Abertura

Mosaico, igreja de Sant’Apollinare Nuovo, Ravenna (Itália), séc. VI

Nestes domingos do Tempo Pascal, o Livro dos Atos dos Apóstolos conta-nos os grandes desafios e as enormes descobertas da Igreja Primeira. Porque os cristãos de Jerusalém vinham todos do judaísmo, viciados pelo seu particularismo, o Povo de Deus entendido como uma raça, filhos de Abraão segundo a carne. Todo o universalismo lhes aparecia como um perigo de que se defendem, e não como apelo.

Este perigo correu-o também a Igreja: foi um grande passo ela ter entendido que para se ser cristão não era necessário ser-se judeu, ter ela entendido que o cristão estava mesmo liberto de lei de Moisés.

É o episódio de Cornélio (10,1-45), um militar romano que, no mínimo, andava perto do Deus de Israel. Encontrando-se com Pedro, este começou, primeiro, por estranhar o facto, mas depois rendeu-se à realidade: “Reconheço, na verdade, que Deus não faz aceção de pessoas, pois que a qualquer povo que o leve a sério e ponha em prática a justiça lhe é agradável”. Este facto marca uma mudança de atitude da parte dos primeiros cristãos. O Livro dos Atos faz imediatamente uma síntese da nova postura, afirmando: “O Espírito desceu sobre todos os (pagãos) que ouviam a Palavra de Deus. E os crentes de origem judaica ficaram cheios de assombro por se ter derramado também sobre os pagãos o Espírito Santo”.

Esta mudança da atitude da Igreja Primitiva não foi certamente assim tão repentina como isso: foi preciso apontar e desbravar caminhos, no sentido de, com o tempo, toda a Igreja caminhar em conjunto.

E Pedro, presidindo à Igreja em nome de Cristo, terá sido o primeiro a abrir a porta da Boa Nova aos pagãos.

Porque todo e qualquer homem é membro de uma Humanidade amada por Deus e trabalhada pelo Espírito que não conhece fronteiras, pois sopra onde quer, quando quer e como quer. A Igreja não tem o exclusivo do Espírito, embora seja seu Sinal no meio de todos os povos da Terra. Entender a Igreja como um Povo de Deus tal como nos apresentou o Vaticano II gerou um dinamismo que a Teologia antiga desconhecia: porque todo o Homem está verdadeiramente “orientado” para o Povo de Deus que tem na Igreja a sua realização sacramental, Corpo de Cristo no Tempo e na História. Diremos que a Igreja é a “perspetiva” de todo o Homem.

A esta conceção dinâmica corresponde uma outra: todo aquele que não acredita que Jesus é o Filho de Deus pode estar, no entanto a caminho dele. Um dia, embora para muitos esse dia nunca nasça, um Homem entrará na sua casa, tal como um Irmão entre em casa de seu Pai.

A novidade desta perspetiva assim tão rapidamente esboçada, tem levado, quantas vezes, tratos de polé ao longo da História. Os muros abatidos por Pedro e seus contemporâneos na Igreja Primitiva foram de novo reedificados: estes ou outros.

A abertura da Igreja a áreas de pensamento ou de ação das quais tradicionalmente se defendia é do nosso tempo. O Ecumenismo, por exemplo. Não vão longe os tempos em que o “terreno” da Igreja terminava exatamente com o “muro” que a dividia dos “irmãos separados”, então chamados e considerados “hereges”.

O Ecumenismo é só um exemplo. Que, se recuarmos alguns séculos, a autonomia do Político, da Liberdade, da Democracia, dos novos caminhos e direitos do Social, a organização do Trabalho e da Economia e questões afins como, por exemplo, a Propriedade, ou questões de ponta como a Sociedade de Consumo e Globalização, a Biologia, a Genética…

O Homem, todo o Homem, é campo da criação e afirmação do Espírito. Será sempre grande, na Igreja, a tentação de o domesticar, de o não deixar romper os quadros do instituído; dizendo doutro modo: de não admitir que “Deus não faz aceção de pessoas”. Esta a tentação, a de o pensarmos.

Porque a atitude cristã tem de ser bem diferente: “o que vos mando é que vos ameis uns aos outros”. Porque ele, o Espírito de Deus, rebenta por aí, no coração e na casa de qualquer Cornélio, pagão que seja.

Não esquecerei nunca o que o Vaticano II disse quase no fim da sua realização: A Igreja

“verifica com gratidão que, tanto no seu conjunto como em cada um dos seus filhos, recebe variadas ajudas dos homens de toda a classe e condição. Na realidade, todos os que, de acordo com a vontade de Deus, promovem a comunidade humana no plano familiar, cultural, da vida económica e social e também política, seja nacional ou internacional, prestam não pequena ajuda à comunidade eclesial, na medida em que esta depende das realidades exteriores. Mais ainda: a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar até da oposição daqueles que a hostilizam e perseguem” (nº 44).

Assim seja!

Arlindo de Magalhães, 6 de maio de 2018

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