Em Jerusalém, era ainda o tempo de beijos e abraços. Era ainda o princípio. Os Apóstolos realizavam sinais e prodígios entre o povo, era um bodo aos pobres!, o povo falava deles com apreço, cada vez aderia mais gente, traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e catres, para que, à passagem de Pedro, a sua sombra cobrisse ao menos alguns deles, e das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão. Uma maravilha! Um mar de rosas.
Mas, logo a seguir, os Apóstolos foram presos (At 5,17). Claro que foram o mauzão do Sumo-sacerdote e seus sequazes os autores da brincadeira. O único que teve lucidez foi o fariseu Gamaliel, o que haveria de ser professor de Paulo em Jerusalém (At 22,3), que disse assim: “Homens de Israel, tende cuidado com o que ides fazer! … Não vos metais com eles! Deixai-os em paz! Se a sua iniciativa vem dos homens, cairá por si; mas, se vem de Deus, não tendes nada a fazer!” (At 5,35-39).
E assim aconteceu. Meteram-se mesmo com eles, mataram Estêvão (7,54-60), fariam o mesmo a Tiago (12,2); entretanto, Paulo, apesar de discípulo do liberal Gamaliel, desdobrar-se-ia em “ameaças de morte contra os discípulos do Senhor” (9,1). Estes foram os mais importantes ataques vindos de fora. Mas, de dentro, de dentro é que é o diabo: as coisas seguiriam por caminhos que os inícios não faziam prever. Dentro da comunidade, pouco a pouco, começaram a surgir diferendos, fundamentalmente entre a ala judaica da comunidade de Jerusalém, atada à Lei de Moisés, e a grega, lesta a perceber que “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Por isso mesmo, não se entende que quem quer que seja pretenda agora justificar-se com a Lei (Gl 5,4). Esta é que era a questão.
O próprio Paulo, que começara por ser defensor da Lei, e por isso corria de espada na mão em sua defesa, acabaria por ser o maior defensor da Liberdade face à Lei antiga: “Vós não estais sob a Lei” (Rm 6,14), pois que ”a força do pecado é a Lei” (1Cor 15,56) e “não a fé” (Gl 3,12), ou melhor, “a Lei resume-se numa palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14).
Embora fosse esta a questão, o Livro dos Atos começa por informar-nos que o início dos desentendimentos internos estava noutra razão: que as viúvas dos hebreus, isto é, dos judeus, não eram bem servidas à mesa (At 6,1)! Mas isso não era nada: a questão era que os cristãos-judeus da comunidade de Jerusalém começaram a desentender-se com os cristãos-gregos por causa de uma questão bem mais complicada e profunda, que era a de saber se os cristãos tinham ou não de cumprir a Lei de Moisés.
E, perante esta questão, a Comunidade, ou seja, uma parte dela, a judaica, não percebeu nada do que começava a passar-se. Por isso pensava e agia agarrada a um passado que já não era presente: a Lei é que era importante. Enquanto isto, a outra parte, essa sim, percebeu logo que estava em causa uma questão bem mais complicada. E por isso é que Estêvão foi assassinado, e que a Tiago lhe tiraram também a tosse, e que algumas figuras importantes do cristianismo nascente saíram de Jerusalém – Filipe, Pedro, Barnabé e o próprio Saulo – e acabaram, mesmo longe de Jerusalém, por ter graves problemas com essa mesma ala judaica (lembram-se de Paulo perseguido por eles, de Filipos até Tessalónica e, depois, em Corinto e em Éfeso?).
O Senhor bem os tinha prevenido: “Não sois capazes de interpretar os sinais dos tempos!” (Mt 16,3). É sempre muito mais fácil pretender que a razão do que se está a passar tem a ver com uma questãozeca qualquer: que eram mal servidas à mesa! Valha-me Nossa Senhora! Pensar assim é não ser capaz de perceber o que se está a passar! A história, da Igreja e dos homens, está cheia destas coisas: a malta distraída! Nunca me sairá da cabeça que, durante a manhã daquele 25 de abril, a Assembleia Nacional discutia em S. Bento o cultivo da vinha!
Digo isto ao começar do Tempo Pascal, no primeiro domingo a seguir ao Tríduo, porque – repetindo, digamos, o que disse na Vigília Pascal – temos em mãos uma questão importante nossa. Questão importante que tem a ver com o nosso próprio futuro. Que não aconteça entre nós o que sucedeu em Jerusalém: a questão a aumentar a tensão de dia para dia e as mulheres a dizerem que estavam a ser mal servidas à mesa!
Arlindo de Magalhães, 3 de Abril de 2016