Até à Cruz

“Crucifixion,” by Mikhail Gubin

Durante muitas gerações, deu-se à morte de Jesus uma explicação expiatória: ele morreu na cruz oferecendo-se a Deus como vítima em sacrifício. Deus exigia que lhe pagassem a ofensa que o homem lhe fizera com o seu pecado. Jesus prontificou-se a tal.

Em vez do pecador, morreu Jesus: sobre a sua cabeça se juntaram todos os pecados de toda a humanidade. Jesus entendia-se, portanto, como o preço de um resgate. Passou-se com ele o que os espanhóis encontraram os índios ocidentais a fazer: sacrifícios humanos. Portanto, Jesus morreu pelos nossos pecados.

Nesta teologia, profundamente influenciada pela mentalidade ético-jurídica do mundo romano (quem deve paga), que não levava sequer em linha de conta que os sacrifícios humanos estavam definitivamente superados desde pelo menos o episódio do filho de Abraão (Gn 22, 1-19), a vida de Jesus só tinha um sentido: ele nasceu e viveu para, morrendo na cruz, pagar a Deus uma dívida que lhe era devida pela humanidade. A uma ofensa infinita, um resgate infinito: como este não podia ser pago pelo homem, finito que é, veio a cá o filho de Deus a pagar a culpa! Nesta explicação, Jesus, enviado do Pai, restabeleceu a ordem alterada pelo pecado: a sua morte na cruz, que tem um valor de satisfação, expia e redime.

Mas esta teoria expiatória começou a ser contestada de muitos lados. A pergunta mais simples pode ter sido esta: Quem quis a morte de Jesus?, quem quis a cruz?, Deus?

A cruz, porém, é um produto da nossa história, não da cabeça de Deus. A crucifixão, é/era uma barbaridade: mas, ainda hoje se aplica. No caso de Jesus, a pena de morte aplicada por crucifixão foi, para além de tudo o mais, uma arbitrariedade do poder.

Mas o nosso Deus precisava de um crime do poder para repor a desordem instalada pelo pecado do homem? Não, sem qualquer dúvida, não: o nosso Deus salva o homem pelo seu amor que lhe tem e por mais nada.

É que a vida de Jesus não foi só a sua morte. E toda a sua vida foi redentora.

Que quer isto dizer? A morte de Jesus não é toda a sua vida; é sim o momento culminante da sua vida. Se Jesus tivesse vivido outra vida não teria tido a morte que teve. É verdade que morreu crucificado, um suplício infamante reservado especialmente a escravos e subversivos políticos, aos alteradores da ordem pública. Mas a sua morte foi o resultado da sua vida. Quem diz o que ele disse e faz o que ele fez, que pode esperar? É isto o que quer dizer que Jesus Cristo se entregou para voluntariamente sofrer a morte. Não que tivesse querido morrer: ele aceitou foi correr os riscos que a sua postura lhe acarretaria. Percebendo que, fazendo o que fez, poderia ser condenado à morte, mesmo assim, não hesitou e caminhou em frente.

A sua liberdade perante a Lei, a denúncia do formalismo da moral religiosa e do culto do Templo, a solidariedade com os pobres e pecadores, com os próprios marginais, desde o seu nascimento, os pastores, o anúncio de um Deus de rosto novo, a separação entre o que é de Deus e o que é de César, é tudo isto que explica a sua morte. Os seus principais responsáveis foram os detentores do poder religioso e político que, conluiados, o acusaram de blasfemo e subversivo. A morte de Jesus não é um sacrifício assumido por decisão inelutável de Deus. Longe disso: foi antes um acontecimento histórico que desclassificou a sua vida e a sua mensagem: Confiou em Deus, ele que o livre agora, se o ama (Mt 27,43); Salvou os outros, mas não pode salvar-se a si mesmo! …; Desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos (Mc 31-32).

Os próprios discípulos – que imediatamente se dispersaram e fugiram – viram a sua fé sumir-se. Mas curiosa e paradoxalmente, foi o centurião, isto é, o pagão romano, que exclamou Verdadeiramente este homem era filho de Deus (Mt 27,54 e Mc 15,39).

Um desastre absoluto, a morte na cruz? Parecia! A representação mais antiga que se conhece desta morte é um grafito romano: um burro pregado numa cruz!

Mas só com ela e por ela se entende a ressurreição, desautorização absoluta dessa morte-crime injusta e inexplicável.

Jesus não morreu para pagar os nossos pecados, tão pouco em vez dos pecadores, morreu, sim, por causa dos pecados dos homens, isto é, morreu por uma morte que os (pecados dos) homens causaram, tal como hoje se morre num ataque terrorista, como se morre na estrada, como morrem cada vez mais mulheres às mãos dos seus homens, ou no fim dos corredores da morte dos países que ainda não aboliram a pena de morte…

Mortos às mãos dos homens.

A morte de Jesus é a expressão culminante e a verificação incontestável de toda uma vida de amor solidário e entrega generosa à causa do Reino. Jesus salvou-nos não pela sua morte, mas por uma vida que culminou na cruz, vida que não era possível que ficasse sob a morte (At 2,24); por isso mesmo é que Deus o ressuscitou (At 2, 32), diz Pedro à multidão no dia de Pentecostes.

Vamos celebrar a Páscoa, esta morte e a ressurreição que se lhe seguiu?

Arlindo de Magalhães, 31 de março de 2019