É quando as coisas começam a falar e o homem a ouvir as suas vozes que, no efémero, se pode ler o permanente, no temporal o eterno, e no mundo Deus. As mais diversas culturas foram capazes, todas elas, de perceber que o mundo, todo o mundo, constitui ou possui todo um sistema de sinais e significações: a noite é diferente da manhã, o frio do calor, o norte do sul, a pedra da madeira, a floresta do jardim, etc, e cada uma destas coisas é diferente da outra. Toda e qualquer realidade não é senão um sinal.
A coisa chamada “cinza” não tinha já praticamente nem valor nem significado na cultura do presente. Talvez tenha deixado de ser assim depois de terramotos como os de Bam, depois do ataque às torres de Nova Iorque, depois dos muitos atentados terroristas a que já nos habituámos, e mesmo depois dos acidentes de derrocadas de estruturas que deviam ter sido bem calculadas ou construídas como a da cobertura do Palácio do Gelo de Moscovo que ainda há bem poucos dias matou dezenas. É verdade que já nas culturas antigas a Cinza era o que ficava do desastre, do incêndio das casas dos nossos avós, para mais cobertas de palha, ou das nossas cidades: Roma no sec. I, Londres no XVII e tantas outras arderam num ápice. A Cinza é, por isso, nada.
Representando a condição do homem – “sou apenas pó e cinza” (Gen 18,27), dizia Abraão ao “Deus de Abraão”, no seguimento da afirmação da segunda narração da Criação que afirma que “Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2,7) – a cinza era o sinal do nada que sobrava do desastre (quer podia ser o da própria vida do homem).
Mas de facto, hoje, cinza só (alguns) a conhecemos, das lareiras das nossas salas no Inverno. Como não temos destino a dar-lhe, lixo.
Não assim no mundo antigo. Aí, a cinza era sinal de ter havido luz e calor. Porque o fogo domesticado não era sinónimo de desastre. Por isso tinha também vários préstimos.
Era, por exemplo, adubante da terra: no campo de semeadura espalhava-se a cinza, e a semente nela lançada nascia e crescia. O fruto podia ser a 100%.
Mas a cinza lavava também: nas antigas barrelas das casas ricas e pobres, uma vez por mês, água quente, sabão e cinza para dentro da barrica e assim se branqueava a roupa.
Há aqui, pois, na cinza, uma dupla significação: ela é fim quer do desastre quer da condição do homem (dirão alguns ou pensaremos todos, numa antropologia demasiado pessimista: “todos caminhamos para a mesma meta: todos saímos do pó e todos ao pó voltamos”, Ecle 3,20), mas também – adubo e branqueador – sinal de recomeço, portanto de penitência e conversão.
É neste último sentido que ela aparece no início da quaresma. Mais do que sinal da condição do homem – recordada na célebre expressão da Liturgia medieval marcada já pelo pessimismo do séc. XIV, o desgraçado, “Lembra-te, homem, que és pó e em pó te hás-de tornar” -, a cinza quaresmal é a cinza de Job (2,8), do rei de Nínive (3,6) e de tantos mais que, fazendo penitência, se vestiram de saco e se sentaram sobre ela.
Por isso, começando com cinza, a Quaresma termina com a celebração da Páscoa. Se hoje ela é o sinal, então, os grande sinais passarão a ser a água e o fogo. Este faz cinza, é verdade, mas trata-se de um fogo que “eu vim lançar à terra; e como eu gostaria que ele se ateasse!” (Lc 12,49). Por isso na Noite Pascal se cantará que o fogo do círio “seja um sinal de tudo quanto queremos dizer e fazer para que, tornando-nos luz de Cristo, continuemos a brilhar sobre a terra com mais intensidade”. Mas também a água, necessária nas antigas técnicas agrícolas para que a cinza penetrasse a terra. Conhecemos todos a sua dimensão baptismal, que é ela que faz nascer o Homem Novo, desde logo na Vigília Pascal.
(Serra do Pilar, 2004.02.25, Homilia em 4ª feira de Cinzas)