De maneiras diferentes, em situações diferentes, todos perguntavam: “Quem é este tipo?” (Lc 8,23). E Jesus volta-se para os discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. E “Pedro tomou a palavra e disse: O Messias de Deus!” (Lc 9,20). Relatando este episódio ocorrido em Cesareia de Filipe, Marcos regista esta confissão messiânica de Pedro como tendo sido só “Tu és o Messias” (Mc 8,29); Mateus, “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”, (Mt 16,16) e João, tu “És o Santo de Deus” (Jo 6,69).
“Quem dizeis que eu sou?”, portanto. Atrás da resposta a esta pergunta andamos todos, vai em 21 séculos. É verdade que já alguns dos seus contemporâneos viram logo que ele era mais que Abraão (Jo 8,53), mais que Moisés (Mt 5), mais que Jonas (Lc 11,32), mais que David (Mt 22,45), mais que Salomão (Mt 12,42), mais que Jacob (Jo 4,12), mais inclusive que o próprio templo (Mt 12,6)… Mas só depois da ressurreição é que a comunidade cristã manifestou todo o seu entusiasmo, carregando-o de títulos: para além de Salvador, chamou-lhe também Filho do Homem, Senhor, Messias, Enviado do Pai, Cristo, Filho de David, Servo de Deus ou de Iavé, Filho de Deus, Palavra de Deus. Tinha começado a cristologia: “Quem dizem os homens que eu sou?”.
Entretanto, documentalmente, sabemos tanto de Jesus que se reduz a muito pouco: se “muitas outras coisas que Jesus fez — diz João no fim do seu Evangelho (21,25) — tivessem sido escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que havia que escrever”. É que os mais antigos testemunhos dele são quase todos cristãos e conhecemo-los só do Novo Testamento.
Mas há alguns não cristãos. O mais importante e mais antigo é de Flávio José, um historiador judeu dos finais do séc. I, que escreveu assim — havia ainda alguma memória viva de Jesus — no seu livro Antiguidades judaicas: “Nessa época, houve um homem sábio com o nome de Jesus cuja conduta era boa; as suas virtudes foram reconhecidas. E muitos judeus e homens de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos condenou-o à morte, a ser crucificado. Mas os que se tinham feito seus discípulos espalharam a sua doutrina”.
Suetónio, historiador romano do I/II séc., escreveu também que os judeus de Roma foram expulsos da capital pelo imperador Cláudio no ano 41-42 ou até 49, pois que alguns se agitavam por instigação de um tal “Chrestos”. Tácito, outro historiador do mesmo tempo, noticia a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, no ano 64, e lembra que eles tinham esse nome pois seguiam um tal “Chrestos” que foi condenado ao suplício da cruz por Pôncio Pilatos. Por fim, Plínio, o Jovem, escritor e político romano, em 111-113, numa carta dirigida ao imperador Adriano, descreve os progressos do cristianismo na província da Bitínia (noroeste da atual Turquia), de que era governador, e pergunta-lhe como devia proceder para com os cristãos que lhe eram denunciados, seguidores que eram de uma “detestável superstição” espalhada por um tal “Cristo, que, no principado do Tibério” foi condenado por Pôncio Pilatos.
Fora disto – dizia eu – só o Novo Testamento. Ao lê-lo, muitos apontam-lhe contradições. Nos evangelhos, por exemplo. Mateus diz que “ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte… e depois ensinou: Bem-aventurados os pobres em espírito!”. Mas Lucas diz assim: “Descendo com eles [do monte], deteve-se num sítio plano… e disse: Bem-aventurados os pobres!” (Lc 6,17 e 20). Pode perguntar-se: afinal, quem tem razão? Mateus, que diz que o sermão foi na montanha, ou Lucas, que diz que foi em baixo, num sítio plano? Quem tem razão? E se Mateus fala de “pobres em espírito”, Lucas fala só de “pobres”. Quem tem razão?
Se a figura de Jesus tivesse sido inventada, teria sido diferente conforme os escritores e seus escritos. Mas não, a figura de Jesus é a mesma em todos os evangelhos; que nuns pormenorzitos haja diferenças, não tem importância. De resto, naquele tempo, não havia na cultura da época nem registos civis, nem assentos de nascimento, nem de casamento ou de falecimento, não havia bilhetes de identidade nem cartões de cidadão… Mas isto só se registava na memória popular, não na civil.
E, então, ele quem era ou quem foi?
À pergunta, só a fé pode responder cabalmente: “És o Messias de Deus”, na formulação de Lucas. Mas à História esta resposta não basta. Contrariamente, têm alguma ou grande importância, por exemplo, estas outras afirmações, também do Novo Testamento: dizem que ele “ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa Nova do Reino” (Lc 8,1), ou que “andou de lugar em lugar fazendo o bem” (At 10,38).
Andou por ali a partir e dividir o pão e o peixe, sentado às mesas da hospitalidade e do debate, ele que, logo no início, se apresentara na Sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor enviou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos e a proclamar um ano jubilar” (Lc 4,18). E acrescentou: “Cumpriu-se hoje esta palavra da Escritura”. Jesus começava a sua obra, a anunciar a liberdade e a praticar a libertação.
De que Jesus viveu entre nós os historiadores não recolhem praticamente indícios diretos, se excetuarmos os escritos do Novo Testamento, documentos hoje incontestáveis. Mas que ele é o Filho de Deus vivo ou o Messias de Deus, essa é a resposta firme da fé, tal como da fé é a afirmação de que ele – que passou fazendo o bem – está vivo e vive entre nós. Dizem-no a fé da Igreja e o Espírito, “o Deus da esperança que nos envia aos largos campos da injustiça e do pecado”.
Quando passo por esta questão, lembro-me sempre de Pasolini (1922-1975), marxista confesso, poeta e cineasta, realizador de um filme célebre e muito belo —O Evangelho segundo S. Mateus —, a quem algum dia, depois de apresentado o seu Evangelho…, perguntaram se acreditava que Jesus era Filho de Deus e que respondeu assim: “Eu não acredito que Cristo seja filho de Deus porque não sou crente, pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino, isto é, porque nele a humanidade foi tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassou os termos comuns da mesma humanidade”. Esta afirmação não é ainda uma profissão de fé cristã – “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16,16) -, mas anda lá perto.
Aqui tens, Igreja, o teu Senhor, a tua fé e a tua tarefa.
Arlindo de Magalhães, 19 de Junho de 2016