Diante da questão que os Saduceus lhe puseram, Jesus foi muito claro: não se podem transferir para a Vida Eterna as condições e dependências desta Vida.
Éskatos é uma palavra grega que significa aquilo que vem no fim, isto é, a realidade última. Portanto, a Escatologia é aquela parte da fé e da reflexão teológica que se ocupa do que tradicionalmente se chamava os últimos tempos do homem e do mundo. É, portanto, uma questão de futuro; mas igualmente do presente da existência cristã, pois que é o Reino que há de vir que fecunda e define a Esperança da existência cristã. Esta é uma das questões fundamentais do Homem: “Que é o homem?; qual o sentido e a finalidade da vida?, qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira?; que é a morte, o juízo e a retribuição final depois da morte?; finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, que nele tem a sua origem e destino?” – reconhecia o Vaticano II serem estas questões fundamentais a todas as religiões (Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs, nº 1).
Como o enviado do Pai, Jesus, o Cristo, ensinou-nos que, desde o princípio da nossa existência carnal, estamos abertos a um Futuro que, a partir da ressurreição de Jesus, é já uma realidade, mas que só depois perceberemos na totalidade.
Por isso, nenhuma realidade, seja da fé, seja do nosso ser humano, escapa a esta contínua tensão entre o já (da nossa existência) e o ainda não prometido aos que acreditarem no Filho de Deus.
Digo uma tensão, esta entre o já e o ainda não. Sempre que há tensão, pode haver para lá e para cá (quem puxa mais pela corda?), e pode partir-se a corda. O mesmo Vaticano II explicava que há os que “pensam que podem descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé os obriga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um”, e há os que pensam “poder entregar-se às ocupações terrenas como se elas fossem inteiramente alheias à vida religiosa”. E concluía o Concílio: “Este divórcio de muitos entre a fé que professam e o comportamento quotidiano deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (Gaudium et Spes, 43).
Por isso, para nós, os cristãos, é fundamental esta questão do nosso fim último, pela qual passamos tão distraidamente quanto distraidamente recitamos aquelas palavras do Credo: [Creio em Jesus Cristo], Senhor que há de vir a julgar os vivos e os mortos, [creio] na ressurreição da carne e na vida eterna.
Sabemos todos que não há nenhum setor da teologia mais “sujeito a armadilhas” e às fantasias da imaginação, mais vulnerável ao gosto do fantástico e do maravilhoso, mais contaminado e desnaturado pelas mitologias e por uma ideia dualista do homem (corpo + alma), frontalmente oposta à conceção bíblica. A ideia do «além» – céu, inferno e purgatório – tem sido muitas vezes o triste ponto de encontro de projeções ilusórias da angústia humana, desesperadas ou confiantes. Dizer que “o inferno são os outros” ou que só o céu apagará todas as injustiças, nomeadamente as que espezinham e matam os pobres, é quase a mesma coisa.
Hoje em dia, muitas destas representações já não merecem crédito à maioria dos cristãos. Mas, retirada esta linguagem cultural, e histórica, portanto, fica alguma coisa? Ou seja: é melhor conservar as antigas formulações que, apesar de tudo, veiculavam conteúdos válidos, ou é mesmo necessário formulá-los numa linguagem nova e diferente?
Aprendemos mais ou menos todos na Catequese que os fins do homem eram a morte, o juízo, o inferno e o paraíso, e que a morte era a separação do corpo e da alma. Nessa conceção, a alma deixava o corpo e emigrava, quer para o céu quer para o inferno, talvez temporariamente para o purgatório, depois de um primeiro julgamento de Deus – juízo particular -, levado a cabo talvez por um ministro da justiça, S. Miguel, que pesava as almas e as despachava em consequência. Entretanto, o corpo material desaparecia, por corrompido. No fim do mundo, Deus juntaria os bocados – como?, donde? – e haveria a ressurreição geral dos corpos. Era a altura do juízo universal. Nessa altura, desapareceria então o purgatório, ficando apenas para sempre o céu e o inferno, a bem-aventurança e a condenação eternas.
Assim sendo, cada um devia ocupar-se — com cautela! — da sua salvação. Claro que haveria também o fim da história e, nessa altura, Cristo voltaria (numa segunda vinda), mas desta vez não a anunciar a Boa Nova, mas exatamente o contrário, “a julgar os vivos e os mortos”, coisa que se chamava a Parusia. Não haveria mais este mundo, mas um outro, eterno e radicalmente diferente deste.
Mas tudo isto apontava apenas os percursos individuais: era uma questão minha e tua, e dele… Importante era cada um viver cristãmente neste mundo e, deste modo, preparar-se para ter uma boa morte. Assim se evitava o inferno e merecia o céu. A vida cristã não era uma arte de bem viver, antes a preparação de um bem morrer. Além disso, enquanto vivos, socorríamos fraternalmente as almas do purgatório, com missas de preferência e indulgências, pois que assim se lhes abreviava o tempo de cativeiro ou castigo.
Claro que esta evocação dos novíssimos, tal qual era feita não há muito tempo, é algum tanto caricatural. Mas é a que vigora ainda, confessemos!, embora lhe reconheçamos deficiências graves.
Com ela desaparece, no entanto, a importância real deste “Povo a caminho” – de quê?! As recentes reflexões filosóficas e antropológicas, mesmo as cristãs, ultrapassaram por completo a visão dualista grega, segundo a qual cada homem era a soma de dois elementos diferentes, o corpo e a alma, assim a modos de um pingo que se faz com uma mistura de café e de leite, sem que nenhum destes elementos deixe de ser o que é.
É preciso, portanto, fazer uma leitura mais correta e mais fiel do mistérico ou misterioso futuro do Homem e do Mundo na perspetiva da Revelação. Não é fácil a tarefa. Os próprios teólogos, os maiores, ainda não afinam completamente acerca deste assunto. Mas é já possível corrigir erros de perspetiva e afirmar, de maneira mais correta, as grandes certezas e os grandes eixos de toda a reflexão cristã sobre o Futuro do Homem e do Mundo.
Com o domingo de hoje, a Liturgia começa a celebração da Escatologia cristã (que de algum modo já se preanunciava nos domingos imediatamente anteriores), que se prolongará até ao fim do ano litúrgico e por todo o tempo do Advento que se aproxima.
As nossas preces e o nosso viver nos ajudem a olhar serenamente “esse dia e a essa hora que ninguém conhece, nem os anjos do céu, nem o Filho; só o Pai” (Mc 13,32).