Como diz esta página de Lucas acabada de ser lida, Jesus começou a sua “vida pública” na sinagoga de Nazaré, onde leu e comentou um texto de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim; ele mandou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres” (61,1-2). Resumindo, Lucas – que escrevia depois e à luz da Ressurreição – põe na boca de Jesus um programa de vida. Nós hoje compreendemos a perspetiva do evangelista.
Diante disto, duas reações típicas. Primeira: “todos davam testemunho em seu favor e se admiravam das palavras cheias de graça que saíam da sua boca” (4,22); segunda: “Ao ouvirem estas palavras na sinagoga, ficaram furiosos, expulsaram-no da cidade subiram ao cimo do monte e queriam precipitá-lo dali abaixo” (4,29).
Ainda hoje acontece isto muitas vezes: eu quase diria “ai daquele a quem isto não acontece!”: é uma normalidade na vida pastoral das Igrejas. Com Eliseu foi assim, com Paulo foi assim, com a Igreja sempre foi assim, com Jesus não poderia não ter sido assim. Sempre que há missão, pode naturalmente haver dificuldades e mesmo recusa. Nisto os evangelistas informam rigorosamente, historicamente. A posição de Jesus era fatalmente desconfortável: o mundo – aqui leia-se: a sua terra – não o entendeu, a família também não, como se diz noutros lugares (Mt 12, 46-50, Mc 3,31-35). Os problemas com o Judaísmo começaram também de imediato. O estilo da vida de Jesus, o que ele dizia e fazia, dava para perceber: punha em causa o que parecia ser a tradição.
Daí a oposição. Os conterrâneos, chocados e escandalizados, a gente está mesmo a ver: naquele tempo, quiseram deitá-lo pela escarpa abaixo, era por ali que se despejavam lixos e outras coisas. Então, este tipo, que não passa de filho do Zé carpinteiro, vem pr’àqui…! (Mt 13,55).
“Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”, isto é, eles acabaram por não lhe fazer nada e ele “seguiu o seu caminho”, da Galileia a Jerusalém, onde, então sim, acabou por consumar-se o que já se esboçava desde Nazaré. Não esqueçamos que Lucas escreve depois da ressurreição. Jesus prosseguiu um caminho que só no fim e à luz da sua morte e ressurreição se entendeu verdadeiramente.
A Sinagoga era um lugar onde qualquer israelita podia falar e comunicar à assembleia um pensamento e uma palavra de edificação. Todos os Sábados isso se fazia nas Sinagogas de Israel: o Povo de Israel era, pelo menos em teoria, um «povo de Profetas» (Num 11,29); não como na Igreja cristã, onde fala só um e (quase) sempre o mesmo. Jesus não procedeu assim.
Já no Jordão, não foi ele que se apresentou a João, esperou que, isso, o Pai o fizesse e, depois, que João o apresentasse aos primeiros discípulos: «… mais forte do que eu, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias!» (Mc 1,7); “Ao ver que Jesus se dirigia para ele, exclamou: Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29). Depois disto, em Caná da Galileia, não foi ele que entrou em cena, foi a mãe: “Não têm vinho!” (Jo 2,1-11).
Foi então para Cafarnaúm, ao lado (do lago) de Genesaré. E como os pobres não têm muros nem vivem isolados, inteirou-se logo da doença da sogra de Pedro e apresentou-se imediatamente, em sua casa (Lc 4,38). A notícia espalhou-se logo. Apareceu imediatamente gente vinda de todos os lados, tanta que não cabia nem no terreiro da aldeia…, só à borda do mar (Lc 5,1): aí, sim, na praia, havia lugar para todos poderem ouvir a Boa Nova e abrirem os olhos à nova «luz que veio ao mundo para iluminar os que andavam nas trevas» (Lc 1,79).
Por esta altura, foi procurado pela família, que achava que ele não andava bom da cabeça. Foi então que, quando lhe disseram que sua mãe e “irmãos” o procuravam, ele disse, para quem quis ouvir, que mãe e irmãos eram para ele os que faziam a vontade do Pai (Mc 3,31-35 ou Lc 8,19-21).
No rio Jordão e em Cafarnaum, como em Nazaré, Jesus seguiu sempre o caminho da sua humanidade, com todas as suas implicações pessoais, familiares e sociais: «Não tenho dúvidas que, qualquer dia, haveis de me atirar com o ditado: “Médico, cura-te a ti mesmo!”» (Lc 4,23), ou ainda: “Em verdade vo-lo digo: nenhum profeta é bem aceite na sua terra!”» (Lc 4,24).
Mas Jesus não era um milagreiro. Aquilo que eles queriam era ajuda, tratamentos e conhecimentos, que eles, coitados, não percebiam nada de nada: expliquei aqui há pouco tempo dos moucos que não lavavam os ouvidos e, por isso, não ouviam e que começaram logo a cantar, milagre! Àquela pobre gente que pensavam ser endemoninhados (Mc 9,14-23) não lhe passava pela cabeça que se tratasse de epilepsias ou coisas semelhantes. O que se diria hoje de um alzheimer…!
Isto é, o que escandalizou os Judeus foi a humanidade de Jesus, porque eles esperavam um super-homem e apareceu-lhes foi o “filho do carpinteiro” (Mt 13,55 e Mc 6,3), às tantas, na altura, ainda só carpinteiro como o pai, tão homem que até os fintou e desarmou: “passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”.
Tal como Jesus, foi a partir do que há de mais simples numa terra tão anónima como todas as mais, duns dias que se confundem com todos os dias, dumas noites tão escuras como todas as noites escuras, que a Novidade saltou e desconcertou todo o Mundo: também HOJE se realiza a Palavra que, naquele dia, se ouviu na Sinagoga de Nazaré.
Arlindo de Magalhães, 27 de janeiro de 2019