar esta prova de confiança do Pai e acolher o convite de participarem do seu reinado. Reino, que é dom de Deus, e se converte também em tarefa de um povo.

Das mais diversas maneiras, ao longo da sua vida, Jesus foi-lhes anunciando este reinado de Deus: um mundo novo, feito de irmãos e irmãs, onde a prepotência, o egoísmo, a exploração e a miséria são definitivamente erradicados; um reino onde todos têm vida em abundância; onde todas as dívidas são perdoadas e todo o mal é vencido; um reino de justiça, de liberdade, de perdão, de fraternidade e de paz; um reino onde os pobres e marginalizados têm o espaço que lhes pertence como filhos iguais e amados de Deus. Jesus anuncia o reinado de Deus como tempo de salvação, tempo de plenitude, tempo da total presença de Deus em tudo e em todos. É para aí, é para Ele, que tudo caminha. Por isso, é no reino de Deus que deve estar o nosso verdadeiro tesouro, porque “onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. A paixão pelo reino de Deus. Só assim poderemos colocar os seus valores no centro da vida.

Este é também o desafio que se nos coloca a nós, reunidos em Igreja nos dias de hoje: revelar este Deus e o seu reinado. Somos chamados a ser comunidade pobre entre pobres, onde a partilha do “ter” e do “ser” se apresente como alternativa à acumulação que o mundo propõe – “Vendei os vossos bens e dai-os em esmola. Fazei bolsas que não envelheçam”. Mas continuamos a ser uma Igreja majestosa, rica em bens materiais e envolvida, até, no mundo financeiro. Somos chamados a viver a fraternidade plena, mas continuamos a consentir no nosso seio distinções de classe e de género – leigo e clero, homem e mulher – onde se perde a igualdade que a todos é dada pelo Batismo, que nos torna um só em Jesus Cristo. Marcados pelo clericalismo, as decisões que dizem respeito a todo o povo de Deus, continuam a ser tomadas apenas por um grupo restrito, o clero, o que dá origem a que, muitas vezes, ainda se confunda Igreja com hierarquia. Somos chamados à liberdade, pela Graça, mas continuamos a impor, a nós e aos outros, regras e prescrições, nascidas em contextos sociais e culturais específicos, que se arrastam pelos tempos, e que nada têm a ver com a Boa Nova de Jesus.

“A quem muito se tiver confiado, muito se exigirá; a quem muito se houver dado, muito se pedirá”. Por isso Jesus avisa: estai vigilantes, estai despertos, estai preparados. Surpreende a insistência com que Jesus fala da vigilância. São numerosas as parábolas, em todos os evangelhos, que nos convidam a adotar uma atitude vigilante diante da existência. Um dos riscos que corremos é viver de forma superficial, mecânica, rotineira, massificada. Vamos levando a vida meio adormecidos, criamos até uma certa cultura da indiferença – como diz o papa Francisco. Acostumados também a viver a fé como uma tradição religiosa, uma herança ou um costume, é-nos difícil descobrir toda a força que ela contém para nos humanizar e dar um sentido novo à nossa vida e ao mundo. O apelo de Jesus à vigilância chama-nos a despertar da indiferença e da passividade, ou do descuido, com que vivemos a fé. Porque a esperança cristã é inquieta, anima a responsabilidade e a criatividade, não deixa adormecer – “Tende as vossas cintas apertadas e as vossas lâmpadas acesas”.

Vigiar é um desafio a viver de olhos bem abertos, atentos à realidade, procurando descobrir a presença de Deus na vida e no mundo. É saber ler os sinais dos tempos com o mesmo olhar de Jesus, que se compadecia com o sofrimento das pessoas e em tudo procurava aliviá-las. É crescer na indignação diante da injustiça, da degradação humana, do sofrimento, procurando mudar as estruturas de morte ao nosso redor. Assim são os servos prudentes que o mundo precisa, pessoas de esperança incansável. Homens e mulheres que lutam por um mundo mais humano, um Novo Céu e uma Nova Terra, que não será nunca exclusivo dos nossos esforços, mas sim dádiva de Deus, Aquele em quem encontraremos, um dia, a plenitude.

Carmen Machado

Domingo, Eucaristia e Celebração da Palavra

«A Eucaristia é o centro e a máxima expressão da Igreja» (AG 9), «a fonte e centro de toda a vida cristã…» (LG 11,1), «o centro e o cume da toda a vida da comunidade cristã» (PO 30), «a fonte e o cume de toda a evangelização, o centro da assembleia dos fiéis a que o presbítero preside» (PO 5), «o cume da acção pela qual Deus santifica o mundo em Cristo, e do culto…» (Eucharisticum Mysterium 6), e «a fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura…» (UR 15). «Os pastores … procurem que não se perca de modo nenhum o sentido do domingo» (Eucharisticum Mysterium 28).

Assim falou o Vaticano II. O Domingo cristão, o “primeiro dia da semana”, institui-se já no séc. IV.

Mas como respeitar e celebrar o domingo — centro e cume de toda a Igreja e sua vida — se não há padres? Dantes, só os pretinhos da Guiné e os mestiços ameríndios é que não tinham missa ao domingo… porque não havia padres! Mas agora, há décadas que a carestia chegou à Europa. Como entre nós ainda havia muitos presbíteros, ninguém se incomodou. De vez em quando, vamos rezar todos a Deus, nosso Senhor, que ele nos dê trabalhadores para a sua vinha (Mt 20,1), ao que ele não tem respondido.

60 anos depois do Vaticano II, a Igreja de Jesus não tem pessoal para a vida pastoral. São muito poucos os párocos que a seu cuidado têm apenas uma paróquia, e há já presbíteros carregados com 5, 6, e outras tantas celebrações à sua conta! Será que Deus está a dormir, ou somos nós que não queremos ou não sabemos escutar o que Ele nos quer dizer?

Para além disto, é preciso também perceber que, ano a ano, baixando as tarefas da vida pastoral, sobe o número de paróquias ou comunidades que não têm missa dominical…, porque não há presbíteros.

E assim acontece que lá vão por água abaixo as recomendações deixadas pelo Vaticano II: «Os pastores … procurem que não se perca de modo nenhum o sentido do domingo», pois que a Eucaristia (dominical) é «a fonte e centro de toda a vida cristã…» (LG 11,1), «o centro e o cume da toda a vida da comunidade cristã» (PO 30), «a fonte e o cume de toda a evangelização».

Não há padres, não há Eucaristia.

Quando me chega esse tempo, desapareço, mas, antes de o fazer, deixo tudo preparado para que, quanto possível, se celebre a Eucaristia dominical, ou, quando não pode ser, se celebre uma Liturgia da Palavra presidida por um Irmão da nossa “Com-unidade”, segundo a promessa de Jesus: «sempre que dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles» (Mt 18,20). Não precisam de presbítero: basta que estejam dois ou três reunidos em seu nome! «Eram assíduos ao ensino dos apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e à oração» (Act 2,42).

Assim vai acontecer este ano.

Um povo a caminho

Jesus era um grande caminhante: contam os evangelhos que parte importante da sua vida pública foi para ele uma grande peregrinação a Jerusalém, onde haveria de ser crucificado. Mas desde pequenino: logo depois de nascido, levaram-no ao Templo (Lc 2,22), voltaria lá pelo menos aos 12 anos (Lc 2,42), e a sua vida de anunciador da Boa Nova levá-lo-ia continuamente da Galileia para a Samaria, e depois para o reino do Sul, de Judá, capital Jerusalém.

Jerusalém era uma província romana, mas governada pelo sumo-sacerdote dos judeus, embora subordinado a um prefeito romano. Jesus chega à cidade, entra no Templo do Senhor e espatifa as mesas dos cambistas onde, dentro, se vendia e comprava tudo, sobretudo pombas! (Mt 21,12),ele que … «desceu dos céus» e depois «subiu aos céus», como dizemos no Credo.

Mas já o Pai era assim: sabemo-lo a «descer ao Egipto» (Ex 3,8) ao encontro do povo explorado, logo seguiu à sua frente (Ex 13,21), Mar Vermelho e deserto, mais tarde estaria na Babilónia a visitar o mesmo Povo então exilado e a anunciar-lhe que voltaria em liberdade à sua terra (Jr 29,10) …, enfim, um grande viajante também.

Todas as grandes figuras das Religiões, de Sidarta Gautama (figura-chave do Budismo) a Maomé, foram também viajantes e peregrinos. Viajar, peregrinar, correr países, dizia Fernando Pessoa, é um símbolo do viver humano, bem como um procurar e um encontrar dos outros, indivíduos e culturas, realizações e sonhos. O homem, o verdadeiro homem, não é um parado, um instalado, mas é, em todos os sentidos, um buscador de coisas novas, num mundo todo feito de mudança, e de cada um continuado, um encontrador.

Por isso, em todas as culturas, viajar foi sempre, antes de mais, uma aventura, um peregrinar ou uma deslocação de negócios, e mais tarde até de ócio; mas foi também procura de outros (de contacto com tudo e com todos, com o melhor do seu espírito, a par da descoberta da Natureza). Da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (séc. XVI), que viajou até à Índia por este rio acima; à viagem a Jerusalém da grande Etéria, a mulher galega do séc. IV; de Gonçalo de Amarante, se existiu; dos mercadores venezianos da Meia Idade às deslocações que a sociedade lhes iam permitindo, e muito mais tarde as férias que possibilitaram as viagens modernas a aproximar homens e culturas, religiões, povoações e países, embora a modernidade ainda o viajar à moda, passivamente, originando multidões que vão para onde… calha!

Lembro-me sempre do que se passou uma vez comigo. Fui ao aeroporto acompanhar uma pessoa já idosa, pouco habituada nestas andanças, não encontrava o grupo, aproximava-se a hora… Vi lá ao fundo um grupo com ar de turistas, pensei que poderia ser aquele, dirigi-me a um e perguntei: «Por favor, vocês vão para Roma?» O sujeito pensou, pôs o dedo na testa e tudo, e, depois, de repente, virou-se para o lado e perguntou: «Ó Zé, para onde é que a gente vai?»

O verdadeiro turismo não é um viajar para qualquer lugar, tanto faz, desde que se coma bem!, muitas vezes só para depois se poder dizer que foi. Ia-se aqui ou ali, nem aonde nem porquê. Hoje já não é bem assim…, pois que o homem moderno viaja, visita, descobre, aproxima povos e culturas.

As viagens que na Serra do Pilar temos realizado – de carro, de metro e a pé, caminhadas largas, peregrinações… – têm sido preciosas. Viajar, não por luxo ou porque é costume, e tão pouco de frango e garrafão. Viajar, sim, indo ao encontro de homens ou pessoas, de outras comunidades e à busca de testemunhos visíveis de um passado histórico que nos ajude a entender o presente, de modo a sairmos todos enriquecidos e reconfortados pelo banho de um convívio fraterno. Comunidade cristã que somos, vamos à procura de outras comunidades que, com as suas particularidades, nos ajudem a entender o que é isso de a Igreja de Jesus Cristo ser Católica, isto é, Universal. Claro que, aparecendo lá, até os de lá dão conta…

Iremos este ano a Borba da Montanha, Celorico de Basto, 2 dias (18 e 19 de Junho).

Comer e dormir organizar-se-á. Mas é preciso saber quanto/as pessoas vão no seu carro e talvez possam oferecer boleias (quantas), pessoas, famílias … (no fim das Missas dominicais de Maio, haverá pessoas a tomar nota na porta e saída de entrada da Igreja ou da sacristia).

Borba da Montanha e arredores, do concelho de Celorico de Basto, terra de minha mãe, e um lugar que desde miúdo me disse que o Mundo é muito bom e que, indo ao encontro de outros homens ou comunidades e à busca de testemunhos visíveis de um passado histórico, tudo isso nos ajuda a entender o presente, a sair dele enriquecidos e reconfortados por um banho de convívio fraterno. Comunidade cristã que somos, vamos à procura de outras comunidades que, com as suas particularidades, nos ajudem a entender o que é isso de a Igreja de Jesus Cristo ser Católica, isto é, Universal.

Um Povo

Povo mais numeroso que as estrelas do Céu; Povo de mulheres e de homens cuja condição é a dignidade e a liberdade dos Filhos de Deus, cuja lei é o mandamento novo e que tem por fim o Reino de Deus (LG 9); Povo em que todos são chamados à santidade e cujos membros não conhecem desigualdade alguma, por motivo de raça ou de nação, de condição social ou de sexo; Povo em que, embora nem todos sigam pelo mesmo caminho, reina igualdade quanto à dignidade e quanto à [capacidade] de actuação em favor da edificação do Corpo de Cristo (LG 32).

Somo-lo – um Povo – por força da Ressurreição e pelo Baptismo. 

Um Povo! Um Povo é um corpo vivo, cheio de vida e de força ou gravemente enfermo, com rosto e nome ou de cara tapada e sem capacidade de ver, um corpo criador ou com uma enorme dívida pública às costas, pode ser trabalhador ou apenas importador de emigrantes a quem trata mal, pode ser criador de cultura ou imbecil.

Que povo somos nós? Um povo velho e de velhos, a viver do costume?

Que Igreja somos nós? Acossados de toda a parte, ele é a pedofilia, ele a falta de diálogo interno, a separação entre homens e mulheres, pomos metade para um lado e metade para o outro, a maioria continua a ser leiga na matéria, dizemos que somos todos iguais, mas, de facto, não somos, porque o serviço se tornou poder, somos um povo em que cada vez mais é menos verdade que quem quiser ser grande tem de se fazer pequeno (Mc 10,43) e no qual muitos se pretendem maiores que o nosso Senhor (Jo 13,16), povo em que já não sabemos receber no Reino como os meninos (Lc 18,17), simplesmente porque não há meninos…

…que estou eu pr’àqui a dizer?…

…povo em que somos cada vez menos e mais idosos, porque agora não se pode dizer que  estamos velhos…

Morremos se não nos renovamos. E eu já disse muitas vezes que corpo ou grupo social que se não renova, morre, seja o Futebol Clube do Porto ou a Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo. É verdade que a Igreja não é só corpo social, Povo de homens e mulheres; ela é também mistério e Corpo de Cristo. Mas está sujeita às leis do humano e da vida: nascer, crescer e morrer.

Vamos morrer? Vamos deixar-nos morrer ou somos capazes de reunir os que andam perdidos, distraídos, ocupados com mil e uma ninharias? Ou mesmo: porque não somos capazes de ajudar a encontrar os que andam perdidos e à procura do que nós já encontrámos?

Ou já não se pode dizer isto? Se nós encontrámos a boa Nova de Jesus, porque é que não dizemos onde a podem também encontrar aqueles que a procuram? Se eu sei onde é, porque não o direi a quem o quer saber?

Esta tarefa, este que fazer não é (só) para os outros: esta tarefa é de todos e para cada um. E, se cada um trouxer outro, este corpo velho reencontrar-se-á com a vitalidade que a ressurreição de Jesus e o seu Espírito nos garantiram. 

É a Serra do Pilar capaz de levar a cabo este desafio, de voltar a reunir os que andam perdidos na busca?

Quem somos nós?

No fundo, quem somos nós? O que há de mais louco no Mundo (1 Cor 4, 10)?, o que há de mais fraco (1 Cor 1, 27)? e de mais desprezível (1 Cor 1, 28)?, gente que não dá valor ao que o mundo tem em grande consideração?

Se isto é verdade, das duas uma: ou abandonamos a nossa loucura e encarreiramos na sabedoria do mundo e na prudência da carne, ou continuamos loucos, fracos e desprezíveis e não conseguem mais por-nos em ordem.

De facto, não se trata já de nos pormos apenas à escuta dos sinais do Reino mas de sermos nós próprios pobres sinais do Reino e de pagarmos o preço da nossa ousadia.

Se isto é verdade, das duas uma: ou abandonamos a nossa loucura e encarreiramos na sabedoria do mundo e na prudência da carne, ou continuamos loucos, fracos e desprezíveis e não conseguimos mais meter-nos na Ordem.

Não conhecemos Paulo de Tarso, o que escreveu a Carta que hoje lemos? Era um perseguidor, entre os perseguidores o mais cruel e encarniçado. Mas quando a luz do Reino o fulminou, houve no seu coração espaço suficiente para a Fé entrar e ficar.

E nós: seremos muitos ou poucos?

Que o número não nos engane. Se já os nossos antepassados foram ditos um resto (Is 4, 3; Jer 23, 3), a nós chamaram-nos «pequeno rebanho» (Lc 12, 29, um conjunto muito modesto. Não caiamos na tentação de fazer estatística. Um dia, o rei David ousou fazer um recenseamento; mas com isso provocou a ira de Deus (2 Sam 24). Será que Deus não queria que se soubesse a pequenez do seu povo que tinha projectos demasiado grandes a levar a cabo com meios desproporcionados?

Apesar de «pequeno rebanho», nós somos muito maiores do que nós. Este resto tem a vocação das multidões, numerosas «como as estrelas do céu e a areias da praia» (Heb 11, 12)

A Nova Lei, a Lei da Liberdade, a Carta do Reino de Deus, o Programa de vida dos que se libertaram da lei da morte, como diria Camões («daqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando»), a doutrina do Caminho para a Terra que nos foi prometida em herança, é anunciada a uma multidão faminta e sedenta de Justiça.

É verdade que, por agora, esta multidão é realmente pequena e só um pequeno número de discípulos come o Pão que vem do Pai. Mas a multidão está lá; nós é que, por dificuldades históricas, ainda não fermentamos a massa. E a massa ganhou côdea, por isso não respira, e o fermento, portanto, não fermenta.

Entretanto, a Regra da nossa vida faz as alegrias dos discípulos. Os maus dias já passaram! Já não é preciso fugir para um mosteiro para sermos quem somos, nem para um convento para sermos irmãos (isto é, fratres/frades) uns dos outros. Não precisamos já de procurar um deserto como condição sine qua non de sermos santos. À santidade somos todos chamados, desde o dia do nosso Baptismo que a todos nos fez iguais e, a todos, todos nos chamam às tarefas do Reino (LG 32): «todos os fiéis se santificarão cada dia mais nas condições, tarefas e circunstâncias próprias da vida e através de todas elas» (LG 41). Todos temos vocação de santos: nós que não somos nada, «tudo podemos naquele que nos conforta» (Filp 4, 13), porque fomos escolhidos para confundir os sábios e os fortes (1 Cor 1, 27). Não precisamos de fugir do Mundo para vencer o Mundo, não precisamos de deixar a Igreja para a encontrar, não precisamos de deixar as nossas casas para nos tornarmos “da Casa de Deus”. Por paradoxal que pareça, já não é preciso deixar nem pai nem mãe, nem mulher nem marido, nem irmãos nem irmãs, nem filho nem filha (Mt 10, 37; Lc 14, 26).

Quereis tornar-vos ricos?: tornai-vos pobres! Quereis converter os sábios?: descei ao nível dos analfabetos! Quereis suster os vossos perseguidores?: falai-lhes de Paz. Quereis converter os pecadores?: não vos julgueis melhores que eles! Quereis converter a Terra?: descei ao fundo dela, enterrai-vos!

Eis o programa de vida. 

Como o Profeta, metei-o na boca e comei-o, mastigai-o (Ez 3, 1-3). Inicialmente será amargo, mas depois doce como o mel.

A Igreja, sinal

Hoje, festa da Epifania, é o dia da manifestação ou da revelação de Deus aos Homens: Deus que se revelou em Cristo, e que se apresentou numa criança nascida de uma Mulher, que se mostrou aos pastores, e logo depois aos magos, isto é, aos pagãos. Mais tarde, em outros dois episódios que perfazem uma unidade com estes acabados de referir mostrar-se-ia ainda no Baptismo no Jordão e num casamento em Caná da Galileia onde «manifestou a sua glória» e os discípulos acreditaram nele.

Porque a Igreja é o «sinal, o sacramento e o instrumento de Cristo» (LG 1), esta festa do Filho de Deus que «habitou entre nós» é, também, da visibilidade da Igreja; porque o Cristo se fez visível, a Igreja tem de ser visível. Por isso se diz que ela é Lumen Gentium, a Luz das Nações.

A Igreja torna-se visível na realidade do seu Corpo e das suas acções. Se a Igreja não é capaz de intervenções que salvem o presente, que vitalidade tem ela? Estará ela já na fase última da sua 3ª Idade, incapaz de intervir, de anunciar de uma Boa Nova que, entretanto, é a razão de ser da sua missão?

«Aquele que há-de vir está connosco, está vivo e vive entre nós! Vimos a sua Luz!». E «não se acende uma luz para a colocar debaixo da mesa mas sim para ser posta no candeeiro, a fim de que brilhe para todos os que estão em casa» (Mt 5,15). Na Epifania celebramos o aparecimento ou manifestação desta Luz que a Igreja continua. Daqui a sua visibilidade que não se confunde com triunfalismo, mas é «um serviço a todo o povo».

Na Igreja é precisa sempre a clarividência de que, quando o Espírito o diz, é preciso refazer tudo, ou seja, é preciso voltar ao princípio. Na Igreja, é tudo passageiro, até ela, Igreja, é passageira. Na Igreja, nada se canoniza, e está sempre tudo em questão: Ecclesia semper reformanda. É preciso voltar continuamente às fontes: não há cátedras vitalícias nem indispensáveis, e o critério é sempre o Evangelho e entre todos avulta o do serviço. E ao longo de 20 séculos, um dos maiores males da Igreja tem sido muitas vezes o de, quando necessário, não ter sido capaz de deitar os cacos ao lixo.

«Como cristãos, a todos nos une a fé em Deus, o Pai que nos dá a vida e tanto nos ama. Une-nos a fé em Jesus Cristo, o único Redentor que nos libertou com o seu bendito sangue e a sua ressurreição gloriosa. Une-nos o fogo do Espírito que nos impele para a missão. Une-nos o desejo da sua Palavra, que guia os nossos passos. Une-nos o mandamento novo que Jesus nos deixou, a busca de uma civilização do amor, a paixão pelo Reino que o Senhor nos chama a construir com Ele. Une-nos a luta pela paz e pela justiça. Une-nos na convicção de que nem tudo acaba nesta vida, mas estamos chamados para a festa celeste, onde Deus enxugará as nossas lágrimas e recolherá o que tivermos feito pelos que sofrem».

Vamos então reunir para pensar que presente e que futuro.

Vamos orar com “preces” formuladas no fim do Vaticano II, Outubro 1965.



A família é raízes

Família é, são raízes… é, são a seiva, o sangue dos antepassados que nos correm nas veias… e os meus estão no alto Douro, Beira Alta, na aldeia da Coriscada, conselho da Mêda e os da Céu estão no Douro, na aldeia de Fontelo de S. Domingos, Armamar… por isso hoje, estes dias de natalis não estamos a celebrar com a família que encontramos na Comunidade.

      Somos, fazemos parte de um grupo imenso de pessoas emigradas… não estamos na aldeia, não somos da cidade.

     Eu fui para a cidade estudar e por lá fiquei… estou! A Céu foi para a cidade trabalhar e não mais regressou para a aldeia.

     Na cidade nos encontrámos… fizemos caminho e embora tendo ido casar na aldeia, a fim de se cumprir a tradição… a nossa vida é na cidade e na cidade estamos a crescer e a criar família: nós e nossos filhos Inês e Pedro.

      Somos viajantes de primeira geração que desbravam o caminho da cidade… onde tantos caminhos levam e trazem pessoas que passam, seguem seu caminho ou que são simplesmente visitantes; e este caminho é penoso, mas também cheio de alegrias e amor.

     Não foi, não é nada fácil não ter os pais, os avós para ir almoçar ao domingo ou deixar os filhos de vez em quando… mas isso também ajudou a criar laços, a fazer coisas menos bem feitas ou mesmo a cometer alguns erros… ! Estamos a criar os nossos filhos e construir família numa realidade que nós não experienciámos: procurar, encontrar e deixar os filhos no berçário, na creche com estranhos, 6h… 7h… e ir para o trabalho cuidar e ajudar os filhos dos outros a crescer… quando podíamos, deveríamos era estar com os nossos filhos!

     Levar os filhos ao Balé… piscina… patinagem…. futebol… porque “é assim”: os miúdos têm actividades extra-curriculares para saltar, pular, crescer saudáveis! Quando o nosso crescer e pular foi feito atrás dos pais quando iam para o campo… correndo atrás dos cães… ou dos amigos nos caminhos e carreiros da aldeia que ora levavam à escola… ora levavam ao campo para ir apanhar os nabos, as canas, as beterrabas para os animais… ou mesmo acompanhando os pais nas lides: na azeitona, a lavrar a terra para as batatas ou milho… a regar a horta ou as alfaces, as cenouras, as cebolas e os tomates… a ceifar o milho, ou o centeio ou mesmo na vinha, nos figos, ou nas cerejas… agora ter de ficar do lado de fora e observar como evoluem no balé e têm de fazer exames para o nível seguinte… seja lá isso o que é! Ou ficar a vibrar e a torcer para que se divirtam no jogo de futebol… quando o que eu queria era ser capaz de ganhar ao meu amigo João ou ao Carlos ou ao Luís ou ao… e depois acabava o jogo porque as luzes da rua se acendiam e tínhamos de ir para casa e no dia seguinte lá estávamos todos ao lado uns dos outros para aprender a  lição que o professor José Luís ou a professora Leónida ou o Padre Hélio tinham para ensinar!

     Mas na cidade não é assim… corre-se de um lado para o outro para fazer exercício mas o único cansaço não é o físico… mas o mental: de enfrentar o trânsito e de não se chegar a horas à escola, ao trabalho, às actividades e de novo a casa… e nos trajectos:

     – Como foi o dia hoje? O que aprendeste?

     E ao fim-de-semana…

– Vai, Inês, leva lá a cestinha… a “Nani” espera por ti!

– Pedro: podes vir para o colo do pai e podes sentar-te aí no estrado do ambão… mas cuidado para não cair! … mas que grande trambolhão!

     E assim se vai construindo e crescendo em família porque…

«Sabes pai, para nós é estranho os nossos amigos terem os avós perto… os avós vivem na aldeia!», palavras da Inês e do Pedro.

Porque os avós cheiram a campo… a ovelhas… a fumo e a feno… e têm o rosto queimado do sol do verão e do gelo do inverno. E a comida sabe! Tem paladar! As uvas são docinhas… as cerejas são brancas e vermelhas na cerejeira! A maçã é do “Calhau… João Calhau”! e as cenouras e as couves fazem a sopa saber a legumes!

     E assim a família vai-se fazendo, criando raízes que vão desde Vila Nova de Gaia, passam por Fontelo e chegam à Coriscada, e tem antepassados… e tem descendentes!

 

Pedro, Inês, Céu e Rogério Alves

Advento

Irmãos: 

De todos os tempos litúrgicos, foi o Advento aquele que mais lenta e tardiamente se fixou. Entre muitas outras razões porque, face à crescente e rápida importância que a festa do Natal adquiria no Ocidente, Roma tentava impedir uma igualdade da importância do Natal com a Páscoa que fizesse do Advento uma espécie de quaresma natalícia, de preparação e penitencial, como a pascal.

O debate processou-se. As igrejas orientais e todas as que lhes estavam ligadas (a da Hespanha incluída) salientavam um Advento preparador do Natal, melhor, do Natal oriental que era a Epifania. Esta festa tinha um forte acento baptismal e precisava, ao jeito do que acontecia com a Páscoa, de um tempo de preparação que fosse também de apronto final dos catecúmenos.

No Ocidente, porém, as coisas aconteceram de modo diferente. Se, por um lado, dada a feição episódica do Nathale Solis Iustitiae (Nascimento do Sol da Justiça), o Advento privilegiou bastante a nota de memória da expectativa que preparou o nascimento do Filho de Deus, é também verdade que entendeu sempre essa mesma expectativa como sinal e anúncio d’Aquele que há-de vir no fim dos tempos a julgar os vivos e os mortos, segundo a fórmula AQUELE QUE VEIO É AQUELE QUE HÁ-DE VIR.

Digamos que, nesta perspectiva, as duas componentes do Advento estão intimamente ligadas, e teológica e liturgicamente correctas: celebrando-se O QUE HÁ-DE VIR, celebramos também O QUE JÁ VEIO que é O MESMO QUE VEM HOJE. 

Antigamente, a divisão do ano litúrgico não se fazia tão nítida como hoje. Não havia propriamente um ano litúrgico a que se seguia outro ano litúrgico: havia uma concepção diferente e mais dinâmica do tempo litúrgico, um tempo irrepetível porque sempre novo, ultrapassando, portanto, o antigo mito do “eterno retorno”. 

Só que… os livros litúrgicos, os missais tinham de ter um princípio, qualquer que ele fosse: uns começavam com a Novena do Natal, outros com a Páscoa e sua preparação, depois o Pentecostes; mas espalhavam-se então uns tempos soltos, tempos comuns…!, complicado!

 

… viria então com o tempo a impor-se universalmente que a divisão do ano se fazia pelo termo a que depois começou a chamar-se Advento. Por essa razão ele passou a ser o primeiro tempo do ano litúrgico, se bem que, como sabemos, a sua temática seja igual à dos últimos domingos do Tempo Comum. Digamos que, no princípio, a divisão que no início não se fazia (pelo menos aqui) marcava agora melhor um tempo que era para frente e para o alto, e não repetitivo porque sempre novo.

Este é, portanto, o sentido mais autêntico deste Advento que começamos, fixado depois de uma longa decantação feita pelo tempo: o Advento só se fixaria definitivamente de facto na Baixa Idade Média.

«Velai, pois, e orai em todo o tempo» – é, no entanto, hoje, a grande palavra da Liturgia às Igrejas, nestes dias.

Estar, portanto, na Vida de olhos postos no Futuro e no Senhor que vem Hoje: «A sua vinda última será, com efeito, semelhante à primeira… pois também hoje os fiéis desejam recebê-lo no seu próprio tempo», explicava no séc. IV o Diácono Stº. Efrém) para que, depois, não tenhamos de envergonhar-nos do nosso Passado.

De olhos postos no Futuro, portanto, é necessário perceber que o que em cada momento está em jogo é sempre maior que cada um de nós: é o Futuro da Terra e do Homem, e a Glória de Deus. O Advento tem também, portanto, de ser um tempo que ajude a Igreja a libertar-se do feroz individualismo que nela se instalou e que parasita as suas melhores energias, inserindo-se no desígnio de Deus.

Vigiemos, portanto, irmãos, estejamos atentos a fim de podermos descobrir a passagem de cada Tempo e Situação, de que não ficará pedra sobre pedra e de percebermos o que nasce de novo no seio do tempo, cheio sempre de Eternidade.



Flores

Quem nunca viu uma rosa, por exemplo, muito bela a levantar-se num montinho de estrume? «Ai da flor, caduca já do seu atavio, que está no alto de um fértil vale!» (Is 28,1).

Natural e normalmente, uma flor nasce no esterco. É débil, no entanto. Dura pouco e logo esterco faz. O antigo viu na flor um filme sobre da vida do homem: nasceu, lindíssimo porventura, mas logo… Uns bons 15 anos depois fui, há dias, ao cinema, no Porto, ver um filme A metamorfose dos pássaros!

É curioso, no entanto, que só uma única vez a Bíblia fale de flores, no Salmo 104,15-17: «Os dias dos  seres humanos são como a erva que brota como a flor do campo; mas, quando sopra o vento sobre ela, deixa de existir e não se conhece mais o seu lugar!»; ao contrário, «o amor do Senhor é eterno para os  [Homens e Mulheres] que o levam a sério; para estes a sua justiça chega aos filhos dos seus filhos».

Mas todas as flores têm uma tradição, ou, dizendo doutro modo, todas as tradições têm flores: a normalidade de expressar pensamentos e sentimentos, chegou-nos do Oriente. Os gregos e os romanos tiveram depois já uma grande paixão pelas flores.

Na cultura medieval, a flor chega a ser sinal de beleza, de alegria e de amor, mas rapidamente de fragilidade e caducidade; na idade da Renascença e da Reforma, e no nosso tempo, aparecem flores, melhor, certas flores, a marcar alguns momentos da vida, digamos que poéticos, “a rosa para a pessoa amada!”, ou de dor, as que cobrem os cemitérios.

«Ó flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…»
(Florbela Espanca),

“a rosa para a pessoa amada!” ou “o ramo da flor da laranjeira” para a noiva, as coroas para os mortos… e, com o tempo, para o enfeite das igrejas e das grandes casas da riqueza!

 A igreja e a flor. A igreja cristã foi sempre pobre e simples, não poderia pôr-se ali uma flor?

Quando as igrejas romanas ou românicas dos primeiros tempos cristão começaram a ser concebidas por artistas engenheiros terão começado pelas paredes e telhado; mas a maior preocupação era, de certeza, o dentro, criar um interior que recebia quem entrava… e logo se lhe abria a alma! Não eram necessárias nem flores, nem bandeiras, nem panos, nem santos, nem altares laterais…: a quem entrava logo se lhe abria a alma, a tudo ver e tudo perceber. Via-se logo e, dentro, quase só um altar, e percebia-se logo o ambiente…, mesmo se esmagador, mas recolhido e belo!

Mas depois, com o tempo, começaram a entrar disparatadamente as flores (e não só): e todo o interior foi tomado pelo que é lindo, bonito, galante, etc., e censurável quase sempre. Agora, entra-se pela igreja dentro, olha-se logo para os lados, quando o que devia ver-se era o altar, a peça e o lugar mais importante de uma igreja, aquele em que a Comunidade celebra a Eucaristia, e não um  montão de flores e uma noiva carregada de flores…!

«Na ornamentação da igreja deve tender-se mais para a simplicidade do que para a ostentação sinónimo de exibição, luxo, aparato e riqueza. O importante não é a ornamentação da igreja, por si mesma, mas pela Liturgia que aí se celebra» (diz o Missal Romano), «A ornamentação das flores deve ser sempre sóbria» (idem).

Ultimamente visitei por aí algumas catedrais, igrejas e sobretudo capelas românicas e mesmo góticas do nosso país, em que não há flores (pode haver uma simples flor), em que se deitou tudo fora, e onde está agora, com saliência, apenas uma mesa e um ambão para colocar o Missal…

Quem chega percebe imediatamente que se trata de um altar sagrado e sublime onde haverá pão e vinho, e à volta do qual as pessoas se vão colocando e podem sentar-se…

O mar

 Scott Denholm

No princípio, era o mar. E o mar chamava-se Tiamat, a deusa das mitologias babilónicas e suméricas (em francês ou em espanhol, o mar é um substantivo feminino: la mer, la mar), a mãe de todos os elementos. Os próprios deuses eram seus filhos. E os filhos ficaram todos a viver com ela, Tiamat, ou nela. Era em “a mar” que moravam os deuses: Júpiter, o pai dos deuses romanos, morava já aqui acima, na Galiza, no Finisterra.

“A mar” era serenidade e beleza, e a fonte de toda a vida. As suas águas tinham um movimento eternamente repetido — as ondas —, que gerava nos seus filhos, os deuses, algo de indeciso entre o talvez e o possível, a incerteza, a dúvida, e até o medo.

Mas “a mar” era a fonte de toda a vida: certamente muitos conhecem a famosa pintura de Boticelli, O nascimento de Vénus, ela a sair das águas do mar.

E, por isso, os antigos gregos e romanos ofereciam “à mar” o sacrifício de cavalos e toiros, símbolos da fecundidade.

Foi de Tiamat, isto é, de ”a mar”, portanto, que nasceram os deuses: por isso é que, na Bíblia, antes da Criação, “o espírito de Deus já se movia sobre a superfície das águas” (Gn 1,2): nesse texto bíblico, Deus chamava-se Iavé.

Mas os filhos de Tiamat rebelaram-se contra ela. Até Iavé pôs regras a Tiamat: “Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus num mesmo lugar a fim de aparecer a terra seca” (Gn 1,9). E depois de ter visto que esta decisão foi boa, acrescentou: “se passas daqui ou dali, quebrar-se-á a altivez das tuas ondas” (Jb 38,11).

É também verdade que os vários filhos de “a mar” se zangavam entre si. Nesses casos, quem pagava as tempestades éramos sempre nós, os humanos: «… Amaina (disse) amaina a grande vela! / Não esperam os ventos indinados / Que amainassem, mas, juntos dando nela, / Em pedaços a fazem, cum ruído / Que o mundo pareceu ser destruído! / O céu fere com gritos nisto a gente / Cum súbito temor e desacordo.» Quem descreve assim é Camões (Lusíadas, VI, 71/72).

Só percebido isto, entendemos os dois textos bíblicos de hoje. Job é claro: Tu, Tiamat, a mãe ou “a mar”, podes vir até aqui, mas não passarás dacolá (Jb 38,11). E Marcos: Cala-te, mar, aqui quem manda sou eu! E o vento e o mar obedeceram-lhe!

Na cultura judaica, o mar (resquícios de Tiamat) é um inimigo de Deus. Por isso é que, no “novo céu e na nova terra [do Apocalise], o mar já não existirá” (Ap 21,1). De resto, já Jeremias dizia que “é o Senhor do Universo que agita o mar e que faz rugir as suas ondas” (Jr 31,35).

Por detrás de todo este episódio está, em todo o Médio Oriente, a ideia de que o mar é o detentor dos poderes do caos e do mal que lutavam contra Deus. Controlando a tempestade do mar, Jesus faz o mesmo que Deus e vence as forças do mal. Claro que, à data, se é que o episódio a teve, os discípulos ainda não tinham visto a verdadeira identidade de Jesus. Por isso perguntam “Quem é este?”.

Posto que, já no Antigo Testamento, se acreditava que só Deus podia controlar o vento e o mar, a pergunta dos discípulos — “Quem é este?” — levava implícita a confissão da divindade de Jesus. Por isso perguntaram “Quem é este…?”.

Há dias, um velho companheiro que não via há uns bons 50 anos, interpelou-me na rua…, eu olhei-o e ele, não sei se afirmou, se me perguntou: “És o Arlindo… que eu já venho atrás de ti há um bocado”. Eu parei, olhei-o, e disse: “Dá cá um abraço, Zé Moca!”.

“Quem é este homem a quem até o vento e o mar obedecem”. Ponham no fim da frase um ? ou um ! que é a mesma coisa. Termino com o papa Francisco na sua recente encíclica: «Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de si mesmo, declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um glutão e bebedor de vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contacto com matéria criada por Deus, para a moldar com a sua capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa, levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 3).

Discípulos

Ilda David’, Igreja S. Tomás de Aquino (Lisboa)

Depois de um breve prólogo (1,1-15) centrado na figura de João Baptista, nas tentações de Jesus e num primeiro sumário da sua pregação («o Reino de Deus está próximo, convertei-vos e acreditai na Boa Nova» — Mc 1, 15), o Evangelho de Marcos começa com uma relativamente longa narração da pregação de Jesus na Galileia (1,16 até 9,15). 

Esta narração dá conta de um crescendo de tensão contra Jesus. E ele, dirigindo-se aos discípulos, pretenderá como que clarificar as águas: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,27).

Ou seja: a pessoa e a pregação de Jesus não eram pacíficas, levantavam problemas. 

Vejamos. Marcos diz que Jesus «chegou a casa» e, ali, «acorreu tanta gente» que «nem sequer podiam comer» (Mc 3,20-21). 

Jesus reunira já um grupo de discípulos (1,16-29 e 3,13-19). Era com esses que fazia vida e era esses que ele ensinava particularmente: tratava-se de um verdadeiro discipulado, até comia com eles. Sabemos como na igreja primitiva estas comidas em comum eram importantes. E sabemos também como a Igreja, posteriormente, perdeu esta tradição das comidas em comum (que no princípio antecediam sempre a própria celebração da Eucaristia). Pensam alguns hoje em dia que este deixar de comer em comum foi das maiores perdas da prática pastoral da Igreja, só comparável por exemplo com a perda do catecumenado. 

Mas voltemos ao assunto. Porque comia em comum com os discípulos e até com publicanos e «pessoas de má vida» (2,16), porque tinha já tomado outras atitudes menos convenientes, «os seus» acusam-no de estar maluco, «fora de si».

Chegado aqui, o atual texto de Marcos incluiu um acrescento posterior que refere «os escribas que vieram de Jerusalém», que radicalizaram a acusação já feita por «os seus»: chamam-no Belzebu (Mc 3,22). Eu vou traduzir esta palavra à letra, para toda a gente perceber: Belzebu quer dizer «um Baal [uma divindade da Síria] de m…». Claro que “quem não se sente não é filho de boa gente”: Jesus reagiu. Conta-lhes a história de uma casa (isto é, duma família) dividida no seu interior (3,25-28).

Acabada esta cena aqui intercalada (isto é, metida um bocado a martelo) retomamos o primeiro dos quadros. Ou seja, como acima dizia, «os seus», isto é, «tua mãe e teus irmãos», andavam à procura dele porque tinham recebido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vinham, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros naquela terra, pescadores — um deles devia ser um estoura vergas, à letra Filho do Trovão (o nosso conhecido Tiago) — pescadores, gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer. 

O que é que isto quer dizer? Quer dizer que os Doze são o núcleo da nova comunidade reunida à volta de Jesus. E isto não agradava à malta (como agora se diz) do seu partido e até da sua família. A história é velha. À volta de Jesus nasce uma nova família ou comunidade, como quiserem, que se levanta. Por isso, a cena acaba com esta palavra lapidar, dita com toda a autoridade: «Minha mãe e meus irmãos!… Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é minha mãe e meu irmão!» (Mc 3, 34-35).

Domingo

A partir daquele «primeiro dia da semana», muita coisa mudou. Porque, de facto, algo de muito novo se passou. E de tal modo que todos os evangelistas, dos sinópticos a João, registam o facto: foi no «primeiro dia de semana»

Podia ter sido noutro dia, no dia sagrado para os judeus, aquele por que os sacerdotes de Israel se tinham batido querendo-o dedicado ao Senhor e ao descanso dos trabalhos servis, numa medida, portanto, de alcance religioso, mas também de incidência social. Tanto assim que até conceberam a narração da Criação – a sacerdotal (1º capítulo do Génesis) – dividida em 7 dias, 6 de trabalho, e o 7º, o Sábado, de descanso para IAVÉ.

«Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por ele realizado. E abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação» (Gn 2, 2-4). 

Explicava Eusébio de Cesareia, o historiador, no século IV: «O número 6 indica atividade e energia, razão pela qual se diz que Deus criou o mundo em 6 dias». Depois o Sábado, continua Eusébio, um dia de «descanso de que o número 7 é símbolo».

Podia ter sido, portanto, a ressurreição em qualquer outro dia da semana; mas não. Foi no 1º.

 Assim se estabelecia uma rutura com o antigo, marcando a novidade. O domingo é de facto a primeira criação pastoral da Igreja nascente. «O Senhor fez todos os dias; os outros podem pertencer aos judeus, aos hereges ou mesmo aos pagãos. No entanto, o Domingo, dia da Ressurreição, é o nosso dia. Chama-se-lhe “Dia do Senhor” porque foi nele que Cristo subiu glorioso à glória do Pai» (S. Jerónimo, séc. IV).

Na Antiguidade, os dias diversos eram dedicados às diferentes divindades: a Marte, a Vénus, a Saturno, a Júpiter, a Mercúrio… Hoje também, alguns outros são especialmente dedicados a afazeres que, em muitos casos, se transformou já em verdadeiros deuses: o Fim de Semana fora, o supermercado, o futebol já não, etc, o dinheiro vai comandando o assunto…

São Jerónimo (347-429) dizia que «O Domingo, dia da Ressurreição, é o nosso dia». 

Santo Agostinho (354-430): «O Dia do Senhor não foi revelado aos judeus, mas aos cristãos, pela Ressurreição de Cristo; é por esta razão que o celebramos».

É verdade que algumas línguas do mundo cristão — o alemão e o inglês — admitiram um nome paganizado, Sonntag e Sunday > dia do sol, mas não deixaram de utilizar a dominica (domingo) > ou dies Domini > dia do Senhor). 

Máximo de Turim (que viveu entre os finais do século IV e a primeira metade do século V), explicava assim: «O dia de domingo é venerável e solene porque é o dia em que o Senhor, como Sol que se levanta após haver dissipado as trevas do inferno, resplandece na luz da Ressurreição. Por isso, esse dia é chamado dia do Sol pelos homens deste século, porque é o Cristo ressuscitado, Sol de Justiça, que o ilumina»

Sempre a Ressurreição no entendimento deste «primeiro dia da semana».

Durante muito tempo, a Igreja não precisou do preceito e só recorreu a ele quando a consciência cristã esteve em riscos de perder algo que fazia parte fundamental e integrante do seu património cultural e religioso.

Que o respeito integral do tempo e do lugar em que vivo a originar deslocações e riquezas que muitas vezes se abrem à celebração do domingo noutras perspetivas, noutra universalidade e catolicidade, pois que são hipótese de o celebrarmos com outras comunidades e sensibilidades, também é verdade.

Que compreendo que obrigações e até «devoções» condicionem ocasionalmente a celebração do dia de Páscoa semanal que é o Domingo, também entendo.

Mas que a minha geração deu cabo do domingo por causa de uma grave insensibilidade espiritual, de uma não consciência da nossa identidade cristã, … A minha geração deu cabo do domingo!«Neste dia (dia do Senhor ou Domingo), devem os fiéis reunir-se a participar na Eucaristia e a ouvir a Palavra de Deus, recordando assim a Paixão, Ressurreição e Glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma Esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos” (1 Ped 1,3). O Domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis: seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o Domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico» (Vaticano II, Constituição sobre a Liturgia, nº 106).

Jeremias

Ilya Repin, O choro do profeta Jeremias nas ruínas de Jerusalém (1870)

Lemos aqui, na homilia da semana passada, um trecho do primeiro Livro das Crónicas, afinal uma síntese da história israelita que se estende desde as origens — de Adão a Abraão (Isaac, Ismael, David, Salomão, etc.) — e vai até ao édito da libertação de Ciro, o rei persa que no ano 538 a. C. permitiu que os judeus desterrados na Babilónia voltassem a Jerusalém. O Rui, na “Reciclagem”, ensinou depois muito bem!

O Cronista dá uma visão da História passada, desde a origem do homem até ao restabelecimento do culto depois do desterro babilónico. Deus está de novo com o Povo no Templo a construir na cidade santa!, alegra-se o povo, até porque, o rei “mantê-lo-ei em minha casa e no meu reino e o seu trono será firme eternamente” (1 Cro 17,14). Todos, os reis e os profetas, punham os seus olhos no Templo e na teocracia (política religiosa). 

Mas chegaram depois questões e novos profetas. Estes tinham começado a aparecer lá pelo séc. VIII aC, mas houve muitos mais (Amós, Oseias, Isaías…) que prometiam o florescimento de uma nova e verdadeira paz, e a ida a Sião de todos os povos.

No seguimento de leitura das Crónicas, a Liturgia de hoje apresenta um destes Profetas mais novos, Jeremias, o profeta chamado por Deus que lhe respondeu: 

“Aaaaah, meu Deus, mas eu nem falar sei! 

E Deus respondeu-lhe: Não digas que não sabes falar. Irás aonde eu te enviar e dirás tudo o que eu te mandar. Não terás medo diante de ninguém pois eu estarei contigo”. (Jer 1,4-8). 

E Jeremias foi e dizia o que via: “Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens, já não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera!” (4,23-26). “Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz” (30,5). “De terras longínquas vem-nos o inimigo lançar gritos de terror contra as cidades de Judá. Ao ouvirem a cavalaria e a infantaria, os habitantes fogem”. (4,16.29). “Ouço um grito, parece de uma mulher a dar à luz; é o grito angustiado de Sião” (4,31).

Porquê assim? “O meu povo esqueceu-me” (18.15). “Abandonou-me” (2,13). “Dia e noite, os meus olhos desfazem-se em lágrimas; o meu povo tem uma grande ferida, mas é uma chaga que não tem cura” (14,17). “Abandonou-me, a mim que sou uma fonte de água viva, e preferiu construir cisternas rotas que não conseguem reter as águas” (2,13). “Quem se compadecerá de ti, Jerusalém? Quem, no seu caminho, vai agora fazer um desvio, pequeno que seja, para te vir perguntar como estás? Abandonaste-me e voltaste-me as costas!” (15,5).

“Aaaaih!, as minhas entranhas e o meu peito! Estou nervosíssimo e já me não posso calar “(4,19). “A minha dor não tem cura e o meu coração desfalece” (8,18). “Ooh! Se eu tivesse uma fonte de água que me refrescasse a cabeça e uma fonte de lágrimas nos meus olhos, dia e noite choraria as chagas do meu povo!” (8,23)…

Nesta situação, o profeta quase desespera: “Ai de mim, mãe que me geraste: sou um homem de provocar fraturas e abrir contendas com todo o mundo!” (15.10)…

Mesmo assim, cumpria a sua missão: “O Senhor enviou-me a profetizar contra este templo e esta sociedade” (26,12)…

«Emendai a vossa conduta e as vossas ações, e eu — o Senhor — habitarei convosco neste lugar; mas não vos iludais com razões falsas, sempre a dizer “o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”! Se emendardes a vossa conduta e as vossas ações, se julgardes os pleitos com retidão, se não explorardes o imigrante, o órfão e a viúva, se não derramardes sangue inocente neste lugar, se não seguirdes — para vosso mal — deuses estrangeiros, então eu habitarei para sempre no meio de vós neste lugar, na terra que dei a vossos pais, nos tempos antigos e para sempre» (7, 1-8)…

Deste modo, o profeta extirpava falsas seguranças e ilusões, religiosa e politicamente equivocadas. Todo o seu ministério profético foi uma luta aberta e declarada contra qualquer forma de falsidade. Mas sobretudo Jeremias soube fecundar a história com a notícia de um futuro de graça e de novidade.

“Vou reunir-vos de todas as terras para onde, no furor da minha ira e no fundo da minha indignação, vos exilei. Conduzir-vos-ei a este lugar, para que, aqui, habiteis em segurança. Sereis o meu povo e eu o vosso Deus. Dar-vos-ei um coração puro e uma conduta íntegra. Respeitar-me-eis toda a vossa vida, para vosso bem e bem dos filhos que vos hão de suceder. Farei convosco uma aliança eterna e não me cansarei de vos abençoar. Ajudar-vos-ei a respeitar-me, a que não vos separeis de mim. Terei alegria em fazer-vos bem. Instalar-vos-ei de verdade nesta terra, com todo o meu coração e toda a minha alma!” (32, 37.44…). Poderíamos recordar, agora mesmo, e de novo, as palavras do Profeta lidas hoje na Liturgia.

No fundo, o que revolvia as entranhas e o peito do Profeta (8,8) era a consciência do amor de Deus pelo seu povo. Face ao que lhe parecia ser o fracasso da sua pregação e perante as ameaças de morte que lhe faziam os poderosos que o queriam calar, o profeta bem tentou retirar-se. Mas não conseguiu. Pelo contrário; fez das fraquezas forças, este que é um dos maiores profetas de Israel. 

“Ai daquele que constrói a sua casa sobre a injustiça e os seus aposentos com iniquidade! Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem lhe pagar o salário! Ai daquele que diz: Vou mandar construir um grande palácio, salões espaçosos, com rasgadas janelas e tetos de cedro pintados de vermelho! Pensas que és rei só porque podes comprar cedro? Mas repara: o teu pai comia e bebia – e muito bem! – mas também praticava a justiça e o direito e partilhava do seu com os pobres e os indigentes. E isso é que é conhecer-me! Palavra do Senhor! Mas tu, pelo contrário, só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue inocente, abusando e oprimindo” (22, 1-4. 13-17)…

“Vamos denunciá-lo, vamos desfazê-lo e assim nos vingaremos dele” (20,10) — ameaçava a multidão. “Este homem merece a morte porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes todos” (26,22)… — diziam os sacerdotes do templo de Jerusalém. “Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos” (20.10)… — lamentava-se o profeta. 

“O sacerdote Pachiur mandou [um dia] espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão” (20, 2), e “o rei Sedecias deu ordens no sentido de que ficasse retido no pátio da guarda” (37, 21). Mas os dignatários disseram ao rei: “Morra este homem que desmoraliza os soldados e o povo da cidade com os seus discursos”… e prenderam-no na cisterna … que não tinha água, só lodo. E Jeremias ficou atolado no lodo” (38, 4-6).

A oração do profeta foi então assim: “Tu, Senhor, que sabes tudo, lembra-te de mim, ampara-me e vinga-me dos que me perseguem; que eu não seja apanhado por eles” (15. 15); “Escuta o que dizem os meus adversários. É assim que pagas o mal com o bem? Abriram uma cova para me tirarem a vida. Lembra-te de que me apresentei diante de ti a interceder por eles, a afastar deles a tua cólera” (18, 19-20); “Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir. Dominaste-me e venceste. Mas agora eu sou objeto de contínua chacota, toda a gente escarnece de mim. Sempre que falo é para dizer Violência!, Opressão!. A tua Palavra tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia atrás de dia … Mas eu sei, Senhor, que estás comigo como poderoso guerreiro” (20, 7-18). Numa época é de infidelidade à Aliança, tocou a Jeremias uma tarefa difícil, a de anunciar um castigo de Deus. Tão difícil que, quando uma vez Jesus perguntou aos discípulos o que diziam dele, eles responderam: “Dizem praí [que] és um Jeremias…!” (Mt 16, 14).

O templo

“Labrun Temple in Festival”. Cheng Xiangjun, 2006

“Começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando, entre o povo, todas as doenças e enfermidades” (Mt 4,23). 

“E a sua fama logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia” (Mc 1,28); “impelido, pelo Espírito, Jesus voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a região. Ensinava nas sinagogas…” (Lc 4,14-15).

E Jesus como que inicia uma vida pública. E logo, desde o princípio, inicia um tremendo conflito com a religião (do Templo). Jesus quer que o homem se encontre com Deus, não com o Templo, isto é, com os sacerdotes, com os rituais e grandiosas cerimónias. Deus não se encontra na sacralidade das religiosidades mas na laicidade das humanidades. Por exemplo: Deus não quer dinheiro, quer sim que se acuda o pobre, se ajude o cego, e se dê pão verdadeiro ao faminto.

Jesus não pretendeu construir um palácio estrondoso de custo e beleza; disse assim: “Eu sou a voz de quem grita no deserto” (Jo 1, 23), enquanto os judeus diziam: “Nós temos uma lei e segundo ele deve morrer” (Jo 19,7). Pedem-lhe então explicações, e ele responde: “Destruí este templo que em três dias o levantarei” (Jo 2,19). Para Jesus, o verdadeiro templo é o ser humano. Era assim que pensava a igreja primitiva: o cristão é o templo de Deus:

“Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá, pois o Deus é santo, e esse templo sois vós” (1Co 3,17-18) e “Não sabeis que o vosso corpo é um membro de Cristo?” (6,19). “O Deus que criou o mundo e tudo quanto nele se encontra, Ele, que é o Senhor do Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do homem, nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, Ele, que a todos dá a vida, a respiração e tudo mais. Fez, a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tateando, embora não se encontre longe de cada um de nós. É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas…” (At 17,24-28).

Jesus não pretendia limpar o Templo; queria, sim, acabar com ele, aquele Templo de dinheiros e cordeiros, de sacerdotes, de promessas…, de pátios só para homens e de outros só para as mulheres, Templo de Sumo-Sacerdote que tinha um poder imperial, mas que — ao seu tempo, o de Jesus — era um lugar de corrupção, de rapinagem, de violência… e de política. 

Por isso, antes de mais nada, Jesus expulsou do Templo, com azorrague de corda, os comerciantes (Mt 21,12-13) que vendiam os animais a sacrificar segundo as normas… Este gesto de Jesus, especialmente significativo, deitou também por terra as mesas dos cambistas.

Ajudavam estas traficâncias enormes quantidades de dinheiro — Jerusalém, cidade judaico-romana, estava situada num ponto nevrálgico de uma extensão que se desenhava da Mesopotâmia ao ocidente do Mediterrâneo — quantidades de dinheiro de que sempre gostaram o clero e o próprio Templo. 

É curioso que, chegado já a Jerusalém, «Tendo saído do templo, Jesus já se ia embora, quando os seus discípulos se aproximaram dele para lhe mostrarem as construções do templo. Mas ele disse-lhes: “Vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra: tudo será destruído”». (Mt 24, 1-2). 

De certeza que Jesus tinha consciência do que estava a dizer e a jogar a vida.  

O Templo tinha em Israel, como sabemos, uma importância enorme: o Templo era a morada de Deus no mundo, o coração da toda a vida religiosa e o centro da vida do homem judeu. O poeta-salmista diz bem: “O Senhor habita no seu santuário, tem nos céus o seu trono; os seus olhos contemplam o mundo e as suas pupilas observam os filhos do homem” (Sl 11,4).

Mas com o cristianismo tudo mudou. Desde logo, no princípio, os discípulos começaram a “partir o pão em suas casas, com alegria e simplicidade de coração” (At 2, 42-46) e depois em Corinto (2Cr 1,1), e, por muito tempo, assim foi, não havia templos para os cristãos: reuniam-se nas casas uns dos outros e sempre na sala de cima (At 9,39; 20,8). 

Conforme muitos ou poucos, os primeiros cristãos reuniam-se nas casas uns dos outros, grandes ou pequenas. Utilizavam a sala do 1º andar da casa, coberta por um pouco levantado telhado, só para arejar. Com o tempo, porém, começou a subir o telhado, criando-se, portanto, uma sala maior, ampla, tranquila e discreta, uma grande sala de cima. Na casa romana de um cristão abastado, aí se reunia a ekklesía toda, mai-los já com os que aceitavam a Palavra, e se preparavam para receber o Batismo” (At 2,41). No quarto de banho ou na piscina da casa faziam-se os batizados; ao templo, a palavra batistério significava piscina, e batismo queria dizer mergulho (COMBY, Jean – Para ler a História da Igreja, 1988). 

Como os tempos mudavam! Hoje, será assim?!