A conversão

Hyatt Moore, ‘Conversão de Paulo’

Há muitos séculos que a Igreja exige muito pouco. Na maior parte dos casos, vai-se à sacristia, marca-se, paga-se e já está. Não interessa quem, nem praquê, e a missinha já está celebrada. À missinha podia juntar-se o baptismo, depois a primeira comunhão e a solene, e, no fim, o funeral!

Mas não acabou aí: a igreja já começou a deixar-se transformar num lugar de catering não só em casamentos de luxo, pois que meteram já a mão em funerais de qualidade! E toda esta gente, na maior parte dos casos, nunca terá entrado numa igreja.

Aos próprios discípulos Jesus punha condições tramadas que os levavam a pensar no caso seriamente.

1ª: “Se alguém vier ter comigo sem renunciar ao amor para com o pai, a mãe, a esposa, os filhos, os irmãos, as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).

2ª: “Quem não carrega a sua própria cruz para me seguir não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27).

3ª: “Quem quer de vós que não renuncie ao que possui não pode ser meu discípulo» (Lc 14,33).

Passei a minha vida a dizer que somos uma Igreja de não convertidos, de cristãos – assim ditos – não praticantes. De facto, as nossas igrejas estão cheias de gente que nunca se decidiu por nada, muito menos por Jesus e seu Evangelho, que se pensa ou diz cristã e foi batizada do mesmo modo que recebeu dos pais e dos vizinhos a língua portuguesa (mas nenhuma outra).

Os nossos bispos disseram isto já há 25 anos (A formação cristã de base dos adultos, 1994):

“As profundas mudanças socio-religiosas são uma razão a exigir uma fé adulta, esclarecida, assente em convicções pessoais. Esbate-se o ambiente cristão da sociedade portuguesa, formado por hábitos, gestos, imagens e exemplos que, anteriormente, criavam referências e transmitiam uma determinada cultura cristã. É notória a ruptura entre a cultura e a fé (…): avançam o secularismo e a indiferença religiosa; crescem o pluralismo religioso e a confusão moral; atacam as seitas. Nesta situação, não basta o cristianismo exterior tradicional, apoiado no ambiente social e favorecido pela cultura envolvente. A fé tem, assim, de corresponder a uma tomada de posição pessoal, fruto de uma evangelização autêntica e de uma sólida formação”. Acrescentam depois: “A fragilidade do catolicismo português provém, em grande parte, do analfabetismo religioso. É uma fé sentimental e pouco esclarecida. Para superar esta insuficiência, é necessário cuidar do conhecimento dos conteúdos da fé, de modo a fundamentar convicções seguras que criem uma prática coerente” (2.c).

Aqui é que está o busílis da questão.

“O secularismo … penetra cada vez mais a consciência e a vida das pessoas, levando-as a pensar e agir sem Deus. E isto até em muitos que ainda se dizem cristãos, mas que toma decisões e adoptam estilos de vida absolutamente adversos à fé. E quando Deus está ausente, também os fundamentos antropológicos se diluem, perdendo-se o sentido da transcendência e da dignidade humana” (Catequese: A alegria do encontro com Jesus Cristo, 2017, p. 7).

Mas “As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé, em ordem à maturidade cristã e à participação ativa na vida e missão da Igreja; requerem uma formação que tenha em vista não só o conhecimento mais atualizado da fé mas também a iniciação cristã integral aberta a todas as componentes da vida cristã; requerem ainda uma formação que se oriente para o aprofundamento da mensagem cristã em relação com as experiências concretas das pessoas, de modo a fazer com que a fé, ilustrada pela doutrina, se torne viva, explícita e operante”.

 “Hoje, os antigos modos de formação não bastam. As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé…” (A formação…).

Formação cristã de base: que é isso? Porque não há formação cristã de base é que as igrejas se confrontam sempre e só com niquices, não com questões.

Assim dizia o Pe Anselmo Borges, há duas semanas, no artigo semanal do Diário de Notícias:

«A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e de ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto com o título “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria”

Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.” (…).

Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá … A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e por aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Muro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor”».

Arlindo de Magalhães, 8 de setembro de 2019