Abertura

No Testamento Antigo, julgavam os nossos antepassados que os males que o homem sofria eram sempre um castigo de Deus.

Tanto as desgraças individuais (doenças, ruína económica, morte violenta, etc.) como as coletivas (fome, epidemias, guerras, etc.) eram todas sinal de que Deus tinha virado as costas ao seu povo. Ao contrário, quando uma desgraça se convertia em alegria, quando se superava um desastre, quando a escravidão ou a opressão conhecia a liberdade…, tudo se entendia como sinais de que Deus perdoava e estava de novo de acordo com o seu povo.

Assim, quando o profeta Isaías anunciou que o povo exilado na Babilónia ia alcançar a libertação, entendeu que era Deus que voltava a aproximar-se do seu povo, proclamando que “os olhos dos cegos, tal como os ouvidos dos surdos, se abrirão, o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35, 4-7).

Ao tempo de Jesus, a surdez ainda se entendia como consequência do pecado, e do pecado de todos. Não só a surdez. Todas as doenças que aparecem nos Evangelhos representam os males que os homens sofrem por culpa de uma sociedade injusta, organizada contra o plano de Deus. A surdez era um desses males.

E o povo acreditou. Surdo, verdadeiramente surdo, o povo não escutava a verdade dita pelos enviados de Iavé, os profetas.

(Uma paragem para relembrar uma coisa que aqui se explicou há bem pouco tempo: no tempo de Jesus, as pessoas perdiam a audição muito cedo, porque não limpavam o canal auditivo. E não sabiam que a saliva era o melhor que, ao tempo, havia para o fazerem! Por isso Jesus, no Evangelho de hoje “colocou-lhe, ao surdo, os dedos nos ouvidos e, com saliva, tocou-lhe a língua”).

A “um surdo que falava com dificuldade” – conta hoje Marcos – “suplicaram a Jesus que lhe impusesse as mãos” (Mc 7,32).

Por isso não perceberam o que Jesus dizia e fazia.

Em Isaías como nos Evangelhos, as curas e a saúde das pessoas anunciavam o começo de uma libertação mais profunda de todo o povo e de toda a humanidade. A cura do surdo-mudo significava que os discípulos de Jesus tinham ouvidos para ouvir uma Boa Notícia e língua para a anunciar a todos os homens, porque todos somos iguais diante de Deus.

Mas há no nosso mundo surdos que não compreenderam ainda que a cor da pele não divide, que levantar muralhas e cortinas de ferro ou de cimento armado não resolve problema nenhum, que uma sociedade dividida em ricos e pobres, cultos e incultos, cristãos ou muçulmanos, etc., etc., é uma loucura total. O racismo, legalizado ou não, que existe ainda em tantos lugares do planeta, a começar pela periferia das maiores cidades do nosso país, é consequência de um mundo injusto em que a pessoa humana não é o principal valor.

Jesus abriu os ouvidos de muitos anunciando que a humanidade tem uma meta, histórica e meta-histórica, a fraternidade, e um caminho para a alcançar, a luta pela libertação.

Não só com o que se passa na Europa mediterrânica, mas também no nosso meio. Somos todos muito surdos.

«Cura-nos, Senhor, das feridas da malícia, da ignorância e das feridas da lassidão. E que as tuas obras nos abram as portas do Espírito para a faina dos dias e o louvor das horas!» (José Mourão).

Arlindo de Magalhães, 9 de setembro de 2018

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