A tradição litúrgica cristã-oriental reuniu, num mesmo quadro, quatro eventos: o nascimento de Jesus, a adoração dos magos, o batismo [penitencial] no Jordão e as bodas de Caná. Um quadro mistérico da manifestação de Jesus, que é o que quer dizer a palavra epifania. Quando chegou a plenitude do tempo, nascido de uma mulher, enviou o seu filho…” Gl 4,4).
Nós, os ocidentais, entretanto, partiríamos o mistério em quatro fatias episódicas (a festa do nascimento, a dos reis, a do batismo no Jordão e a do sinal de Caná).
Seja como for, a Igreja celebra hoje ou no dia 6 de janeiro (nos países onde se conserva o feriado) a manifestação do filho de Deus.
Hoje, somos nós a epifania de Cristo, “luz do mundo que não se esconde para se meter debaixo da mesa, antes se coloca em cima dela para alumiar a todos os que estão em casa” (Mt 5,14). É toda a questão da visibilidade da Igreja, Sacramento do Reino para o Mundo, de cuja natureza faz parte o ser visível e eficaz. Sem visibilidade e eficácia não há Igreja. Mas muito cuidado com o triunfalismo!
A Igreja de Jesus concretiza-se em comunidades. Feitas de lugar e tempo, é a comunhão das comunidades de Jesus que realiza a Igreja católica. O que as une é o que faz a Igreja.
“A Igreja é uma só, embora abranja uma multidão, pelo contínuo aumento da sua fecundidade. Assim como há uma só luz nos muitos raios do sol, uma só árvore em muitos ramos, um só tronco de muitas raízes tenazes, muitos rios de uma só fonte, assim também esta multidão guarda a unidade de origem, se bem que apareça dividida por causa da inumerável profusão dos que nascem. A unidade da luz não comporta que se separe um raio do centro solar; um ramo quebrado da árvore não cresce; cortado da fonte, o rio seca imediatamente. Do mesmo modo a Igreja do Senhor, como luz derramada, estende os seus raios a todo o mundo, e é uma única luz que se difunde sem perder a própria unidade. Ela desdobra os ramos por toda a terra com grande fecundidade; estende-se ao longo dos rios com toda a liberalidade e, no entanto, é uma na cabeça, uma pela origem, uma só mãe imensamente fecunda. Nascemos todos do seu ventre, somos todos nutridos com o seu leite e todos animados pelo seu espírito” (São Cipriano, séc. III, Sobre a Unidade da Igreja).
Mas fique muito claro – nunca será por demais repeti-lo – que a comunidade cristã não depende nunca do humano: a comunidade tem a sua razão de ser originária em Deus. É Ele quem a chama e convoca. Ele quer, por decisão livre e generosa, reunir os homens dispersos (LG 9), fazer-nos seus filhos (Ef 1,5; Rm 8,29) e irmãos uns dos outros (Mt 23,8-9); foi Ele o primeiro a demonstrar que nos ama (1 Jo 4,19). A iniciativa é sempre de Deus: ele quis, quer e continuará a querer, ou não, que a comunidade simplesmente seja.
A comunidade não é, pois, uma realidade material, manipulável e governável por simples intervenção humana, esquecendo que se trata de uma realidade mistérica e sacramental. Ou seja, ainda: a pertença à comunidade não resulta sem mais de uma simples e descomprometida decisão, porque a comunidade cristã (como outra qualquer, aliás) tem referências que lhe são essenciais (sobretudo a Jesus e seu Evangelho). Para pertencer à comunidade exige-se o mesmo que se pedia aos antigos para serem filhos de Abraão, a fé; e, por isso, quando os filhos de Abraão se calavam gritavam as pedras (Lc 19,40) porque até de uma pedra pode nascer um filho de Abraão (Lc 3.8).
Para pertencer à comunidade é necessário valorizar devidamente e sempre as suas referências “constitucionais”, afirmadas de maneira muito clara nas comunidades cristãs primitivas: “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à partilha fraterna, à fração do pão e à oração” (At 2,42).
Ao longo da História da Igreja, dos lugares e dos tempos, vários foram os estilos e modelos da comunidade dos seguidores de Jesus: de vida ativa e contemplativa, missionárias, de inserção, masculinas, femininas, etc. Seja como for, para lá das notas acidentais que são sempre históricas, há dimensões essenciais que exigem essencialmente da comunidade. A “Igreja de Jesus Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, que, aderindo aos seus pastores, são elas mesmas chamadas Igrejas no Novo Testamento. (…) Nestas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres, ou dispersas, está presente Cristo, por cujo poder se unifica a Igreja una, santa, católica e apostólica” (LG 26).
Desde logo, as relações de fraternidade: na comunidade, a vinculação de todos e cada um a Deus exige a vinculação horizontal a todos os mais que o Pai elevou à categoria de filhos, mas a quem exige que vivam como irmãos. Depois a celebração da fé, momento culminante e fonte da vida cristã. À celebração, junte-se oração, a respiração e alimento da fé. Finalmente, a importância do compromisso com a própria comunidade e para com o Mundo envolvente (disponibilidade, serviço, co-responsabilidade, especial atenção ao outros e compaixão, etc).
“A comunidade para mim” ou “eu para a comunidade”? Há muito sabemos – e por vezes esquecemos – que à Comunidade ninguém tem direito a exigir seja o que for, mas à Comunidade todos têm obrigação de dar tudo o que possam.
A comunidade edifica-se com a participação de todos. Deus enriquece-a com dons e carismas que o Espírito confere a todos e cada um dos seus membros (1 Cor 12,11), “para bem comum” (1 Cor 12,7). E nenhum membro pode ser privado do seu próprio dom e, portanto, nenhum pode ser impedido de o exercitar para o bem da comunidade.
Daqui a importância vital do “ministério da presença” como dizia a Didascália dos Apóstolos (séc. III): “Ordena e persuade o povo a ser fiel em reunir-se, a fim de que ninguém diminua a Igreja por deixar de frequentá-la e assim o Corpo de Cristo não fique privado de nenhum dos seus membros”.
Meus irmãos. A vida não se faz da letra de uma doutrina pura e dura. Mas quando há vida já se pode fixar em linguagem doutrinal a beleza e a verdade do que Deus nos manifesta e a que nós respondemos por uma fé vivida.
Arlindo de Magalhães, 6 de janeiro de 2019