Mais ou menos, todos conhecemos esta página do Evangelho: Jesus subiu ao monte … e ensinava (os discípulos) dizendo-lhes: Bem-aventurados … Mas isto é no Evangelho de Mateus (cap. 5). No de Lucas, em lugar paralelo, quase tudo é diferente: Jesus desceu do monte e deteve-se num sítio plano com numerosos discípulos e uma grande multidão … e disse: Bem-aventurados…
Mas há mais: Mateus tem 9 bem-aventuranças, Lucas apenas 4; às de Mateus seguem-se as ditas antíteses (Ouvistes o que foi dito aos antigos … eu porém digo-vos…), às de Lucas as apóstrofes, ie, verdadeiras descomposturas (Ai de vós os ricos, os que estais fartos, os que agora rides…).
Todas estas diferenças — estou em crer — já não nos metem confusão. Estamos diante de escritos muito antigos que nos exigem um esforço de compreensão maior e diferente do que se nos pede ao lermos, por exemplo, o jornal diário.
Digo doutra maneira: sobre o como as coisas efetivamente se passaram e o autêntico ensinamento de Jesus (porque neste capítulo de Lucas trata-se de facto de um ensinamento autêntico de Jesus) passou já muito tempo; são de resto dois escritores diferentes — Mateus e Lucas — a dar uma diferente interpretação dos acontecimentos, tanto mais que tinham atrás de si comunidades diferentes que de modo diferente interpretaram os ensinamentos de Jesus.
A bem-aventurança é um género literário muito utilizado nos diversos espaços culturais do tempo, do Egipto à Grécia. No Antigo Testamento há vários exemplos: “Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios”, diz, por exemplo, o Salmo 1. Utilizava-se fundamentalmente na literatura sapiencial e no culto: “Felizes aqueles que guardam os meus caminhos” (Pv 8,32). Mas utilizava-se também, como hoje aliás, na vida familiar, a marcar momentos felizes. É de bom tom começar ou terminar um brinde com uma bem-aventurança, a exprimir um voto ou mesmo uma prece.
As bem-aventuranças do Evangelho são, no entanto, bem mais radicais. E desde logo três delas (a dos pobres, a dos que têm fome e sede e que choram, e a das perseguições); são tão radicais que, hoje ninguém duvida, foram mesmo ditas por Jesus. Diante de muitas coisas que o Evangelho diz que Jesus disse, como é que vamos saber se ele as disse ou não? Há uma regra que nunca falha: se se trata de uma coisa que só ele pode ter efetivamente dito, não há dúvida, disse-a mesmo. Por exemplo: chamar Abbá a Deus; Jesus disse isto de certeza absoluta, mais ninguém poderia ter tido a ousadia de o fazer, era impensável que alguém o dissesse no seu tempo.
É o que acontece com as bem-aventuranças (melhor dito, com as referidas três bem-aventuranças): elas soaram de maneira tão inesperada e nova aos ouvidos dos seus contemporâneos, isto é, é tão impossível que um qualquer rabino com a cultura do seu tempo pudesse tê-las dito, que — não há dúvida — foi Jesus que as disse, de certeza. Ponham o Vasco da Gama a falar de comboios a ver se a coisa pega!
Mesmo assim, Jesus terá dito “bem-aventurados os pobres em espírito” (pobres que o são no seu coração), como anota Mateus, ou simplesmente “bem-aventurados os pobres”, como regista Lucas? Eis a questão.
Chegados aqui, a esta pergunta, vamos lá pensar.
Lucas era um médico de origem pagã. Pertencendo a uma classe social no mínimo média, não era propriamente o que possa dizer-se um pobre, sobretudo naquele tempo. No entanto, o problema da pobreza, dos pobres e da propriedade atormentava-o; tanto mais que estava mesmo convencido que a relação do homem com a propriedade era campo de verificação da fé. Não esqueçamos que no seu outro livro — Os Atos dos Apóstolos — este mesmo Lucas insiste em informar que os cristãos de Jerusalém tinham tudo em comum, vendiam as suas propriedades e bens e dividiam o produto por todos segundo a necessidade de cada um (2,45), e que não havia entre eles nenhum necessitado porque todos os que possuíam terras ou casas as vendiam, trazendo depois (para a comunidade) o preço do que tinham vendido (4,34). Para além disso, é ainda Lucas que informa pormenorizadamente que, grassando uma grande fome em toda a região … os discípulos [de Antioquia] resolveram, cada um segundo as suas posses, enviar socorro aos irmãos da Judeia (At 11,29). E não passe pela cabeça de ninguém que Lucas estava a inventar pois que Paulo também nos dá três notícias deste movimento de solidariedade para com Jerusalém espalhado às Igrejas da Grécia (1 Cor 16,1-4; 2 Cor 8, 1-15; Rm 15,25-28).
Isto é, Lucas, originário duma classe no mínimo média, confronta-se e inquieta-se com o problema da pobreza: como poderia ele não falar senão da pobreza-pobreza, dos pobres-pobres? Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o Reino dos Céus.
Mas Mateus tem outra sensibilidade, viveu certamente noutro contexto, noutra comunidade; e, porque para ele a Palavra de Deus não é uma realidade rígida que permita apenas uma interpretação literal, ele refere-se não unicamente aos pobres-pobres mas aos que têm um coração pobre ou de pobre, numa interpretação mais universal e alargada de pobreza. Qual deles tem razão? Afinal o que disse Jesus exatamente?
Não vou agora prosseguir em grandes explicações, mas mesmo assim peço a Agustina Bessa Luís que me ajude: “A desgraça não traz o desejo das humilhações, e é preciso conhecer certo direito aos padrões da riqueza, para apetecer outros mundos. Só um deus transcende a vileza e nasce miserável, para não perturbar a condição do que é humano. Porém, um homem rodeado de abismos deseja transpô-los e pouco lhe sobra da vida para a santidade” (Santo António, 1973, p. 147). Esta afirmação toca o fundo do mistério da Incarnação do Filho de Deus: “sendo de condição divina … humilhou-se a si mesmo assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fil 2,8); e explica também – a contrario – porque é que a esperança da moderna civilização ocidental colocada bem perto, no material, na riqueza ao alcance da mão, conduz apenas à desilusão e ao desastre.
Jesus, pelo que sabemos, não conheceu durante a sua vida terrena nem a riqueza nem o aplauso nem, por seu nascimento, participou dos bens culturais e económicos da classe superior. A Igreja primitiva não viveu em melhores condições.
E se Lucas radicalizou a questão da pobreza indo até ao fim, aos pobres-pobres, aos pobres de tudo, Mateus, por sua vez, universaliza a questão, abre-a, porque há ricos-pobres e pobres-ricos. Verdade ou mentira?
E já que falamos da Igreja de Jerusalém de que Lucas nos dá notícias a este propósito, da sua experiência direta de viver em necessidade e da necessidade de receber de outras comunidades, não posso esquecer o texto mais violento de todo o Novo Testamento contra a riqueza, escrito paradoxalmente pelo tradicionalista e conservador Tiago, o irmão do Senhor, que foi o seu segundo responsável:
“Vós, os ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós hão de vir! As vossas riquezas apodrecerão e as vossas roupas serão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata carregar-se-ão de ferrugem e ela dará testemunho contra vós e devorará as vossas carnes, como se de um fogo se tratasse. O salário que roubastes aos ceifeiros dos vossos campos clama e grita, e os seus gritos chegaram aos ouvidos do Senhor que tudo pode. Viveis em delícias e poucas-vergonhas sobre a terra, mas apenas saciais o vosso coração para o dia da vingança. Condenastes e matastes o justo, e ele não resistiu” (Tg 5,1-6).
É muito dura esta palavra, mas no fundo é apenas outra interpretação — vivida — da afirmação de Jesus — “bem-aventurados os pobres” — que afinal não conhecemos com exatidão. Ainda bem que dela temos várias interpretações, e qual delas a mais exata! Isto é como uma obra de arte: ninguém pode pretender dela a interpretação exata, ninguém pode afirmar foi isto ou aquilo que o seu autor pretendeu dizer com ela. Nós, os cristãos, não somos fundamentalistas (isto é, não pretendemos ser interpretadores literais das Escrituras, pois que a religião se baseia fundamentalmente na fé).
Tal como a Igreja primitiva, eu estou convencido que o grande testemunho cristão da Igreja hoje em dia é junto dos pobres, é partilhar com os pobres, pobres de todos os tipos, de bens materiais, mas, cada vez mais, não só. Tive fome, tive sede, estava nu, mas também estava só, estava a chorar, não sabia, não podia, quem de vós me deu a mão, me ouviu, me ajudou, me sentou à sua mesa? Vivi só, desesperei da minha doença, não me entendia com sei lá o quê, e ninguém me deu a mão!
Os pobres – o mundo da pobreza – são hoje o maior sacramento do Cristo que “sendo de condição divina … se humilhou a si mesmo assumindo a condição de escravo e assemelhando-se assim aos homens” (Fil 2,8). E este é o maior desafio da Igreja do nosso tempo juntamente com o da evangelização da cultura. Quer queiramos quer não, um grande desafio que a Igreja primitiva resolveu como pôde, e nós…
Arlindo de Magalhães, 17 de fevereiro de 2019