A Graça vai à frente

Mantra | Enrique Mirones, Monasterio de Sobrado (Galiza)

Mantra | Enrique Mirones, Monasterio de Sobrado (Galiza)

1. Como sabemos, 2/3 do Evangelho de Lucas gasta-os o evangelista a relatar a viagem/peregrinação de Jesus mai-los discípulos a Jerusalém, a cidade santa do Templo judaico, situada quase a meio da Judeia.

Antes de o fazer, porém, já ele tinha andado de Seca para Meca na Samaria nortenha e zonas adjacentes, sempre de um lado para o outro!

Tinha já andado da Galileia para o Jordão (Mc 1,9), e logo ao contrário, de lá para Nazaré (Lc 4,16), que ficava lá ao fundo da Galileia; dali passou a Cafarnaúm (Lc 4,31), na margem do Lago de Genesaré, subiu depois muito lá para cima, muito depois da Fenícia, a Tiro e Sídon (Lc 6,17). Voltou depois à Galileia, também ao Jordão, do outro lado do Lago (a meio da Samaria, o Jordão abre-se ali numa espécie de lago), passou para o seu lado oriental, onde, a Gerasa e à vizinha Betsaida, aldeias ambas pagãs, ele foi buscar Pedro e André, seu irmão! (Jo 1,44), e ainda Filipe! (Jo 1,45), e só então se pôs a caminho¬ de Jerusalém.

Sempre a andar: “O Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). Por isso Francisco de Assis se fez mendicante: dum lado para o outro, como do que me dão e anuncio o Evangelho.

Em tudo isto, Jesus ia e foi a lugares muitos e diversos (Mt 14,13), aldeias e cidades (Lc 19,1). Recolhia-se muitas vezes em lugares desertos (Mt 14,13; Luc 9,18, etc) ou mesmo despovoados (Lc 9,12), uns tinham nome — Gólgota (Mt 27,33), por exemplo, lugar onde morreu — outros não (quando ensinou o “Pai nosso” estava em “algures” [Lc 11,1])…

Nunca estava no mesmo sítio. Jesus era um andante, sempre de um lugar para outro, daquele em que tinha comido (Jo 6,23) ou em que tinha já estado (Jo 10,40), para outro aonde se dirigia (Jo 6,21). De passagem, visitava os amigos: o doente Lázaro (Jo 11,1), a doente sogra de Pedro (Mc 1,30), Marta e Maria (Lc 10,38) … Alguns lugares Jesus conhecia-os bem “porque se reunia ali muitas vezes com eles” (Jo 18,2), noutros conheciam-no bem a ele os que lá moravam (Mt 14,35). Mas passava em muitos outros lugares de que nem sequer o nome sabia, “esse lugar que está aí à vossa frente, meus…!” (Mt 21,2). Ele até conhecia lugares de nome muito esquisito, Litróstotos (Lagedo), por exemplo, grego pela certa, mas língua que ele não sabia (Jo 19,13). Sem problemas, entrava nas aldeias, mesmo pagãs, na Samaria (Lc 9,52)… Quando lá, na Samaria, uma vez, puseram os discípulos a andar e não os receberam, Jesus disse-lhes: “Vamos para outra terra” (Lc 9,56)…

Mais ainda poderia contar, mas… Mateus resume isto tudo muito bem: “Jesus percorria as cidades e as aldeias, ensinando nas Sinagogas e proclamando a Boa Notícia do Reino” (Mt 10,35).

Não há dúvida nenhuma: depois da ressurreição, os Discípulos cumpriram o que o Mestre lhes tinha dito: “Ide pelo mundo inteiro e proclamai a Boa Nova a toda a criatura” (Mc 16,15). E eles espalharam-se pelo mundo como um pingo de mercúrio no oceano. Mesmo Pedro e Paulo…

2. Felizmente que a Graça vai sempre à frente dos nossos passos, de tudo o que fazemos e dizemos. Felizmente!, tal e qual como no tempo dos Apóstolos, quando começaram a espalhar-se por todo o Mundo conhecido de então. O que então acontecia! Tanto que poucos pouco tempo tiveram de o escrever! Ainda bem que, no hoje em que toda a gente fala e diz e sabe e pensa e a televisão transmite, felizmente e caladamente mas com verdade, as coisas vão acontecendo, essas de que ninguém fala, das que não vêm nos jornais nem se ouvem na televisão. Essas que são fruto da Graça, que geram movimentos e vagas de fundo e que, quando se dá conta delas, se não podem já controlar. Foi assim que o método histórico-crítico acabou com o literalismo bíblico, que o movimento ecuménico acabou – definitivamente ? – com os irmãos de costas voltadas e sempre a insultar-se, que a Ação Católica e depois o Vaticano II acabaram de vez com essa de que “os leigos são aqueles que não são”(clérigos) e com aquilo que Paulo escreveu a dizer que “as mulheres estejam caladas nas igrejas e devem ser submissas” (1 Cor 14,34). Já me esquecia de que o Concílio disse também, clarinho!, que a Igreja não é uma instituição nem uma carneirada.

3. Zaqueu, por exemplo. Zaqueu: ninguém falava dele, e ele não ia a Fátima a pé nem à televisão. Andava era perdido; mas já a Graça o tinha trabalhado. Por isso, mal o Senhor lhe disse que queria ir a sua casa, correu a descer do sicômoro, que ele era baixote. Sicômo era uma figueira pequenota! Como Zaqueu! Mesmo assim, porque a Graça o tinha já transformado por dentro, a salvação foi a sua casa! Que também ele [já] era filho de Abraão!

O Papa Francisco foi eleito a 13 de março de 2013; a 24 de novembro desse mesmo ano publicou “A alegria do Evangelho”. Quando li as primeiras páginas, topei logo com: é necessário ”sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz”. Fiquei especado… e acrescentei eu: alcançar “mesmo os que podem estar escondidos no alto de um pequeno sicômoro!”.

Agora é Frei Bento que fala. “A grande tentação religiosa consiste em pensar que o encontro com o Ressuscitado acontece apenas e sobretudo nas missas, nos sacrários e nas exposições do Santíssimo Sacramento. Esses exercícios espirituais valem e muito na medida em que nos lembrem que Jesus Cristo é o clandestino da semana, derrubando muros, separações, inimizades, entre pessoas e grupos. A devoção que retém as pessoas nas igrejas, nas sacristias, está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias sociais e culturais. Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma Igreja de saída! O Papa não está a inventar nada. Lembrar apenas a pergunta de Deus: que fizeste do teu irmão? O julgamento religioso de toda a história humana, religiosa ou profana, em todos os seus momentos, depende da resposta a essa pergunta”.

Há salvação ou não há? Deus é que não gosta de fazer nada sozinho, e o papa Francisco também não.

Arlindo de Magalhães, 30 de Outubro de 2016

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *