A encíclica Louvado sejas diz, logo no princípio, que a terra é “como uma irmã… como uma boa mãe” (LS 1) no âmbito das relações familiares. Assim como pessoas diferentes em tudo compõem uma família, assim o universo: tudo e todos “estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal” (LS 89).
O relato da criação do Génesis — que montámos aqui na Vigília Pascal deste ano — insiste na nossa origem comum. O laço de fraternidade que nos abraça não envolve só a humanidade; envolve tudo o que foi criado, toda a Criação.
Esse relato do Génesis não é uma teoria. “Tudo está relacionado. E todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra” (LS 92).
Esta afirmação está presente, digamos, em todo o texto da encíclica e pode ser interpretada como um dos eixos de compreensão da mesma, assim como uma premissa a partir da qual se tiram consequências necessárias ao nosso “bem viver”.
Isto tem de ser levado a sério. Trata-se, de facto, de um dado sólido avalizado pela ciência. Nos mais diversos campos, a comunidade científica afirma hoje que a origem do universo remonta a um momento único, o Big Bang, acontecido há 13.800 milhões de anos. Diz também a comunidade científica que a vida apareceu na Terra há 4.000 milhões de anos e que as diversas espécies — vegetais e animais — surgem por diferenciações progressivas mas a partir de troncos comuns. Poderíamos — mas eu não sou cientista — continuar a referir aqui numerosas certezas semelhantes a estas duas, sustentadas pela ciência.
A isto chegou ou chega a ciência. Mas os místicos, — sim, os místicos! —, por sua vez, conseguem um olhar penetrante sobre a realidade que, com frequência, lhes permite chegar a uma verdade profunda sem recorrer a longos raciocínios e estudos. A fé permite-lhes chegar muito mais para lá do mundo visível e ver com muito mais clareza.
Para S. Francisco de Assis, por exemplo, “qualquer criatura era para ele uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe” (LS 11).
São Boaventura, seu discípulo, contava que, “enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs” (LS 11).
A ser assim, se tudo está conectado, então todas as realidades têm sentido e valor, cada uma é como é, sempre diferente das mais, mas sempre parte de um conjunto. Nada é demais, nada é avarento, nada é mesquinho. Cada coisa tem a sua bondade e a sua perfeição.
Por outro lado, a degradação de qualquer realidade ou a sua decomposição em unidades de menor complexidade empobrece o universo. Nada é supérfluo. O Evangelho regista uma palavra de Jesus: “Não se vendem cinco passaritos por duas moedas? Pois bem! Mas Deus não se esquece de nenhum deles“ (Lc 12,6).
Cada realidade do cosmos tem o seu significado e a sua função e possui dignidade.
Daí se concluiu o erro de um “antropocentrismo despótico” desentendido das demais criaturas; isto é, o ántropos> homem, colocado no meio do mundo, pode fazer tudo o que lhe apetece. Não, não pode: “O fim último das restantes criaturas não somos nós (os homens). Mas todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus” (LS 83). Daí que, quanto mais frágil seja uma coisa criada por Deus, maior deva ser o cuidado a ter com ela. Como dizia já o Livro do Deuteronómio: “Se encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pardais com filhotes ou com a mãe a chocar os ovos, não apanharás nem a pardala nem a ninhada” (Dt 22,6).
Isto possibilitará até uma melhor defesa do valor de cada ser humano também criado por Deus e feito à sua imagem e semelhança.
Sermos parte desta grande família, mas a nossa autonomia sobre ela não é absoluta. Não podemos “considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e nela nos compenetramos”.
É por isso que “O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus” (LS 86).
Arlindo de Magalhães, 23 de Abril de 2017