Desde meados de Junho que, a par e passo com o Evangelho de Lucas, seguimos Jesus na sua longa subida a Jerusalém. Pouco a pouco, ele ia tomando consciência da inevitabilidade do que o esperava: a morte. Não era tolo e, no contexto da sociedade do seu tempo, tudo o fazia crer: não escapava. A esta perceção que diria física, juntava-se um entendimento psicológico do que começava a desenhar-se e acabaria por tornar-se realidade.
A par, portanto, de ensinamentos e acontecimentos que ocorriam ao logo dessa peregrinação até Jerusalém, Lucas dá-nos conta do drama que Jesus vivia na sua alma. Ele começava a fazer como que o balanço da sua vida, que pressentia breve: como quem olha para trás, vê que muitas coisas não lhe tinham saído bem. Reconhece que, em vez de paz, cavara divisões, e divisões que chegavam ao próprio interior das famílias.
E quanto mais Jesus se convencia que a morte acabaria por atingi-lo, mais se angustiava: “tenho de receber um batismo (de sangue) e estou ansioso (o original diz mesmo ‘angustiado’) que ele se realize!” (Lc 12,50). Começa aqui aquela angústia cujo auge o mesmo Lucas haveria de registar na noite que lhe antecedeu a morte: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!” (22,42).
A par desta angústia, Jesus reconhecia uma certa frustração: tinha vindo atear o fogo, e nada! Claro que, na linguagem bíblica, a palavra fogo quer dizer duas coisas: um castigo purificador e o Espírito de Deus. Aqui, Jesus refere-se certamente ao Espírito. Só que o fogo do Espírito não ardia, e o mundo, vazio de Deus, continuava velho: os pobres continuavam a ser pobres, os pequenos a ser o joguete dos grandes, o egoísmo, o orgulho, a injustiça, a violência e o ódio a encher o viver dos homens.
Tudo somado, Jesus ia-se dando conta de que acabariam por matá-lo. Não se tratava de uma constatação superficial; Jesus tomou mesmo consciência do que iria acontecer.
Ele conhecia de resto muito bem toda a história bíblica, como muitas vezes deixou perceber. Acontecera assim com todos os antigos profetas: anunciando e propondo caminhos novos, acabaram por molestar o Ter e o Poder com as suas radicalidades e denúncias, pondo a nu hipocrisias e mentiras, denunciando abusos contra os pequenos e os pobres. Assumindo-se como uma espécie de consciência moral do mundo do seu tempo, tornaram-se insuportáveis. E acabaram mortos. Neste mesmo evangelho de Lucas, um pouco antes do trecho de hoje, é o próprio Jesus que diz: “Ai de vós, que edificais sepulcros para os profetas que os vossos pais mataram!” (11,47). Contra eles, de facto, levantaram-se tantas montanhas de ódio que o próprio Jeremias (1ª leitura de hoje) se lamentava diante de Deus pelo facto de ter nascido para ser um “homem de conflito em todo o país”: “O meu povo é para mim como um leão da floresta, a rugir contra mim” (Jr 12, 8).
Jesus conhecia tudo isto muito bem. E sentia-se um novo Jeremias. Tomou por isso, progressivamente, consciência de que caminhava para a morte e começou a angustiar-se pela inevitabilidade de ter de passar por um “batismo de sangue”.
O homem-Jesus, homem em tudo igual a nós exceto no pecado (Hb 4,15), digamos que em conflito com a sua própria divindade.
Este é, afinal, o drama da Igreja e dos cristãos, hoje em dia. A cada um de nós basta olhar para a sua própria trajetória pessoal. E basta ver o sinal da Igreja no tempo que corre. Jesus é e continua a ser a bandeira discutida que divide o mundo. Nós e a Igreja herdámos a vocação profética de Jesus; somos profetas desde o Batismo. Somos – deveríamos ser – consciência do mundo, mesmo denúncia profética do que não está bem, seja o sofrimento dos pobres ou as injustiças cometidas contra os pequenos. Levamos na alma o desejo de um mundo novo, cheio do Espírito, em que possamos viver felizes no amor de Deus e na fraternidade de todos os homens.
Mas na prática como é? Nós não somos profetas porque a Igreja não é profética, ou a Igreja não é profética porque não há cristãos-profetas?
Profetas desde o Batismo, dizia: Matilde e Francisca! Dentro de momentos, entrareis a fazer parte dum Povo de Reis, de Sacerdotes e de Profetas. Oxalá! O Senhor esteja convosco!
Laurinda e Henrique! Quem diria, naquela Escola de Balteiro…, 50 anos de casamento, o Senhor está convosco porque vós sois profetas!
Arlindo de Magalhães, 14 de Agosto de 2016