Parece impossível que, passados 50 anos sobre o Vaticano II, muitas cabeças não tenham ainda encaixado que Jesus nunca pregou nem falou da Igreja, anunciou sim o Reino de Deus. Jesus nunca pensou numa Igreja de cima para baixo, piramidal, nunca fundou Igreja nenhuma, falou sim muitas vezes mas do Reino de Deus.
Logo no início do seu Evangelho, Marcos faz um resumo-resumido de tudo quanto vem a seguir. Diz assim: «O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho» (1,15). E todos os Sinóticos (os Evangelhos de Mateus, de Marcos e de Lucas) estão cheios de parábolas acerca do Reino. E digo os Sinóticos porque são eles que recolhem mais diretamente a pregação de Jesus. O Evangelho de João é diferente: escrito mais tarde, é uma reflexão posterior, digamos que mais refletida, mais teológica de comunidades do fim do século I, sobre a pregação de Jesus.
Como todos os Rabis (Mestres) do seu tempo, Jesus recorria muito na sua pregação a uma pedagogia, uma maneira de falar, que ele utilizava com verdadeira mestria: as parábolas. Parábolas são, no fundo, comparações tiradas da vida do dia-a-dia, cheias de vivacidade e colorido (por elas passam campos e vinhas, sementeiras e ceifas, ovelhas e pastores, lobos, pássaros, cizânia, lírios, trigo, mostarda e cevada, árvores de fruto, peixes e pescarias, meninos a brincar nas praças dos mercados, jornaleiros e comerciantes, pescadores, sacerdotes e militares, sei lá que mais, cobradores de impostos e outros ladrões e malfeitores…), tudo numa grande ternura pela vida comum da gente do seu tempo, principalmente da difícil vida pastoril, rural ou piscatória. E fazia-o de modo que todos entendessem com clareza: «Dirigia-lhes a palavra com muitas parábolas, conforme eram capazes de entender» (Mc 4,33).
As parábolas são muito importantes não tanto para se compreender «o que é» o Reino de Deus — essa seria a questão do filósofo —, mas sim para se perceber «como e quando o Reino?» — essa, sim, a preocupação do Mestre.
Jesus disse que o Reino estava a chegar, por isso, que era uma realidade futura, embora acrescentasse que está aí «à mão» de semear (Mc 1,15), está mesmo «no meio de vós» (Luc 17,20), «já chegou» (Mt 12,28), embora a sua presença esteja ainda oculta.
Conhecemos todos as parábolas da semente que germina, que cresce caladamente, já hoje, embora só no futuro tenhamos, maduro, o seu fruto: “a semente germina e cresce, sem ele saber como. A terra produz por si, primeiro, o pé; depois, a espiga; por fim, o trigo maduro na espiga. E, mal o trigo o permite, logo o homem mete a foice; a seara está pronta” (Mc 4,26-29.
Por isso é que, falando do Reino, Jesus o explica como uma semente que cresce, já hoje, caladamente. Se o Reino de Deus é futuro relativamente ao hoje, tempo virá em que terá um passado, porque então presente. E daí o tive fome e tive sede…, vinde benditos de meu Pai, receber como herança o Reino que vos está preparado, ou afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que vos está preparado (Mt 25, 31-46). Quando, Senhor, dar-te ou não de comer e de beber, quando é que isso aconteceu?
O Reino de Deus começa na História, constrói-se hoje. Mas hoje tem ainda muito de utópico; e, por isso, só será realidade plena no tempo futuro. O fruto da semente, cereal ou o que seja, que é para muitos uma esperança, é para outros uma crítica radical.
Quando Jesus diz que «o Reino é como um homem que deita a semente à terra» (Mc 4,26), de que estava ele a falar? No seu tempo, que semente deitava um homem à terra a não ser a do «pão nosso de cada dia»?
De que semente, de que pão falava Jesus? Ou seja, de que Reino falava Jesus? E a Igreja, o que é? A Igreja é apenas um sinal – sacramento -, um lugar e tempo de construção do Reino? A Igreja – a que “o Senhor Jesus deu início pregando a alegre novidade do advento do reino de Deus” (LG 5) – tem “o dever de trabalhar na implantação e consolidação do Reino de Cristo” (LG 44). E foi o Reino, não a Igreja, que Jesus anunciou e que iniciou. A Igreja – una, santa, católica e apostólica – é “sinal, sacramento e instrumento” do Reino: mas é para o Reino que caminhamos, não para uma Igreja triunfalista, verticalista e poderosa.
Permitam-me a leitura breve de parte de um texto do séc. III em que Tertuliano (160-220), um grande autor do primeiro tempo do Cristianismo, digamos assim, explicava aos magistrados romanos o que era uma comunidade cristã:
«É sobretudo a prática da caridade, que, aos olhos de muitos, nos imprime uma marca infamante. Vede – dizem eles – como se amam uns aos outros!; dizem-no porque eles se detestam uns aos outros. Vede – dizem eles – como estão prontos a morrer uns pelos outros!; mas dizem-no porque eles estão prontos é a matar-se uns aos outros. Quanto ao nome de irmãos com que nos tratamos uns aos outros, só dizem asneiras, penso eu. É que, entre eles, os nomes de família são exigência, sim, mas de uma afeição apenas simulada: mas nós somos realmente vossos irmãos pela Natureza, nossa mãe comum. É verdade que vós não sois homens, sois maus irmãos. Mas com quanta mais razão se chamam e consideram irmãos aqueles que reconhecem como Pai o mesmo Deus, que beberam do mesmo espírito de santidade, que, saídos do mesmo seio de ignorância, viram luzir, maravilhados, a mesma luz da verdade!
Vivemos convosco, comemos convosco o mesmo alimento, usamos o mesmo vestuário, temos o mesmo modo de vida, estamos submetidos às mesmas necessidades da existência. Não somos brâmanes nem faquires da Índia, habitantes das florestas ou exilados da vida. Frequentamos o vosso fórum, o vosso mercado, os vossos banhos, as vossas lojas e estalagens, as vossas feiras e outros locais de comércio. Habitamos este mundo convosco. Convosco navegamos, convosco servimos como soldados, trabalhamos a terra, comerciamos.»
Arlindo de Magalhães, 17 de junho de 2018