A Quaresma não é um tempo litúrgico autónomo. É, perdoem-me a imagem, uma espécie de escada para chegar acima, não um banco para se sentar. A Quaresma foi criada para preparar a Páscoa. A ressurreição de Jesus é o acontecimento central de toda a História da Salvação e foi como tal percebida desde o início pelos cristãos. Por isso, ao lado da Páscoa semanal que sempre os cristãos celebraram — o Domingo—, desde muito cedo também começaram a celebrar uma Páscoa anual. Só temos notícia desta celebração pascal um pouco mais tarde que a do Domingo, ali por meados do séc. II. Por isso, a celebração da Páscoa organizou-se a partir da Eucaristia dos primeiros tempos cristãos: “no primeiro dia da semana, … reunidos para partir o pão…, a pregação prologou-se até à meia-noite…, Eutico estava sentado numa janela, adormeceu a caiu…, [e tudo isto] até de madrugada” (At 20,7-12).
Tão grande festa, no entanto, precisou de preparar-se: um dia, dois e três dias…, 40 dias (Quadragesina> Quaresma). Por outro lado, e por influência da igreja de Jerusalém que tinha à mão os ipsissima loca (os próprios lugares) onde tudo aconteceu, foi-se formando uma liturgia episódica que celebrava, passo a passo, os “passos” da Paixão e Morte de Jesus. Assim nasceu o Tríduo Pascal, os três dias centrais da celebração da Páscoa, que se estendeu a uma quarentena de preparação — na cultura judaica o nº 40 apontava preparação.
Foi-se formando em Jerusalém uma liturgia episódica da morte e ressurreição de Jesus, dizia. Uma mulher do séc. IV, de quem se não sabe nada a não ser que era galega, foi, entretanto, a Jerusalém em peregrinação e escreveu um relato de viagem a contar como na cidade santa se celebrava episodicamente a liturgia pascal. E o Ocidente recebeu a notícia trazida por Etéria ou Egéria e organizou depois uma liturgia pascal também episódica: a Ceia, o partir do pão, o lava-pés, a leitura dos acontecimentos, a morte, a cruz, a alegria da Ressurreição… Estava, portanto, organizada a celebração pascal, com o Tríduo no seu auge.
Mas, se o tempo de preparação festiva cresceu até aos 40 dias, a festa foi muito mais longe. Nas culturas antigas, a festa, fosse qual fosse, nunca se fazia só num dia. Ainda hoje há por aí casamentos de ciganos celebrados durante… quantos dias?; eu ainda fui a um casamento à minha terra natal que durou 3 grandes dias! Se a Quaresma tinha 40 dias, o Tempo Pascal — dizia — só parou nos 50 (penta + konta > cinco dezenas): é o Tempo Pascal, o tempo da plenitude.
A Quaresma que esta semana iniciamos foi desde o princípio percebida e vivida nas Igrejas como um tempo de disciplina ou jejum. Não era procurado por si, o jejum, pois que visava a libertação do espírito, necessária para atender ao essencial, sobretudo à partilha fraterna, a pensar nos mais pobres. [Claro que, hoje em dia, já não pensamos que o jejum é uma simples privação de boca. Os cristãos encontrarão hoje, na vida moderna, mil hipóteses de jejum, a muitos níveis, em muitos setores de vida, dos hábitos adquiridos ao claramente supérfluo. Tempo de jejum daquilo de que me posso privar, até porque o irmão pode ter necessidade do que, pelo menos, não me faz grande falta.]. Mas a Quaresma assumiu também, podemos dizer, uma dimensão batismal.
De início, era na grande noite da Páscoa, e só nela, que se celebrava o Batismo. Assim, ao tempo em que se batizavam apenas adultos que eram preparados para o primeiro dos Sacramentos da Iniciação ao longo de um tempo alargado, na Quaresma dava-se um apronto final para a grande e festiva celebração. A Liturgia da Palavra dos 5 domingos da Quaresma é uma sequência de 10 grandes quadros catequéticos de resumo ou repetição, 5 do Antigo Testamento e outros tantos do Novo Testamento. No ciclo C, que este ano ocorre, do Antigo testamento: Moisés, Abraão, a manifestação de Iavé no Horeb, a Páscoa judaica, «Algo de novo está a aparecer, não vedes?» (Is 43,19); e, do Novo Testamento: as Tentações no deserto, a Transfiguração, a conversão, os episódios do filho pródigo e da adúltera. Estes grandes quadros catequéticos ajuda(va)m as Igrejas e cada um dos já batizados a uma espécie de retorno às Fontes da Salvação, às Águas Batismais, a celebrar a Páscoa (ainda hoje, na Vigília Pascal, a água passa por toda a assembleia como referência memorial do Batismo).
Finalmente, terceiro, a Quaresma adquiriu também uma grande e importante componente penitencial. Porque a fragilidade do homem o leva quantas vezes a perder a Graça Batismal, porque o espírito do mundo (Satanás) é contrário ao Evangelho e continuamente desvia o homem do Caminho, é necessária a revivificação da penitência, eventualmente sacramental. É verdade que se transformou nos últimos séculos num tempo apenas penitencial. É esse o sentido fundamental do gesto da imposição das cinzas. É curioso! A carga penitencial carregou de tal modo a Quaresma… que, mesmo aqui na Serra, nos últimos anos, vem às cinzas (penitência) muita mais gente que à Ceia de jejum (jejum > Partilha de bens)!
Tudo somado, a Quaresma reduzir-se-ia a um tempo de decadência que ainda hoje persevera. Perdida a dinâmica batismal do início, desaparecida a ligação íntima entre o Batismo e a Penitência, caída a Igreja num legalismo perigoso e sempre redutor que fez perder o sentido do autêntico jejum (e da abstinência: abster-se do supérfluo), a Quaresma resume-se a exterioridades (procissões, roxos, confissões, a festa dita dos Lázaros, etc.) — folclore é o nome —, praticamente sem sentido. Em muitos sítios perdeu mesmo a sua ligação com a própria Páscoa, deixando de ser entendida e vivida como tempo de preparação para ela. Mas sem Quaresma não pode haver Páscoa, e sem Páscoa não pode haver Quaresma. Venha o diabo e escolha! Porque se não há Páscoa sem Quaresma, Quaresma sem Páscoa não tem sentido absolutamente nenhum. Comecemos então a celebrar a Páscoa pela 41ª vez!
Arlindo de Magalhães, 7 de Fevereiro de 2016