Celebra-se hoje o quinquagésimo segundo “Dia Mundial da Paz”. Instituído pelo Papa Paulo VI para o primeiro dia do ano de 1968, visava proclamar a PAZ como princípio fundamental de convivência dos povos e do respeito dos valores e direitos fundamentais de todo o ser humano, afirmando que
«a Paz funda-se subjetivamente num espírito novo que há de animar a convivência dos povos, num novo modo de pensar o homem os seus deveres e o seu destino, tanto mais porque não se pode falar de Paz legitimamente quando não são reconhecidos e respeitados os seus sólidos fundamentos: a sinceridade, ou seja, a justiça e o amor, tanto nas relações entre os estados, como no âmbito de cada nação; entre os cidadãos e entre estes e os governantes. É, pois, à paz verdadeira, à Paz justa e equilibrada, assente no reconhecimento sincero dos direitos da pessoa humana e da independência de cada nação, que nós convidamos os homens prudentes e corajosos, a dedicar este “Dia”».
Apesar do tempo decorrido, a atualidade da sua mensagem é clara e manifesta. Os ventos da intolerância, da xenofobia, da exclusão, do racismo e de todas as formas de violência que sopram atualmente sobre este mundo, particularmente sobre esta velha Europa, são cada vez mais preocupantes e, por isso, exigem da sociedade – governantes e governados – e particularmente de todos os cristãos uma reflexão profunda sobre as suas causas.
O Papa Francisco lançou para reflexão neste “Dia Mundial da Paz” de 2019 o tema “A Boa Política está ao serviço da Paz”. Chama a atenção de que
«a missão do político consiste em salvaguardar a lei e incentivar o diálogo entre os atores da sociedade, entre gerações e entre culturas. A função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade. Duma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos, para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do presente e as futuras, já que não há paz sem confiança mútua».
Todavia, não esquece que
«A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio ambiente e nas instituições. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida democrática autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da «razão de Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato, o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio».
Refere ainda que
«Nestes tempos, em particular, vivemos num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a felicidade da família humana».
«Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as relações humanas são complexas. Com efeito, a paz é fruto dum grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na interdependência dos seres humanos».
A este respeito, recordemos a observação do Papa João XXIII:
«Quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos. Somos, assim, chamados a levar e a anunciar a paz como boa nova de um futuro no qual cada ser vivo seja considerado na sua dignidade e nos seus direitos».
«Paz é mais do que a ausência de guerra: paz é a prática da tolerância e do perdão» (Maria da Aparecida Doró). Por isso, todos os cristãos são convocados a participar neste projeto de PAZ, a darmos o nosso contributo empenhado na construção da Paz no interior dos nossos núcleos familiares, no nosso local de trabalho, nos locais de lazer, no apaziguamento das tensões que vivemos diariamente, estendendo a mão da tolerância e do perdão, acolhendo e cuidando do outro, o pobre, o estrangeiro, como irmãos.
«Deste modo, refletir sobre as causas primeiras e estruturais da violência e suas consequências e promover atitudes e posturas de paz implica, necessariamente, numa verdadeira busca pela justiça, esta, que na Sagrada Escritura, diz respeito ao cuidado dos pequenos e pobres, dos sem voz e sem poder, dos excluídos e esquecidos».
«Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus». (Mt 5, 9). Todos nós somos convocados a construir o Reino de Deus. Ao cristão compete agir, estar atento e desperto às realidades sociais em que se movimenta. Um conhecido poema (Sophia de Mello Breiner) diz-nos que «vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». Todavia, na turbulência do tempo atual, na massificação da informação, tantas vezes descontextualizada, com a imensidade de “luzes” que nos encandeiam e o “barulho” que nos entorpece o entendimento, tornamo-nos insensíveis e indiferentes ao sofrimento do outro, tudo é banalizado, isto é: olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos; lemos, mas não entendemos.
«A Paz e a Justiça se abraçam», proclama o salmista (Sl 85,11). Por isso urge estar atento aos sinais dos tempos, rejeitar o ódio, a intransigência e a indiferença, promover a tolerância e o perdão, acolher o outro como irmão, pois ao cristão cumpre “construir pontes” e “derrubar muros” porque o Reino de Deus, reino de paz e amor, constrói-se hoje, aqui e agora.
Permitam-me que vos leia um poema da mesma autora que é verdadeiramente uma oração e um profundo apelo de paz:
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidosErguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidosFazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
(Sophia de Mello Breiner)
Um Bom Ano para todos.
Fernando Moreira, 1 de janeiro de 2019