O sacramento da Unção dos Doentes tinha-se tornado, de facto, um sacramento «maldito». E tão maldito que a expressão popular o taxou de «Extrema-Unção», unção extrema, isto é, unção quando a vida estava por um fio ou tinha mesmo já acabada.
Para ser claro, um pequeno texto de 1941 de um padre desta diocese do Porto:
“Por volta das duas horas da noite, batem à porta. Fui abrir. Era o Zé, de Sacões, que vinha, muito aflito, pedir-me fosse sacramentar o Manel, que estava a morrer. Estranhei um pouco, pois ainda há dias o encontrei, fero e forte, com uma grande borracheira. Mas, tudo é possível e a morte não espera e, às vezes, vem antes do tempo previsto…
‘Que eu fosse depressa, que ele estava-se a passar”. Mal falava, muito aflito, enfim, estava-se a pagar o pavio da vida… Desci à corte, aparelhei o burro. Depois dirigi-me à igreja a buscar o Santíssimo, os Santos Óleos, o Ritual. E lá fui, serra adiante.
Felizmente, nesta madrugada, a Lua foi amiga e solícita companheira. A claridade era tal que se divisava nitidamente o caminho e os lugarejos da aldeia.
Um silêncio enorme cobria a serra, cortado, aqui e além, pelo ladrar de um cão ou pelo pio agoirento de algum mocho noctívago e boémio.
Ao entrar no lugar …, vem a meu encontro um homem aflito, numa corrida doida. Era o Zé… A avisar-me de que, afinal, o Manel estava livre de perigo, melhorara, já não era preciso sacramentá-lo”.
(SANTOS, António dos — Itinerário de um Padre, 3º Vol, Porto, 1987, pp. 49-41)
Foi o Vaticano II a resolver e pôr as coisas no seu lugar. Ora ouçam:
“A Extrema-unção, que também pode, e melhor, ser chamada Unção dos Enfermos, não é Sacramento só dos que estão no fim da vida. É já certamente tempo oportuno para a receber quando o fiel começa, por doença ou por velhice, a estar em perigo de morte”. Tudo bem dito, até com delicadeza.
Para entendermos o que é a Unção dos Doentes, há que ter presente, antes de mais, que se trata de um sacramento da Fé: isto é, pressupõe e alimenta a Fé; todos os sacramentos pressupõem a Fé. É por isso que eu digo que muitos dos casamentos religiosos ou canónicos são inválidos.
Um sacramento é um sinal de fé ou da fé, pessoal e/ou comunitária. Até por isso a celebração litúrgica dos sacramentos “deve sempre preferir a celebração comunitária à individual e privada” (SC 27).
O sentido da Unção dos doentes e idosos tinha-se perdido antes do Vaticano II. Esperava-se pela hora da morte.
Ao fim do dia, batem-me à porta…, que viesse sacramentar a mãe que “está a morrer!”. Fiquei siderado. Ter de arrostar com a tempestade na serra é demasiado para mim. Não nasci para herói. De imediato comecei a procurar no meu subconsciente uma possibilidade de fuga, de adiamento, pode ser que a doente não esteja assim tão mal! Até pode esperar, quem sabe? Às vezes as pessoas parece que estão a morrer e não morrem, dão tempo ao doutor e ao padre, que diabo!, logo num dia de tempestade, um risco meter-me à serra; Ó Manuel, veja lá, então a mãe está assim a morrer?
Manuel, ali à porta, estacado, a escorrer água por todo o corpo, como se tivesse vindo a nado por aí abaixo…
Decido-me, tem de ser. Herói à força. A consciência a roer cá por dentro… Montei o cavalo, levei da igreja o Santíssimo, Santos Óleos, o Livro, e iniciei a perigosa aventura, enfrentando e chuva e o vento.
Subi à serra e quando alcancei o planalto da Conchada, senti-me, por momentos, um homem perdido. Pressenti a morte próxima na imensidade da serra, só, em luta com a tempestade.
O vento levou-me o guarda-chuva, como se dele precisasse, quando era a mim que fazia falta… Nunca mais o vi.
O cavalo, frente à chuva diluviana e ao vento impetuoso, estacou. E não havia maneira de arrancar. O animal também estava aterrado. Era o fim, pensei eu.
Depois avançou. A chuva e o vento, impiedosos e terríveis, continuavam a fustigar-me de todos os lados.
Por fim cheguei… Exausto, meio inconsciente, dominado pelo pavor daquelas hores dramáticas na travessia da serra. Entrei na casa… a mulher, em coma, não dava acordo de si, ungi-a, rezei as orações dos moribundos… e regressei… Cavalo e cavaleiro, encharcados, tristes e abatidos, mil vezes pior que o Cavaleiro da Triste Figura!”. (Id, pp. 69-70)
De há muito que o homem moderno virou as costas à morte e à doença. Só quando surge uma ou outra … Por isso, o sacramento da Unção é uma coisa lá muito para depois, no extremo da vida — a “extrema unção”, se dizia — às portas da morte.
A doença é sempre um desequilíbrio – físico, anímico, espiritual e relacional – e a perda dolorosa das rotinas quotidianas; quando é grave, coloca-nos necessariamente diante da questão dos fins: a vida e a morte, o Cá e o Lá.
É aqui que entra o Sacramento da Unção dos Doentes: um sinal de esperança diante da debilidade corporal e da desarmonia psíquico-espiritual que a doença e a inevitabilidade da morte provocam necessariamente no indivíduo. Quem se não lembra do «Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!» (Lc 22,42) do próprio Jesus, angustiado diante da morte, nas palavras registadas por todos os evangelistas? Daí que a atenção de todos, e particularmente da Igreja, aos doentes, seja muito importante. Por ela, de resto, seremos perguntados: «estava doente e fostes visitar-me» (Mt 25, 6).
É diferente o caso dos idosos-não-doentes que, tão simplesmente como isso, pedem o sacramento à Comunidade. Explica assim o Ritual revisto após o Concílio Vaticano II: “A unção dos doentes não é sacramento apenas dos que se encontram no último transe da vida. Por isso, considera-se tempo oportuno aquele em que o fiel começa, por doença ou velhice, a estar em perigo de vida. Este sacramento, que faz parte da solicitude de toda a Igreja, mostra-se nestas palavras: Com a santa unção e a oração dos presbíteros, toda a Igreja encomenda os doentes ao Senhor padecente e glorificado, para que ele os alivie e salve, como diz Tiago na sua Carta (5,14-16)”.
Noutra palavra, a Unção dos Doentes é o sacramento específico da enfermidade ou da idade, e não da morte: unge-se sacramentalmente, portanto, não um moribundo ou um acidentado inconsciente, mas um doente consciente e crente. A Unção dos Doentes é, se posso assim dizer, uma prece (dum crente e de uma comunidade) que o doente, o idoso e os que lhe são próximos consigam, na fraternidade eclesial, passar do «Pai, se é possível, afasta de mim este cálice» à serenidade do «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46), isto é, que o doente possa passar da Morte à Vida: vida com letra pequena porque ainda terrena, se for possível e for o caso, ou Vida com letra grande em que a terrena se transforma, como diz a Liturgia.
Arlindo de Magalhães, 13 de janeiro de 2019