Não há muitos anos, uma senhora chegou, veio falar comigo e não demorou a dizer ao que vinha: — Sr. Padre, eu sou católica, mas há uma coisa que eu não percebo: dizerem que se come e bebe a carne e o sangue de Jesus. Isso não aceito! Eu não sou antropófaga!
Eu fiquei a olhar para ela!
No rescaldo da multiplicação dos pães que aconteceu no “outro lado do Mar da Galileia ou de Tiberíades” há já quase um mês – não veio no jornal, mas continua a vir no Evangelho de João –, chegamos agora à questão não já do pão-pão, do que mata a fome e simboliza mesmo o trabalho do homem (“comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gn 3,19), mas do pão da Eucaristia: símbolo > realidade.
O Concílio Vaticano II falou repetidamente dele – deste pão – ou dela – da Eucaristia –, dizendo que é a fonte e o cume da vida da Igreja, o ponto de chegada e de partida de toda a vida cristã: a Eucaristia é «fonte e centro de toda a vida cristã…» (LG 11,1) e «cume de toda a evangelização» (PO 5), etc., etc. Não será preciso explicar muito mais pois que, na vida desta comunidade, o experimentamos: pouco de devoções e de missas, tudo pela Eucaristia dominical, quanto nos custa prepará-la e quanto dela decorre!
Desde o princípio que, na comemoração semanal da ressurreição que criou o dia do Senhor, as comunidades cristãs só no primeiro dia da semana celebravam a Eucaristia: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão…”, conta Lucas nos Atos (20,7) que assim era em Tróade. Mas há mais, muitas notícias mais.
Os cristãos, irmãos que eram, constituíam uma igreja de “pedras vivas” (1 Pd 2,5): “vós sois o corpo de Cristo e cada um é um membro” (1 Cor 12,27). E, corpo vivo, precisa de comida: “Fazei isto em memória de mim!”.
Esta acumulação de símbolos — pão e vinho, comer e beber, corpo e membros, corpo de Cristo e igreja de pedras vivas, partir o pão (a fração do pão) e “quando vos reunis para comer a ceia do Senhor… enquanto um passa fome e outro fica c’os copos” (1 Cor 11,20-21) — se, por um lado, como diz o Vaticano II, constitui a fonte e o cume da vida da Igreja, por outro, rapidamente esta prática inicial se foi.
E, pouco a pouco, mas rapidamente, a celebração semanal — no “primeiro dia da semana” — passou a devoção diária: os monges passaram a ser todos ou quase todos presbíteros e a missa multiplicou-se, sobretudo a partir do momento em que ela e dinheiro ou espórtula se juntaram. E dos mosteiros a prática passou aos conventos, daí às paróquias e capelas, havia muitos padres e todos tinham de viver; o último estádio desta evolução, vergonhosa e ainda vigente, é já do nosso tempo: foi a de juntar intenções, 20 ou 30 que seja, na mesma missa; assim rende mais e não dá tanto trabalho.
Em quase todos os lados a missa continua a ser diária e a horas várias, deixou de ser celebração para ser devoção, missas não preparadas, missas por tudo e por nada, mas quase sempre por alma de e nunca pela vida de ninguém. Apesar da valorização que, há 50 anos, o Vaticano II deu à celebração eucarística chamada missa, ela voltou a ser anónima, formalista, não exprime nem celebra qualquer tipo de emoção, tecnicamente uma vergonha…
A juntar a tudo isto, a falta de presbíteros e a enormidade de tarefas que se carregam sobre um só (já há párocos com nove paróquias!).
O resultado é paradoxal: onde há fome de Eucaristia não há possibilidade de a encontrar (cada vez mais, nas periferias e interiores, há comunidades sem Eucaristia dominical ou em que os cristãos têm de calcorrear distâncias enormes e em que o Sr. padre está sempre com pressa pois tem de acorrer à paróquia seguinte).
Entretanto, nos grandes centros urbanos, apesar da maior oferta celebrativa, a cultura é agora outra: o “fim de semana”, as saídas, o desporto, as idas à terra, as festas, os condicionalismos impostos pelo comércio liberal, nada disto rima com o antigo domingo convocado pelo campanário.
A juntar a tudo isto e em pleno mês de agosto, a disfunção acentua-se: com tanta gente fora dos seus lugares de habitação, os cristãos não encontram resposta de acolhimento nos lugares para onde se deslocam. É frequente ouvir: “Não fui à missa porque no lugar aonde vou a coisa é tão má …!”.
Este é um problema prioritário que a Igreja portuguesa não controla. A torto e a direito, ouve-se falar em evangelização, ano disto ou daquilo, muitos que nunca se encontram onde que bom seria passassem, nas periferias, por exemplo, procissões e outras coisas mais e semelhantes, benzeduras de quase tudo…
Mas a questão da Eucaristia, essa nunca é questão prioritária! Nem há presbíteros que possam acudir-lhe!
Arlindo de Magalhães, 19 de agosto de 2018