Portanto, Pai, “faça-se a tua vontade” (Mt 26,42). Não há dúvida nenhuma de que Jesus morreu violentamente. Assim o afirma quer a pregação primitiva («esses judeus que mataram Jesus e os profetas», 1 Tes 2,15) quer uma outra mais teológica («tendo sido entregue, segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus, vós o matastes cravando-o na cruz com mãos ímpias», At 2,23).
Então…, Deus quis — “segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus” — que matassem seu filho Jesus? Mas não tinha já dito Isaías: “Estou farto de holocaustos…, de ofertas de inúteis…, abomino as vossas celebrações…” (1,11.13.14)? Como vem agora esse Santo Anselmo, bispo de Cantuária, na dobra dos sécs. XI/XII, dizer que o pecado do homem havia ofendido a dignidade de Deus, e não podia ser perdoado sem que o mesmo Deus fosse desagravado pelo mesmo homem?
Nesta teologia, profundamente marcada pela mentalidade ético-jurídica romana, Jesus veio para (a)pagar o nosso pecado. O direito era tão importante para os romanos como hoje o lucro para os economistas. Nessa perspetiva, dizia-se que tinha de haver uma satisfação a dar a Deus; há para aí até muitas traduções da Bíblia que falam do «preço da nossa redenção» (veja-se 1Tm 2,6). A boca sempre a falar da abundância do coração!
Voltamos à mentalidade ético-jurídica romana: o pecado é uma ofensa infinita feita a Deus; e um Deus ofendido infinitamente só pode ser desagravado por uma reparação infinita. Ponto final. Como o homem não podia, de seu, dar a Deus fosse o que fosse, como desagravo, Jesus resolveu (ou foi obrigado a) oferecer-se a si mesmo. O mérito do seu sacrifício era infinito e eterno, ele não precisava dele para nada, entregou-o ao Pai: ele era homem! Isto feito, o Pai perdoou à humanidade. Daí aquelas frases piedosas: que Jesus morreu pelos nossos pecados, que os nossos pecados o mataram… Com a sua morte na cruz, Jesus, o Homem perfeito, Deus e Homem, restabeleceu a ordem primitiva desfeita pelo pecado, morte que satisfez a Deus (satisfação), expiou o pecado (reparação) e redimiu o homem (redenção).
Mas isto é muito pouco e muito curto. Que Deus se tenha feito homem para dar satisfação a si mesmo, a Deus? Não tinha dito já Isaías que Deus não quer sacrifícios, e muito menos sacrifícios humanos (Abraão)? A vida e a morte de Jesus têm de ver-se a outra luz ou doutra perspetiva. É absurdo pensar que nos reconciliámos com Deus com um assassinato, para mais do seu filho! Já Nietzsche (1844-1900) parodiava: «Nem arranjaram maneira melhor de amar o seu Deus que cravar um homem na cruz. … Melhores cânticos tinham de me cantar para que eu acreditasse no seu redentor e mais redimidos teriam que me parecer os seus discípulos».
Desagravar a Deus – problema que tanto preocupou Santo Anselmo, como depois Lutero – é um falso problema. Muito antes dele, séc. II, santo Ireneu (?-c. 202) explicou doutra maneira: para desapertar um nó, a solução é passar o fio ao contrário. Quer dizer: se o pecado é uma falta de amor, a redenção é o contrário da falta de amor, é amor. E por isso é que, na mensagem de Jesus, Amor é uma palavra chave: é dele que se faz o Reino de Deus. Do reino dos homens, S. Mateus disse que «não ficará pedra sobre pedra» (24,2), e S. Paulo não se inibiu de afirmar que até a fé e a esperança desaparecerão; ficará apenas o amor (1 Cor 13,8).
«Amai-vos como eu vos amei» – este é o Mandamento Novo que resume toda a Lei. Jesus não buscou intencionalmente a cruz; a cruz foi para Jesus a consequência da sua vida. Por si mesma, ela não tem sentido nenhum: mas como manifestação desse «amor máximo» que é «dar a vida pelos seus amigos» (Jo 15,13), está bem, tem todo o sentido do mundo. «Sofrendo a morte por todos nós, pecadores, ensinou-nos com o seu exemplo a levar a cruz que a carne e o mundo carregam sobre os ombros dos que buscam a paz e a justiça» – diz o Vaticano II (GS 38).
Esta mudança de perspetiva tem consequências concretas para a vida da gente. Atribuir, sem mais, valor redentor ao sofrimento é a mesma coisa que dizer que sofrer por sofrer tem valor em si. É não perceber que o valor está no amor dos outros e de Deus. É não perceber que Jesus centrou toda a sua vida não no sofrimento mas no amor e na sua consequência que é a construção de um mundo novo – dizemo-lo o Reino -; é não perceber que a construção da paz e da justiça é coisa que tem custo. E pela paz e pela justiça se morre. Quantos não deram já a vida pela Paz e pela Justiça?!
Como viveu Jesus? Não é verdade que viveu numa íntima e constante relação com o mistério de Deus (a quem chamava Pai), traduzida em fidelidade ao serviço do Reino? Não é verdade que nos mostrou o rosto do Deus verdadeiro? Não é verdade que, ressuscitado por Deus e através do seu Espírito derramado em nossos corações, nos abriu a perspetiva de uma Humanidade nova, de uma maneira nova de sermos homens? Não é verdade que nos abriu a essa realidade de sermos filhos de Deus? E não é verdade que foi ele que abriu as portas aos que até aí nem nome de homem tinham, fossem prostitutas, cegos ou ladrões, publicanos, adúlteros ou samaritanos? Foi ou não foi um homem livre que desafiou o Templo, a Lei e o Sábado? Foi ou não o separador das águas entre religião e política (Deus e César)? Etc., etc., etc. Porque é que ele morreu? Procurou a Cruz para desagravar a Deus ou foi pregado nela pelas que fez e disse, por amor de Deus e dos homens?
Onde está verdadeiramente a questão: na cruz ou no amor? Sem amor, a cruz foi sempre um sinal de condenação e suplício, «escândalo para os judeus e loucura para os gregos» (1 Cor 1,23); com o amor, tornou-se «árvore de salvação», «força divina para nós» (1 Cor 1,18).
«Ele manifestou-se uma só vez, na plenitude dos tempos, para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo» – diz a Carta aos Hebreus (9,26). À luz do que acabo de (tentar) explicar, é verdadeira a expressão (carregada embora daquele peso sacrificial do templo de Jerusalém que percorre todo o escrito). Mas nós temos hoje que separar a verdade do que se diz da roupagem cultural da expressão utilizada. Cristo morreu pelo que amou e não para aplacar a ira de seu Pai. Acreditamos em Jesus Cristo morto e ressuscitado, que «por nós homens e para nossa salvação desceu dos céus», e não num deus sanguinário que só com sangue se saciasse.
As grandes celebrações da Páscoa estão à distância de oito dias. Permitam-me todos que reafirme a importância da celebração destes dias e a necessidade de orientarmos a vida de modo a ser possível a sua celebração, bem como que recorde aquela velha regra que faz parte da nossa melhor tradição: «na Páscoa estaremos tão todos que ninguém tem direito de não estar», com exceção daqueles a quem a sua liberdade solicitar de outra maneira.
Arlindo de Magalhães, 12 de Março de 2016