Foi em 1991 que, neste domingo 27 do Tempo Comum, pela primeira vez abordei aqui a questão dos cristãos casados catolicamente, divorciados e voltados a casar (desta vez civilmente). Dei-me conta que eram muitos mais do que eu julgava, aqui na Serra do Pilar; muitos já me tinham abordado pessoalmente. Depois dessa data, foram bastantes os que me procuraram e bastantes os que — palavra passa palavra — aqui procuraram depois misericórdia e paz.
Em 1964, o inglês Graham Greene (1904-1991), tinha já escrito um romance – O Nó do Problema – a tratar desta complicada questão: a indissolubilidade do casamento católico. Já nessa altura, Greene dizia que o casamento deixara de ser — se é que alguma vez o fora! — um sinal visível de uma realidade invisível e misteriosa que é o amor de Deus pela Humanidade, o que levou o apóstolo Paulo a chamar-lhe “sacramentum magnum”- “grande sacramento” (Ef 5,32).
A multidão dos sinistrados conjugais tem-se amontoado à porta das igrejas. Alguns vão já entrando, é verdade, embora com dificuldade, mas sempre de olhos postos no Reino dos Céus. Mas a maior parte apanha mas é, pela frente, os legistas — não pode, não pode, não pode!, e sem licença dos puros não entram mesmo.
No entanto, em Roma, a porta já começou a abrir-se: pouco mudou ainda, mas Francisco deixou já bem claro que quer toda esta matéria bem refletida, que ele é o Papa, para lá de todos os cardeais, dos fracos teólogos fracos, dos párocos, dos legistas e dos cartórios. É que o Evangelho é muito mais que a Lei, e o Reino de Deus muito mais que a Igreja.
A Igreja católica foi-se dando conta de que era necessário abrir as portas da misericórdia e do perdão mesmo perante a disciplina do sacramento. Poderia citar João Paulo II: “que eles [os divorciados] não se considerem separados da Igreja, podendo e devendo, enquanto batizados, participar na sua vida” (Familiaris consortio, 84). E recordo também Bento XVI, era ele ainda simplesmente Ratzinger, em 1972: ” a Igreja tem um coração de mãe, que procura sempre o bem e a salvação de todos, sem excluir ninguém” e anima os fiéis a “acolherem as pessoas que vivem estas situações [de divórcio e recasamento]. É importante que o estilo da comunidade e a sua linguagem estejam sempre atentos à pessoa, a partir dos filhos, que são os que mais sofrem”. No quadro de uma comunidade aberta, é preciso fazer tudo para “educar os filhos na vida cristã, dando testemunho de uma fé vivida e praticada, sem os ter distanciados da vida da comunidade”.
Um bispo da nossa diocese, Armindo (1997-2006) era o seu nome, ousou assim, em 2005 em entrevista a um semanário da nossa praça:
«impedi-los [os católicos divorciados e voltados a casar civilmente] de participar totalmente na parte sacramental cria situações difíceis para eles e para quem os acolhe. (…) O anúncio do Reino de Deus, sem dúvida [que é mais importante que a instituição]. Privilegio sempre este aspeto. O direito canónico é temporal. Agora enquanto é vigente… A instituição precisa de ter regras. (…) Se o leigo conseguiu acertar a sua consciência com a do padre, o problema é deles. De resto, não há padre que não tenha encontrado casos como estes ao longo da sua vida…».
Veio então o Papa Francisco. Desta questão tem falado muitas vezes, em documentos e ocasionalmente. Cito apenas:
“nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar, … [mas isso] impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade” (A alegria do Amor, 325).
Permito-me citar o Pe Anselmo Borges:
“O que é que todos procuramos? A felicidade, o elemento constitutivo da felicidade é o amor, um amor sólido, estável e fiel. Mas isso hoje está como se sabe… Portugal é o país da Europa com mais divórcios, 70 por cento dos casamentos terminam em divórcio… Na falta de um amor comprometido e estável, é-se invadido pela desconfiança em relação a si próprio (o que é que eu valho e para quem e o que é que eu sou?) e pelo medo e a insegurança face ao futuro instável. E pela solidão, … uma das maiores pobrezas da cultura atual …, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações”
Arlindo de Magalhães, 7 de outubro de 2018