Advento

Wassily Kandinsky, ‘O Juízo Final’, 1912

Entre os vários tempos litúrgicos, foi o Advento o que mais lentamente se formou e mais tardiamente se fixou. Entre muitas outras razões, porque, face à crescente e rápida importância que a festa do Natal adquiria no Ocidente, Roma tentou controlar-lhe o crescimento, impedindo assim que Natal e Páscoa aparecessem no mesmo degrau de importância e se fizesse do Advento uma espécie de quaresma natalícia, um tempo de preparação da festa do Natal, que o Advento não é, por mais que os reverendos padres digam que sim.

O debate foi – digamos que – duro e longo. As Igrejas orientais – e, com elas, as hispânicas – salientavam um Advento preparador da festa do Natal [oriental], a Epifania, que tinha um forte acento batismal. De facto, no Médio Oriente, a Epifania não era a festa do nascimento de Jesus, mas a da manifestação do Verbo; e, sobretudo a partir de Alexandria do Egipto, cidade situada no delta do célebre rio Nilo, passou a celebrar-se o Batismo também nesse dia, na Epifania. O Ocidente, porém, ficou-se pela Vigília Pascal. Assim sendo, a exemplo da quaresma pascal, nasceu à volta do Natal oriental (a Epifania) uma quaresma natalícia de preparação última e especial dos que iam ser batizados, prática que, como acima dizia, Roma sempre contrariou.

Para além disso, entretanto, outras coisas se passavam. O Natal oriental, a Epifania, celebrava o mistério da manifestação de Deus. Mas quando chegou ao Ocidente, partiu-se em quatro festas: o nascimento de Jesus, a apresentação aos Magos, o batismo no Jordão e a manifestação numa festa de casamento em Caná — Natal episódico —, enquanto no Oriente continuava mistérico.

Daí os pormenores episódicos da festa ocidental, agora a desaparecer, o presépio, a vaquinha, o burrinho, a manjedoura, a neve e o frio, os pastores, queijos dos pastores… O Ocidente recordava eventos, o Oriente celebrava o mistério.

No entanto, foi-se percebendo cá e lá que Aquele que veio é Aquele que há de vir: por isso, o tempo anterior ao Natal carregou-se de conteúdos escatológicos. Porque o que veio, no passado, é o mesmo que há de vir no fim dos tempos.

Mas não ficou por aqui a reflexão cristã. Não é verdade que Aquele que veio, que é Aquele que há de vir, é Aquele que vem Hoje? Não disse ele que sempre que fizerdes isto a um dos mais pequeninos é a mim que o fazeis, hoje? Vigiai, pois, hoje, porque não sabeis em que dia e a que hora virá o vosso Senhor (Mt 24,42 e 25,13). Claro que Aquele que vem é o mesmo que há de vir e o mesmo que já veio! Felizes, portanto, aqueles a quem o Senhor, quando vier, encontrar vigilantes (Lc 12,37).

Porque estais a olhar para o céu? (At 1,11) – disse o anjo aos discípulos que ficaram a olhar para o balão: Sabeis interpretar o tempo (meteorológico), mas os sinais dos tempos, esses, não sabeis interpretá-los (Mt 16,3).

Nos tempos da maturidade, o Advento tornou-se o tempo da especial atenção ao Senhor que vem hoje, que se manifesta hoje, nas pessoas e nos acontecimentos, de modo positivo e de modo negativo, diretamente ou através do seu Espírito, que sopra onde quer e quando quer (Jo 3,8), mesmo através das pedras (Mt 3,9).

Atento à realidade do Tempo, às riquezas da vida e seus atropelos, o cristão “esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações em que participa juntamente com os homens de hoje quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus” (GS 11).

O Advento é, portanto, um alerta da Liturgia: Atenção! O que veio e que há de vir vem hoje também. Atenção! Estai atentos! Não vá dizerdes depois que nunca me vistes por aí com fome e com sede ou até a dividir a capa com um pobre!

Antigamente, a divisão do ano litúrgico não se fazia tão nítida como hoje. Não havia propriamente um ano litúrgico a que se seguia outro ano litúrgico. Havia apenas um tempo litúrgico, irrepetível, porque sempre novo, ultrapassado, portanto, o tempo do eterno retorno. Só que… os livros litúrgicos haviam de ter um início, qualquer que ele fosse. Missais houve que começavam pela Novena do Natal e acabavam com o Advento!, lançando assim um apelo às Igrejas que pusessem os olhos no fim do tempo, na escatologia. No entanto, o que se impôs universalmente foi que a divisão do ano litúrgico se fizesse pelo início do Advento. Por essa razão, ele passou a ser o primeiro tempo do ano (litúrgico), se bem que, como sabemos, a sua temática seja igual à dos últimos domingos do Tempo Comum.

Aqui está, portanto, o sentido mais autêntico deste Advento que começamos, fixado só depois de uma lenta decantação feita pelo Tempo: o Advento só se fixaria definitivamente na baixa Idade Média.

“A sua vinda última será, em boa verdade, semelhante à primeira… mas também hoje os fiéis desejam recebê-lo no seu próprio tempo”, assim explicava o Diácono sírio Santo Efrém, no séc. IV.