A videira

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Há oito dias, ouvimos que ele era pastor. Jesus utilizava estas analogias, fazia estas comparações, para explicar.

Nós, humanos, duros de cabeça, nem sempre o entendemos. “Eu sou um pastor bom,…, que cuida bem das ovelhas”. Foi isto que ele disse. Mas o séc. XIX acrescentou: se ele é pastor, nós somos ovelhas. Por isso, escreveu o teólogo do séc. XIX/XX:

“… Igreja é por essência uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que abrange duas categorias de pessoas, os Pastores e o rebanho, …. E essas categorias são tão distantes entre si, que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade [que é a Igreja]; quanto à multidão, essa não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus Pastores” (Pio X, 1906).

Asneiras, palermas: Jesus nunca disse que a Igreja é uma carneirada. Disse, sim, que o pastor (eclesial, da Igreja) tinha de ser tão bom como o pastor do rebanho. Tão só!

Jesus utilizava estas analogias. Hoje, a da videira: «Eu sou a verdadeira cepa e meu Pai é o agricultor». Na Palestina, terra meia desértica, cultiva(va)-se o vinho; mas era um cultivo difícil, trabalhoso e pouco rentável. Por isso, particularmente cuidado e querido. Ou não dissesse a Escritura que “o vinho alegra o coração do homem”! (Sl 104,15). Não vou agora explicar que a cultura do vinho é complexa — podar, sulfatar, vindimar, pisar, trasfegar, engarrafar, e faltam ainda aqui muitos verbos correspondentes a outros tantos cuidados — mas chamo a atenção para a complexidade da planta a que podemos chamar videira: uma videira, que também pode ser bacelo, tem raiz, tem cepa (e não tronco), sarmentos, gavinhas e parras (não folhas), e também tem cacho. Apesar de tudo isto, no entanto, todas estas suas muitas partes – deixem-me dizer assim –, todas juntas, perfazem um todo.

Jesus quis explicar o que Paulo diria mais tarde aos coríntios: “Vós sois o corpo de Cristo”, “assim como o corpo é um só e tem muitos membros”. “O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos”. “E cada um é um membro”. E cada membro (aqui, a palavra membro designa uma qualquer parte do corpo, seja o braço ou a bexiga), cada membro tem a sua função: “o olho não pode dizer à mão: não preciso de ti” (1 Cor 12,12-27).

Sabemos que esta analogia – comparação entre a Igreja e o corpo – fez um grande caminho na teologia que levou ao Vaticano II, mas que se tinha perdido no tempo longo da Igreja. E sabemos também que esta analogia (comparação) entre um corpo e a Igreja foi suplantada, no Vaticano II, pela imagem de Povo: a Igreja é um corpo, sim, mas é também — pode afirmar-se com clareza, e o Vaticano assim o fez — um corpo social onde cada um é cada um e todos são um, um Povo de iguais, mas também, sobretudo?, capaz de criar cultura.

Jesus falou aos homens na linguagem do seu tempo, na cultura do Povo a que pertencia, tão diferente da do nosso tempo. Muita da incapacidade de a Igreja falar aos homens de hoje nasce aqui: a questão da linguagem. Agarrada que está a uma cultura do passado, a Igreja tem dificuldade em falar a linguagem de hoje. Um homem com a cultura do séc. XIX, que sabe o que são as chedas, certamente não sabe o que é um Backup (embora, porventura, já saiba o que é um bar ou um fino).

Hoje é preciso fazer um grande esforço para traduzir as parábolas de Jesus de modo que as entendam os nossos «filhos do asfalto»!

Na antiga Palestina, a videira, a figueira, a oliveira e o cedro, até os sicômoros de Amós (7,14) eram as plantas mais características da paisagem. Por isso aparecem muitas vezes no imaginário do texto bíblico. A cultura da vinha, particularmente querida e trabalhosa, entrou também, por isso, no mundo simbólico da Escritura: a Vinha é o Povo de Israel. Todos recordamos, entre muitas outras passagens, o célebre Canto da Vinha, de Isaías (cap. 5). O que não fez o vinhateiro pela sua vinha! Assim Jesus: «Eu sou a verdadeira cepa e meu Pai é o agricultor».

Sempre que o evangelista põe na boca de Jesus a afirmação «eu sou», está a fazer uma comparação de valor simbólico. “Eu sou” aparece inúmeras vezes no 4º Evangelho: «eu sou» o pão da vida, sou a água viva, a luz do mundo, a porta, o bom pastor, o caminho, a verdade e a vida, a cepa, etc. “Eu sou a cepa”. Jesus é parte da realidade complexa – apetece-me dizer coletiva – que é a videira, mas não esquece nenhuma das partes em que ela se divide, explorando assim a evidência de que as vides (ou varas nascidas da cepa) não subsistem se cortada a ligação com a totalidade da planta.

O evangelista está assim a falar da e à Comunidade dos cristãos. E, aqui chegado, é muito claro: «Se alguém permanece em mim e eu nele, dará muito fruto, porque sem mim nada podeis fazer». Este discurso – que é de um discurso que se trata – terá um natural seguimento de hoje a oito: «Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor. É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros».

O que sejam uma videira, a cepa, as vides ou sarmentos, e mesmo os cachos, são palavra que hoje já não se usam, no supermercado ninguém pergunta “onde há cachos?”, mas simplesmente “onde há uvas?”.

Explicar estas coisas é muito complicado. Mas estas parábolas, alegorias ou até provérbios são carregadas de riqueza!

Arlindo de Magalhães, 29 de abril de 2018

One thought on “A videira

  1. Luis Taborda Silva Jácome says:

    Parabéns pelo vosso comentário que não coincide com os cânones tradicionais da hierarquia mas é totalmente ortodoxo e verdadeiramente protético/odegetico e caritativa.

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