Os últimos domingos do Tempo Comum carregam-se, como sabemos, de uma perspetiva escatológica que o Advento acentuará ainda mais. O Tempo que há de vir é o seu assunto.
Nós sabemos que o Tempo que há de vir é, no entanto, um Tempo gerado neste tempo que vivemos e nele assenta: “Jesus veio salvar a Vida, não a Morte. A Morte é um inimigo a abater, não um amigo a salvar. A quem a Morte apanha morto, morto ficará para sempre. … Este é o tempo de edificar a Vida. Depois, ninguém edifica nada” (Leonel, 1990). Ou, como dizia Bonhöeffer, “só depois de se ter amado este Mundo se pode acreditar no Reino de Deus, que aquele prepara e anuncia”. Porque o Mundo caminha para Deus como uma criança para o colo da mãe.
O Futuro prepara-se Hoje. O Dia do Senhor que há de vir é feito de um trabalho sério e esforçado, porque é Hoje que Ele tem fome e sede, e está nu e preso, e só os que O assistirem serão recebidos no Reino. Como insistentemente a Igreja recorda, nomeadamente depois do Vaticano II, a atividade humana, individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus (GS 34).
Este ano, lidámos o suficiente com Lucas para sabermos já que ele não se confinava ao seu tempo: ele escrevia no seu tempo e para o seu tempo mas, afinal, ultrapassava a sua idade. Nem vamos agora pensar que só um evangelista o sabe e conseguiu fazer. Se assim fosse, não leríamos nenhum escritor falecido, nem Camões nem Gil Vicente, nenhum escritor doutros mundos, Cervantes ou Bob Dylan, o Nobel da Literatura deste ano. Todos eles, como todos os artistas, aliás, pela universalidade da sua linguagem e reflexão, ultrapassam o seu tempo e são entendidos em todo o tempo e em toda a terra. Os grandes artistas são universais.
Uma peça importante do Evangelho de Lucas é o chamado discurso escatológico de Jesus (21, 5-36) — aqui lido há momentos —, discurso que Jesus não fez mas que Lucas escreveu recolhendo e interpretando dicas de Jesus. O evangelista trabalhou esses materiais que a memória cristã primitiva conservara e descreveu-os com pormenores da memória coletiva de dois acontecimentos muito importantes, a destruição da cidade de Jerusalém levada a cabo por Nabucodonosor no ano 586 aC, vivida, portanto, muito antes de Jesus, e a do ano 70 dC, quando os romanos arrasaram o Templo.
Ambas as destruições – verdadeira terra queimada – foram tremendas para o Judaísmo: Jerusalém, a cidade santa, a morada de Deus no meio dos homens, arrasada, e o templo de que não ficou pedra sobre pedra!… E Lucas, querendo falar do futuro, animar a comunidade a que se dirigia, como que ressuscitou essa memória.
O que aconteceu nesses passados dias foi arrasador: os Judeus foram então perseguidos e dispersos pelo mundo inteiro. Mas o que interessou Lucas não foi o passado, foi o futuro, tivesse-se embora ele servido das imagens de um passado dramático para o dizer. Neste esforço, tentando perceber como seria o futuro, Lucas objetivou-o em quadros tirados da sua realidade e do seu mundo simbólico – “não ficará pedra sobre pedra” -, prevendo ou fazendo coincidir o fim do mundo com esses quadros apocalípticos das maiores catástrofes então conhecidas: terramotos, incêndios, fogo, fome e destruição, guerra e mortandades, temores e tremores, a tudo juntando a destruição do Templo, um acontecimento impensável antes de ter acontecido. Mas era o futuro que lhe interessava, era animar a esperança dos seus irmãos na fé o que lhe estava na preocupação.
O que nos interessa na Igreja não é o passado. Dos pecados, pedimos sempre perdão. Dos feitos, nada mais podemos dizer do que somos simples instrumentos (Lc 17,10). É no futuro que pomos os nossos olhos, embora para o vermos tenhamos de nos servir de imagens do passado. O que nos interessa é o futuro. O passado pode ter glórias, mas tem também pecados, sempre. Interessa-nos o futuro. Por isso nos são importantes os Sinais desses Tempos que nos permitem descortinar o futuro. Somos gente de esperança. E por isso, também, o Advento que se aproxima nos fala de futuro. Mas recomenda vigilância e atenção ao tempo que corre. Aprendemos até com os nossos pecados. E a Igreja até com as perseguições que lhe dirigem (GS 44), dizia o Vaticano II.
Porque Aquele que há de vir, que é Aquele que já veio, é também Aquele que vem Hoje.
Arlindo de Magalhães, 13 de Novembro de 2016