Nas religiões e culturas primitivas, a Natureza era considerada como o «lugar divino»[1] por excelência: «o céu e a terra» foram sempre, de facto, desde as origens, a grande manifestação e a morada dos deuses. Sentindo a sua vida ameaçada pelos rios e pelos astros, pelo mar, sabendo-se incapaz de enfrentar vitoriosamente os «elementos do mundo» ou ainda de canalizar as suas energias, os homens, para afastar o temor que lhes incutiam, reverenciavam-nos. Esta primeira atitude do Homem diante da Natureza foi, portanto, uma atitude religiosa, comandada embora pelo medo e pelo utilitarismo.
Deus criou o Mundo para o Homem — pensaram assim os nossos antepassados: a sua beleza, a regular idade do ciclo dos astros e das estações…! — mas, sempre que preciso, a mando de Deus, o Mundo castigava o Homem (tempestades, terramotos, vulcões, tufões e vórtices, tsunamis…).
Por um lado, o espetáculo da grandeza e da beleza do mundo, o regular funcionamento do ciclo dos astros e das estações; do outro, o poder do vento, das tempestades, dos tornados aos…, mas que Deus é este?, não será isto um castigo de Deus?
O livro do Génesis, entretanto, regista o enorme esforço dos homens, que, de geração em geração, cresceram no domínio da Natureza e na alegria dos seus recursos. É a história das culturas e civilizações.
O progressivo domínio da Natureza deu ao Homem o poder de explorar os seus recursos, o que teve fundamentalmente dois tipos de efeitos:
– primeiro, os frutos desse domínio não foram e continuam a não ser igualmente repartidos por todos os homens, apesar dos esforços de montes de gente, analistas e militantes, responsáveis políticos, instâncias humanitárias e eclesiais, no sentido de fazerem progredir, nas mentalidades e na prática, a ideia de que a terra pertence a todos e de que, por conseguinte, todos têm direito, segundo modalidades a determinar, a beneficiar dos seus frutos;
– depois, a exploração sistemática dos recursos naturais começou a conduzir ao esgotamento das reservas energéticas e das matérias primas, e originou graves atentados à paisagem, ao solo, ao mar e ao espaço, bem como encheu de «lixo» toda a superfície e atmosfera do globo. E o Homem foi de novo obrigado a interrogar-se pela sua relação com a Natureza. De resto, começou a sentir-se ligado a ela mais do que supunha; descobriu-a como «condição» e «meio» da sua vida e começou a perceber também que tinha de a respeitar; que em vez de delapidar os seus recursos, tinha de os gerir conscientemente. E que as urgências maiores são agora o respeito, a conservação e a proteção da Natureza. Numa palavra, que «não basta limpar o exterior do prato e do copo se o interior está cheio de rapina e malvadez» (Mt 23,25).
Por isso, urge, antes de mais, tomar consciência da amplidão do desastre já cometido e do perigo que se continua a correr. À poluição que por todos os lados se topa podem juntar-se o crescente perigo nuclear (os desastres com centrais deste tipo acontecem um pouco por todo o lado), as sucessivas marés-negras e as desflorestações maciças (a Amazónia é apenas um caso), a rutura da camada de ozono, as chuvas ácidas, que são algumas das questões para que temos vindo a ser alertados. Mas mais: o homem primitivo temia a Natureza e seus poderes maléficos, que atribuía aos deuses; mas o homem contemporâneo sabe-se o autor desses poderes maléficos, verdadeira Caixa de Pandora aberta pela sua inconsciência, incompetência e inabilidade, donde saíram muitos males e pode mesmo sair o poder destruidor final. E é preciso também tomar consciência de que, contrariamente ao que se pensava, os recursos da Natureza não são ilimitados, e que o progresso material e o desenvolvimento técnico não são, sem mais, a priori, positivos. Isto é: nem tudo o que pode ser feito deve ser feito, e nem tudo o que traz (aparente) benefício para o homem deve ser feito. Doutro modo ainda: nem impotente diante da Natureza, nem todo-poderoso contra ela; o Homem é antes o responsável da sua própria existência, que não pode viver a não ser na Natureza e com a Natureza.
Hoje em dia, pode dizer-se que a relação do Homem com a Natureza não mais será regulada nem por um simples deixar-correr apoiado nas leis da mesma Natureza e no comportamento espontâneo dos homens, nem apenas pela ciência e pela técnica, mas sim por uma ética. Só uma ação humana responsável — capaz de anunciar quer valores quer normas — pode alterar o presente estado de coisas.
Em primeiro lugar, é preciso conseguir na geração presente uma atitude fundamental de sobriedade e respeito para com a Natureza, contrária a qualquer tipo de delapidação irresponsável, o que não exclui uma utilização razoável orientada por critérios de procura do melhor benefício possível para a Humanidade.
Depois, é preciso gritar que o verdadeiro adversário da Natureza é, na civilização atual, não a técnica mas a economia. De facto, a procura de um melhor poder de compra e de um maior conforto, e o aumento exagerado dos lucros, fazem com que seja a economia que, antes de mais nada, tenha de ser metida na ordem.
Em terceiro lugar, urge desacelerar a procura desenfreada do lucro económico e mesmo, numa certa medida, do progresso técnico. Isto é: o móbil do mundo moderno é o de realizar o tecnicamente possível e de conseguir o economicamente vantajoso. Mas isto, sem mais, não pode continuar.
Não mais é possível levar a cabo quaisquer iniciativas só porque são tecnicamente possíveis e dão lucro aos seus promotores: as decisões a tomar têm de ter em conta as verdadeiras necessidades do maior número possível de homens.
Depois, impõe-se absolutamente o respeito pelas gerações futuras.
Nunca como hoje o homem esteve tão claramente na situação de se perceber como responsável tanto pelo seu destino como pela sua própria vida. Nunca como hoje o homem esteve em condições de verificar em que medida a Humanidade é una. Nunca como hoje, no auge do seu poderio técnico, económico e político, o homem viu tão claramente quanto esta grave questão lhe exige uma ética e o põe na perspetiva da dimensão religiosa. O anúncio bíblico do Deus único, Senhor e Autor do mundo, confiado à Humanidade criada «à sua imagem e Semelhança», que, com a sua Graça, caminha para a perfeição última e definitiva, exige dos cristãos, em toda esta questão do respeito pela Natureza, uma postura decorrente da sua fé. Porque, também neste campo, «se os Filhos de Abraão se calam, gritarão as pedras». E como elas têm gritado!
Arlindo de Magalhães, 12 de Março de 2017
[1] Os deuses das religiões nórdicas viviam no centro das florestas transformadas em bosques sagrados: é daí, por exemplo, que vem o pinheiro do Natal. “As grandes forças que criaram o Universo não podiam ser adoradas numa casa construída por mãos humanas, nem o Infinito podia estar contido dentro de qualquer coisa feita pelo Homem” (in As brumas de Avalon).