A Crise da Galileia

Joan Miró (1939)

Quando Jesus iniciou a sua chamada vida pública, começou a andar daqui p’ràli, não muito longe de casa, pelas aldeias dos arredores (Mc 6,6), entre a beira-mar ou melhor a beira-lago de Genesaré que era disso que se tratava e as pequenas montanhas da Galileia, Marcos diz ainda que entrou em algumas povoações de relativa importância, Cafarnaúm e Gerasa, por exemplo.

Aqui e ali, entrou em algumas Sinagogas da sua Galileia natal, junto do mar escolheu alguns discípulos, realizou aqui uns sinais, ali contou algumas parábolas, e por toda a parte falava do Reino de Deus…

Claro que a Galileia era um território pequenito em que nunca acontecia nada, e portanto a coisa soube-se logo ao longe, Marcos refere mesmo uns problemas, umas discussões, com os doutores da lei do partido dos fariseus (2,16) – a coisa deve ter chegado logo a Jerusalém que ficava muito lá para o sul, mas estas coisas sabem-se sempre!, e o poder tinha os seus canais de informação devidamente montados – mas nada de especial…

A família não demorou muito a entrar em cena (3,31), a tentar perceber o que estava a acontecer, talvez decidida a passar um correctivo ao familiar que lhe enxovalhava o nome. Mas Jesus lá se desenvencilhou do empecilho: Aquele que faz a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe (3,35).

As coisas complicaram-se, entretanto: e quando a coisa chegou aos ouvidos de Herodes. o tetrarca da Galileia, Jesus mesmo teve de retirar para a sua terra (6,1), como que a resguardar-se de um fogo que ameaçava pegar forte.

A tudo isto se dá normalmente o nome de “a crise da Galileia”: como ele próprio diria mais tarde, um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa (6,4).

Perante esta «crise da Galileia» que se abateu sobre ele (da parte dos judeus, «dos seus» familiares e dos conterrâneos), Jesus voltou-se para os Doze fazendo-lhes ver que perante o desengano e a falta de êxito a atitude nunca pode ser a da resignação. Agregar os Doze à sua actividade foi para ele como que rebentar com o beco sem saída para onde terão querido empurrá-lo. Por isso, Jesus enviou-os, dando-lhes indicações práticas sobre como comportar-se nas casas em que fossem acolhidos.

É aqui exatamente que é preciso saber ler. O que é que Jesus terá dito aos Doze quando os enviou? – ter-se-á perguntado Marcos quando escreveu o seu Evangelho. E como ele não sabia porque não tinha estado lá, imaginou. O que ele conhecia bem era como se fazia na primeira Igreja com os que andavam de cá para lá, em missão, a pregar Jesus ressuscitado: primeiro, eles não andavam de casa em casa e se, recusavam escutá-los, iam-se embora…. A partir daí, toca de imaginar o que Jesus poderá ter feito ou ensinado aos discípulos, mas que Marcos desconhecia. É que Marcos não tinha sido discípulo direto de Jesus e só entrou em cena muito mais tarde, ao tempo de Paulo e Barnabé (At 12,12.25).

A partir, portanto, do que se fazia nesse tempo, Marcos imaginou o que Jesus poderia/deveria ter feito quando enviou os seus discípulos em missão. Que pode fazer uma pessoa quando chega a algum sítio em tarefa pastoral? Hoje haverá alguns que, antes de mais nada, começam a fazer obras e a organizar viagens a que chamam peregrinações. Mas isso é não perceber nada de nada. Marcos, pelo contrário, fala em pregar o arrependimento, na expulsão de alguns demónios, é sempre muito importante curar uns doentes

E há uma outra informação importante neste relato: ungiam com óleo muitos doentes. Saliento esta informação porque, deste rito, só se fala uma outra vez em todo o Novo Testamento (Tg 5,13/16). Claro que não foi Tiago que o inventou. Já em prática ao tempo destes escritos – o Evangelho de Marcos e outros -, ele fundava-se na tradição de Jesus. O que nós desconhecemos hoje é o exato ensinamento de Jesus a seu respeito; mesmo assim, Marcos conhecia-o tão bem que imaginou que, já nesta missão, os Doze ungiam com óleo muitos doentes. Aqui se fundamenta o sacramento da Unção dos Doentes

Temos aqui de algum modo desenhada a maneira como os autores dos Evangelhos trataram literariamente a figura de Jesus.

Depois de o terem conhecido diretamente ou de terem recebido doutros a sua notícia, depois de testemunharem e analisarem o muito que ele fizera e dissera, o muito que ousara, depois de terem entendido por que o hostilizaram e depois o mataram na cruz e, sobretudo, depois de o experimentarem vivo após a ressurreição, concluíram (baseados na história mas dando um grande salto): Realmente este homem era Filho de Deus (Mc 15,39). Isto é, da história saltaram para a fé, baseados na história, mas de modo algum dela libertados.

Realmente este homem era Filho de Deus ou, noutra versão nossa conhecida, Tu és o Cristo (Mc 8,29).

Claro que esta afirmação é uma afirmação histórica: falavam de um homem histórico que tinha vivido entre eles. Mas não só. Porque, de facto, se os seus contemporâneos primeiro conheceram um homem, foi exatamente a partir da sua humanidade que o descobriram e reconheceram como Deus, sendo então capazes de o confessar como tal. É deste homem e deste Deus que os evangelhos (sinópticos) nos dão uma notícia clara: primeiro Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José, o tal que, logo aos primeiros problemas, recuou até “à sua terra”! (Mc 6,1), mas que, depois, reconheceram Filho de Deus. Por isto mesmo é que, para nós, os cristãos, a história é muito importante.

Dizer isto de outra maneira é assim: é nos homens que Deus se revela. Foi especialmente num homem que Deus se revelou. Esta é a grande novidade do cristianismo relativamente a todas as grandes religiões.

E pode também dizer que uma coisa é a História e outra a história dos Códigos.

Arlindo de Magalhães, 15 de julho de 2018

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