Atos dos Apóstolos

Livro dos Atos dos Apóstolos, Manuscrito MS G.67 (Egipto, séc. V – Morgan Museum, Nova Iorque)

O Livro dos Atos dos Apóstolos é um formidável livro para o Tempo Pascal: como temos visto.

No capítulo 6, foi, em Jerusalém, o grito das viúvas gregas: sentiam-se descriminadas perante as de origem judaica. Reclamaram e foram ouvidas. Depois o martírio de Estêvão, a perseguição e a conversão de Paulo e, no capítulo 13, em Antioquia da Pisídia, o empurrão dado pelo Espírito a Paulo e Barnabé (13,1-3) para que avançassem para os mundos do paganismo, perante a recusa da Boa Nova por parte dos judeus…

Hoje, capítulo 15, ainda a mesma questão (a Boa Notícia de Jesus o Evangelho — é só para Judeus, ou também para pagãos?), e agora em Antioquia. Em todos os casos, o que entrou em jogo foi a questão da missão da Igreja nascente: só para judeus ou também para pagãos? Em ambos os casos – Antioquia (11,19-30) e Jerusalém (15,4-33) – tudo se resolveu com duas assembleias, uma em Jerusalém e outra em Antioquia.

É verdade que, na de Jerusalém, houve debate e posições contrapostas (“depois de uma longa discussão”, At 15,7); no entanto, no final, conseguiu-se um consenso: “O Espírito Santo e nós decidimos…” (At 15,28).

Um consenso humano, que implicou uma solução de compromisso, isto é, ambas as partes – Antioquia e Jerusalém — cederam alguma coisa: triunfou a posição de não impor aos pagãos a obrigação de circuncisão, mas quanto aos interditos alimentares teve de haver concessões.

Os cristãos de origem grega surgem no Livro dos Atos como um grupo missionário por excelência: a missão da Igreja dirige-se a todos, sem exceção. Os judeus, pelo contrário, têm dificuldade em cortar com o tradicionalismo judaico.

Lucas apresenta a sensibilidade judaica da comunidade de Jerusalém em contradição com as autoridades hebraicas, é verdade, mas ainda em continuidade com a tradição do antigo Povo de Israel: “frequentavam diariamente o Templo” (2,46) onde se reuniam “no pórtico de Salomão” (5,12). Os próprios Pedro e João, um certo dia, “subiram ao Templo para a oração das três da tarde…” – como de costume, subentende-se – e, “estando [aí] a falar ao povo, viram chegar os sacerdotes (do Templo judaico), o comandante do mesmo Templo e os saduceus que, irritados ao ver Pedro e João a ensinar o povo e a anunciar, na pessoa de Jesus, a ressurreição dos mortos, lhes deitaram a mão e prenderam-nos” (3,1-3).

Não foi fácil à Igreja de Jerusalém rebentar com as amarras judias. Portanto, na assembleia que ali se reuniu para dirimir um assunto levantado em Antioquia, debateram-se duas grandes questões: a da circuncisão (11,2), os neocristãos têm de a respeitar?, e a dos interditos alimentares (15,20) também?

E houve nesse debate – em Jerusalém – duas intervenções importantes e diferentes, as de Pedro e de Tiago dito o “irmão do Senhor”.

Pedro, que era um judeu, tinha enfrentado as suas dificuldades: “todos os circuncisados que tinham vindo com Pedro ficaram estupefactos ao verem que o dom do Espírito Santo fora também derramado sobre os pagãos…!!!. Poderei eu opor-me a Deus?” (At 10 e 11).

E Pedro não teve mesmo qualquer dificuldade em explicar-se em Jerusalém: “Se Deus concedeu aos pagãos o mesmo dom que a nós, judeus, por terem acreditado no Senhor Jesus, poderei eu opor-me a Deus?” (11,17). Já mais tarde, na assembleia reunida em Jerusalém, no debate que preparou a resolução hoje lida (2ª leitura), pão pão queijo queijo: “O Espírito Santo não fez qualquer distinção entre os cristãos vindos do paganismo, e nós, vindos do judaísmo. Porque tentais agora a Deus querendo impor aos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós suportamos”? (15,9-10). Aqui, assembleia de Jerusalém, Pedro refere-se só à questão da circuncisão – nem pensar nisso! – que a dos interditos alimentares, bem!, é uma questão menor, posso ceder! Foi o que fez diante das posições de Santiago.

E Tiago, que pensava a missão, mas apenas na continuidade das instituições de Israel, esse teve mais dificuldade. E para ceder na questão da circuncisão, exigiu que Pedro cedesse na dos interditos alimentares. Assim, no discurso de Jerusalém diz: “Sou de opinião que se não devem importunar os pagãos convertidos a Deus [com essa questão da circuncisão, está bem?, pronto!]. [Mas] Que se lhes diga que se abstenham de tudo quanto foi conspurcado pelos ídolos, pela imoralidade, pelas carnes sufocadas e pelo sangue! [Ao menos isso!]” (15,19-20).

Lucas assiste a todo este debate e faz-lhe a crónica. “O Espírito Santo e nós próprios resolvemos” (At 15,28), todo este problema, seu debate e resolução.

Arlindo de Magalhães, 26 de maio de 2019