“Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho. Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos, seja qual for a situação em que se encontrem”.
Clarinho como a água, eu esperava uma notícia assim há pelo menos 30 anos. Disse-a agora o Papa Francisco num documento titulado “A alegria do amor”. E acrescentou: “Não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (Alegria do Amor). E continuou assim:
“Um pastor não pode sentir-se satisfeito a aplicar apenas leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como que pedras atiradas à vida das pessoas”; lembro-lhes por isso que «o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor»” (Alegria do Amor).
Naquele dia em que foi divulgado o documento papal, no passado 19 de março, vieram-me as lágrimas aos olhos. Recordei tanta gente que me passou pelas mãos naquele Tribunal diocesano! Tanta gente que me contou dos seus sofrimentos, alguma da qual orientei para o Registo Civil, pois que estavam fechadas as portas da Igreja. Eu sabia, sempre soube, aonde queria chegar o Papa João Paulo II, no seguimento do Sínodo dos Bispos de 1980, quando, num outro documento papal, Familiaris consortio (A comunidade familiar) disse:
“Exorto calorosamente os pastores e a comunidade de fiéis no seu conjunto a ajudarem os divorciados que voltaram a casar. Com grande variedade, todos se esforçarão por que eles se não sintam afastados da Igreja, pois que podem e mesmo devem, como batizados, participar na sua vida”.
Assim procedi com algum escândalo de alguns e a alegria de bastantes.
Dez anos depois, outubro de 1997, escrevi pela primeira vez sobre este assunto uma homilia que terminava assim: «recordo a recente afirmação do bispo do Porto, em entrevista a um semanário da nossa praça:
“impedi-los [os católicos divorciados que voltaram a casar civilmente] de participar totalmente na parte sacramental cria situações difíceis para eles e para quem os acolhe. (…) O direito canónico é temporal. (…) Se o leigo conseguiu acertar a sua consciência com a do padre, o problema é deles. De resto, não há padre que não tenha encontrado casos como estes ao longo da sua vida…”».
Entretanto, nasciam e desenvolviam-se duas alas no interior da própria Igreja. Um título do tempo dizia tudo: “O último pecado imperdoável: católicos divorciados que voltaram a casar”. Apesar disso, com pronunciamentos que sim e pronunciamentos que não, a maior parte vindos do próprio magistério, a questão continuou a provocar abundantes polémicas teológico-morais e pastorais, quase sempre divergentes da vida real das comunidades. Como pode um celibatário decidir uma questão destas…, a culpa, o sofrimento e a dor, a hesitação, o medo da consciência, que vida esta!…
Sempre pensei que as comunidades, pela sua prática, ajudariam a Igreja no seu todo a encontrar uma atitude verdadeiramente cristã para com aqueles que, sem culpa, se viram confrontados no seu viver com uma situação difícil mas não “des-graçada”. À mesa da Eucaristia nunca pedi a ninguém o cartão de cidadão ou o bilhete de identidade a saber se era casado, divorciado, se vivia em união de facto ou era viúvo. Nestes casos, tudo na Igreja se resolve mais de baixo para cima que de cima para baixo. Entretanto, o Papa Francisco disse, na sua 1ª Exortação Apostólica, a Alegria do Evangelho, de 2013, que “a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”. Mas a maior parte dos que encheram ruas e paredes das alegrias dos evangelhos – diziam eles — esqueceram-se de ler o documento TODO. E eu fiquei à espera que Francisco avançasse.
Finalmente, chegou a Boa Nova para os que a esperavam, 19 do mês passado, má notícia que desespera agora os que, com os seus poderes de mandarins, de corifeus ou de fariseus, queriam continuassem fechadas as portas da Igreja aos pobres e indefesos.
Tudo isto “nos forneceu um quadro e um clima que nos impede de desenvolver uma moral fria de escritório, quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto de um discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e, sobretudo, integrar” (Alegria do Amor).
Amor misericordioso. Estragou-se o substantivo misericórdia ou o adjetivo misericordioso — creio eu —, palavras espalhadas por aí, em bandeiras e cartazes pregadas às portas das igrejas ou dos supermercados.
“Nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada de uma vez para sempre; requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…) Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançámos … impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias, continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (Alegria do Amor).
Ninguém julgue nem condene!, assim o diz o Evangelho (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). O drama humano do meu irmão, seja ele qual for, é meu também (de mim pessoa, e de mim comunidade); em contacto com a vida concreta dos outros conheceremos a força da ternura. Tantos anos passados, encontrámo-nos na rua, ocasionalmente, só há beijos e abraços…
“Não fiqueis a olhar para o céu!…” (At 1,11), que é aqui que estas coisas acontecem… Não podemos ficar parados, de nariz levantado para as nuvens, a ver o que acontece ou se acontece. Há muita coisa a fazer acontecer, a começar por nós próprios. A dificuldade está aqui, está em nós. Mas isso necessita de ser precipitado, antecipado, começado por nós, pela nossa renovação pessoal e comunitária. “Uma alma que se eleva, eleva o Mundo”, disse Teresa de Lisieux. E Francisco de Assis acrescentou lá no fundo do séc. XIII: “Que eu leve a alegria onde há tristeza!”.
Arlindo de Magalhães, 8 de Maio de 2016