A Música na Serra do Pilar

Testemunho do maestro e compositor Fernando Lapa, acerca do lugar da música litúrgica e da sua participação na Comunidade.

Em tempo de celebrações, fui convidado a dar o meu testemunho relativamente à música litúrgica nesta comunidade. Devo dizer desde já por indisponibilidades e impossibilidade de dedicação exclusiva, nunca fui o responsável musical do coro da Serra do Pilar, embora me tenha considerado ao seu serviço prioritariamente como compositor. Nessa qualidade fui escrevendo diversos cânticos para a liturgia, quase sempre sobre textos de grande qualidade litúrgica e poética, da autoria de uma dupla que deixou marcas em tudo o que escreveu: o P. Leonel de Oliveira e o Manuel Neto. É de alguns destes assuntos que quero deixar notas breves, sublinhando alguns pontos que me parecem distintivos da prática musical da comunidade e que de alguma forma marcaram grande parte do que se fez nesses domínios.

O P.e Arlindo Magalhães desempenhou desde o início um papel primordial na construção e sedimentação da comunidade, surgindo como verdadeiro catalizador de tudo o que nela se foi criando, construindo e desenvolvendo, lançando ideias e iniciativas, suscitando colaborações, participações, empenhamentos. 

A Eucaristia sempre foi entendida e sentida como o centro da vida cristã da comunidade. Decorrente deste princípio, prestou-se a máxima atenção à palavra, aos gestos, aos sinais, ao espaço da celebração, aos diferentes elementos simbólicos, ao canto e aos seus níveis de participação (o celebrante, a assembleia, o coro, os solistas, os instrumentistas).

A música sempre foi sentida e entendida pela comunidade como elemento de grande importância na sua dimensão celebrativa. Essa relevância está implícita na forma como tudo se foi organizando a partir da acção mobilizadora do seu presidente, P.e Arlindo Magalhães, mais tarde secundado pelo P.e Leonel de Oliveira e desde sempre apoiado por um grupo de jovens (alguns menos jovens) que foram formando o coro ao longo dos tempos e que à parte musical dedicaram a sua generosidade e entusiasmo. Todos foram crescendo na sua aprendizagem e na experiência de comunidade e de igreja, abrindo-se também a novas práticas e experiências musicais. Isso se tornaria suporte e estímulo para um canto que cada vez mais se fez de todos, à medida que a assembleia foi aprendendo a apropriar-se dos textos e músicas que se foram criando e ensaiando. As várias funções e ministérios foram sendo suscitados pelas necessidades da comunidade, nos vários níveis de participação que foram exigindo: coro, solistas, instrumentistas, director do coro, directores do canto da assembleia e outros. 

No que respeita à criação da música para a liturgia, faz sentido referir aqui a equipa que tomou a seu cargo essa missão, por proposta e estímulo constante do P.e Arlindo: o P.e Leonel de Oliveira, o Manuel Neto e eu próprio.  Nesta demanda, ao longo dos anos, diversos enquadramentos e preocupações foram norteando a nossa actividade. Sublinho resumidamente alguns deles.

Numa procura de renovação, alguns exemplos de música litúrgica de outros países, nomeadamente da comunidade de Taizé, constituíram uma referência e estímulo, pela riqueza das suas formas, pela simplicidade e beleza de alguns processos retirados da música do passado e por técnicas de grande resultado expressivo e de ambientes mais próximos das músicas do mundo. Também a rica tradição musical da Igreja nos forneceu inspiração e estímulo, tanto na prática e exemplo do canto gregoriano como da polifonia antiga. 

Mas tornava-se imperioso encontrar novos cânticos e repertórios, que respondessem às necessidades particulares da comunidade e pudessem ser assumidos como cânticos de todos. Alinho resumidamente alguns pontos desta procura:

  • a necessidade de encontrar formas de expressão mais adequadas e acessíveis a todos, mas ao mesmo tempo com abertura para outros registos, sensibilidades e exigências, nomeadamente no que respeita ao coro;
  • a perspectiva de desenvolver formas mais completas e expressivas para o canto da assembleia, estimulando a participação e mobilizando para a mudança; 
  • a criação de escritas corais que, partindo de bases mais acessíveis a todos, pudessem ir fazendo evoluir as vozes e os conjuntos, na procura de uma maior riqueza da expressão; 
  • a potenciação dos instrumentos (órgão, as guitarras, o baixo elétrico, as flautas) que foram existindo dentro do núcleo do coro, e a que pontualmente foram sendo acrescentados outros (trompete e piano, por exemplo) em nome da excepcionalidade ou particularidade de alguns momentos celebrativos;
  • a perspectiva de trabalhar num campo musical um pouco mais aberto que o da tradição da música da Igreja, que pudesse ajudar a renovar práticas e expressões e a construir linguagens com alguma sintonia relativamente à música do nosso tempo; (Apesar disso nunca se abriu a porta a qualquer importação primária de música ligeira, seja da música rock ou pop e muito menos dos géneros mais “rasteiros” da música popularucha).
  • a procura de correspondência do trabalho musical com a excepcionalidade dos textos que o P.e Leonel e o Manuel Neto foram produzindo ao longo do tempo, tendo constituído um estímulo e um extraordinário desafio para a escrita musical. 

Faço referência ainda ao longo trabalho realizado sobre os salmos, em grande parte repensados e revistos para a Liturgia das Horas, em textos destinados a serem cantados, onde a proximidade com a escrita poética, o ritmo das palavras, a sonoridade, a qualidade da escrita, são determinantes. (Foi um trabalho de anos, inesquecível, às quartas-feiras, em casa do P.e Leonel – a casa de todos, na Viela do Anjo, no Porto).

Refiro de passagem alguns cânticos maiores: O Salmo 50, o Grande Hallel, os Introitos para as grandes festas do Natal, da Páscoa, do Pentecostes, os Introitos do Advento e da Quaresma, os salmos da Vigília pascal, os cantos eucarísticos; os cantos para a celebração do Matrimónio. E junto ainda os vários cantos para o ordinário da missa, as aclamações e cantos para as Preces, os salmos responsoriais ou para a Liturgia das Horas, a música para celebrações com as crianças, cantos para a catequese ou o Catecumenato.

Quero também lembrar as vozes inesquecíveis do P.e Arlindo e do P.e Leonel, na presidência das celebrações, cantando o Prefácio ou as Aclamações do Final da Anáfora, que sempre recordarei emocionado.

Gostaria de referir e sublinhar finalmente dois momentos particulares da presença música para a liturgia criada na comunidade da Serra do Pilar: o trabalho realizado para o Precónio – um dos momentos mais altos da extraordinária celebração da Vigília Pascal; e um concerto invulgar, com 3 coros e vários instrumentistas, em que a propósito da celebração do Vaticano II se fez uma resenha da música criada para esta comunidade. 

O Precónio Pascal é uma parte significativa da mais importante celebração da liturgia cristã: a Vigília Pascal. Momento excepcional, pela sua amplitude, pela riqueza dos textos e pelo sugestivo e profundo significado dos gestos e dos sinais, este é um hino maior. Com ele se encerra a primeira parte da vigília pascal: a liturgia da luz.   

Tendo em conta as características únicas desta celebração e a importância que a Comunidade da Serra do Pilar sempre atribuiu à liturgia, propusemo-nos repensar esse importante momento celebrativo.  Neste trabalho de equipa – o P.e Leonel de Oliveira, o Manuel Neto e eu próprio – se refizeram e reequilibraram os textos, criando-se a música que os suporta e amplifica. Corria o ano de 1998.

Como momento litúrgico privilegiado que é, o excepcional texto do Precónio requereu tratamentos musicais mais amplos e mais abertos, sugerindo meios e processos que não serão de todos os dias em qualquer uma das nossas comunidades, não apenas no tipo de escrita musical apresentado, mas também nos meios que mobilizou (coro, assembleia, solistas, duas flautas, trompete, guitarra, baixo eléctrico, piano e órgão). 

Apesar de tudo, a linguagem musical utilizada e as ferramentas musicais que a suportam pretendem equilibrar dois vectores distintos: o carácter funcional de uma música que cumpre um papel na celebração de toda a comunidade (música em que todos participam, portanto, sem prejuízo de outras formas qualificadas de participação, tais como o coro, os solistas, os instrumentos); e uma perspectiva de abertura e de algum alargamento relativamente aos meios e às ferramentas musicais da arte do nosso tempo (procurando criar portas para uma expressão mais aberta e mais projectada). E, também nisso, pascal.

A propósito dos 50 anos do Vaticano II, a comunidade da Serra do Pilar organizou um ciclo de eventos vários – entre conferências, debates ou outros formatos – tendo previsto também um “concerto” dedicado à música litúrgica (já que a liturgia e a sua música tiveram e têm particular relevância na comunidade). 

A sequência dos vários tempos litúrgicos foi o fio condutor com que pretendemos articular as peças desse concerto. No centro de tudo colocámos a música do tempo pascal, sobretudo três distintos momentos do Precónio, o canto maior da celebração da Páscoa nesta comunidade. Como separadores e comentadores das peças musicais, decidimos convocar também alguns poemas de José Augusto Mourão. São textos quase litúrgicos que prolongam, a seu modo, a força, a expressividade, a verdade e a beleza de todos os textos que o P.e Leonel e o Manuel Neto escreveram e que eu tive o privilégio de musicar. 

Foi uma espécie de celebração-concerto, à volta da música que nasceu nesta e para esta comunidade, como consequência das promessas do Vaticano II (que como sabemos, estão bem longe de se terem cumprido, também na música e na liturgia…). Participaram 3 coros e diversos instrumentistas convidados que nos ajudaram nessa festa da nossa música.

Fernando Lapa
Vila Nova de Gaia, Mosteiro da Serra do Pilar, 20 de Outubro de 2024