Que diferença há entre uma parábola e uma fábula?

parabolaParábola de Jesus

O reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num campo. O homem que o encontrou tornou a escondê-lo e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía e comprou aquele campo. O reino dos Céus é semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola (Evangelho de Mateus 13, 44-46).

fabula

A Raposa e as Uvas, fábula de La Fontaine (1621-1695)

 Contam que certa raposa,

Andando muito esfaimada,

Viu roxos maduros cachos 

Pendente de alta latada.

De bom grado os trincaria,

Mas sem lhes poder chegar,

Disse: “estão verdes, não prestam,

Só cães os podem tragar!”

Eis cai uma parra, quando

Prosseguia seu caminho,

E crendo que era algum bago,

Volta depressa o focinho.

Moral da história:

Quem desdenha quer comprar.

Sophia de Mello no Panteão

sophia

 

A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça.

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

(Sophia de MELLO — Dual, 1972)

 

CANON

Sombrios profetas do exílio abandonai vosso vestido cinza\

Pois o Filho do Homem na véspera da sua morte

Se sentou à mesa entre homens

E abençoou o pão e o vinho e os repartiu

E aquele que pôs com ele a mão no prato o traiu

E uma noite inteira no horto agonizou sozinho

Pois os seus amigos tinham adormecido

E no tribunal esteve só como todos os acusados da terra

E muitos o renegaram

E à hora do suplício ouviu o silêncio do Pai

Porém ao terceiro dia ergue-se do túmulo

E partilhou a sua ressurreição com todos os homens.

(Sophia de Mello – Musa, 1994)

 

PORQUE 

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

in Mar Novo (1958

27 de junho de 1214
Nasceu a língua portuguesa

lingport                          Reprodução do “Testamento de D. Afonso II”

 

Manifesto 2014 – 800 anos da Língua Portuguesa

A língua que falamos não é apenas comunicação ou forma de fazer um negócio. Também é. Mas é muito mais.

É uma forma de sentir e de lembrar; um registo, arca de muitas memórias; um modo de pensar, uma maneira de ser – e de dizer. É espaço de cultura, mar de muitas culturas, um traço de união, uma ligação. É passado e é futuro; é história. É poesia e discurso, sussurro e murmúrios, segredos, gritaria, declamação, conversa, bate-papo, discussão e debate, palestra, comércio, conto e romance, imagem, filosofia, ensaio, ciência, oração, música e canção, até silêncio. É um abraço. É raiz e é caminho. É horizonte, passado e destino.

Na era da globalização, falar português, uma das grandes línguas globais do planeta, que partilha e põe em comum culturas da Europa, das Américas, de África e da Ásia e Oceânia, com centenas de milhões de falantes em todos os continentes, é um imenso património e um poderoso veículo de união e progresso.

Em 27 de junho de 2014, passam oitocentos anos sobre o mais antigo documento oficial conhecido em língua portuguesa, a nível de Estado – o mais antigo documento régio na nossa língua, o testamento do terceiro rei de Portugal, Dom Afonso II.

Neste dia, queremos festejar esses oito séculos da nossa língua, a língua do mar, a língua da gente, uma grande língua da globalização. Fazemo-lo centrados nesse dia e ao longo de um ano, para festejar com o mundo inteiro esta nossa língua: a terceira língua do Ocidente, uma língua em crescimento em todos os continentes, uma das mais faladas do mundo, a língua mais usada no Hemisfério Sul. Celebramos o futuro.

Em qualquer lugar onde se fala Português, 27 de junho de 2014

ABEL BAPTISTA, presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República (Portugal)

AFONSO CAMÕES, jornalista, presidente da Agência LUSA

ALBERTO DA PONTE, gestor, presidente da RTP – Rádio e Televisão de Portugal

ANA FAZENDEIRO, advogada, Propriedade Intelectual e Tecnologias de Informação

ANA PAULA LABORINHO, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua

ANTÓNIO FILIPE, vice-presidente da Assembleia da República de deputado do PCP

ANTÓNIO LOBO ANTUNES, escritor

ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS, cineasta

CARLOS FARACO, professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná

CONCEIÇÃO PEREIRA, deputada à Assembleia da República (Portugal)

FERNANDO PINTO DO AMARAL, poeta, crítico literário e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, comissário do Plano Nacional de Leitura

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, escritor, ex-secretário de Estado da Cultura (Portugal)

HÉLDER LUCAS, embaixador, chefe da Missão de Angola junto da CPLP

INÊS DE MEDEIROS, actriz, deputada à Assembleia da República (Portugal)

ISABEL PIRES DE LIMA, professora catedrática de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ex-ministra da Cultura (Portugal)

JACINTO LUCAS PIRES, escritor

JOÃO ALVIM, editor, presidente da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros

JOÃO DAVID NUNES, radialista e gestor, director do Centro Nacional de Cultura

JOÃO PINTO DE SOUSA, editor

JOÃO VEIGA GOMES, advogado,  Presidente da APILOP – Associação para a defesa da Propriedade Intelectual nos Países de Língua Oficial Portuguesa

JORGE BARRETO XAVIER, secretário de Estado da Cultura (Portugal)

JORGE CARLOS FONSECA, Presidente da República de Cabo Verde

JORGE RANGEL, presidente do Instituto Internacional de Macau

JORGE VAZ DE CARVALHO, poeta, ensaísta e tradutor, cantor lírico, professor e Coordenador Científico de Estudos Artísticos da Universidade Católica Portuguesa

JOSÉ AUGUSTO BERNARDES, professor catedrático de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras de Coimbra e director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

JOSÉ CARLOS VASCONCELOS, jornalista, director do “Jornal de Letras”

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, escritor

JOSÉ MÁRIO COSTA, jornalista, criador do Ciberdúvidas

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO, advogado e deputado, ex-presidente das Comissões de Educação, Ciência e Cultura e de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas da Assembleia da República  (Portugal)

Passeio 2014

Passeio2014

Em peregrinação às terras da Maria da Fonte

Rapariga natural de Fonte Arcada, em 1846 Maria da Fonte encabeçou e deu nome a uma rebelião que teve como causa ou pretexto a não aceitação das leis de Costa Cabral que proibiam os enterramentos dentro das igrejas. Em 19 de Março daquele ano, um grupo de mulheres armadas de chuços e foices obrigou o Pároco da freguesia de Santo André de Frades a dar sepultura dentro da igreja do cadáver de uma mulher que ia a enterrar. Os tumultos prosseguiram e, no mês seguinte, tinham já alastrado por todo o Minho e Trás-os-Montes, tendo tomado logo de seguida feição política, pró-miguelista)

 A igreja românica de Fonte Arcada

“… FONTE ARCADA, onde há uma igreja românica das mais antigas que em Portugal se construíram, dizem os registos que em 1067. Contra o costume, o cordeiro representado no tímpano é um animal adulto, de sólida armação córnea. O viajante julga compreender: a pureza é compatível com a força, e este carneiro obviamente se vê que não irá ao sacrifício sem resistir. Estes tempos românicos eram ásperos, agarrados ao instinto, sábios de Sol e de Lua, como se vê na porta lateral, e muito capazes de infringir as convenções da sacristia: o Cordeiro de Deus é um carneiro, e, se Cristo expulsou do templo os agiotas, marre o carneiro enquanto Cristo brande a chibata” (José Saramago – Viagem a Portugal)

 (A igreja de Fonte Arcada tem inegável marca gótica. É possível que tenham trabalhado aqui alguns artistas vindos de Roriz, Sousa e Ferreira, bem como alguns mais de cultura árabe, Da frontaria ressalta imediatamente a rosácea, de todo semelhante às de Roriz, Pombeiro e Paço de Sousa.)

O Santuário de Nossa Senhora dos Milagres ou de Porto d’Ave

Construído na primeira metade do século XVIII, este santuário chama particularmente a atenção pelo facto de estar situado não num alto, próximo do céu, mas em baixo, ao lado do rio Ave que ali se espraia numa larga veia.

Ou seja: aqui, para se chegar ao santuário, não se sobe, desce-se. Para tal se construiu um belíssimo escadório —  que se desce, não se sobe — hoje semi-escondido por frondoso arvoredo.

O rio é, como sabemos, uma água corrente, purificatória e lustral. E a descida às águas é importante no imaginário e na prática sacramental do cristianismo. Na Igreja primitiva, o baptizando descia às águas — para tal nos baptistérios do primeiro cristianismo havia escada — e só então era baptizado; subia depois por outra escada, homem novo que era, já com veste branca e com uma luz – símbolo do que disse “Eu sou a luz” — na mão.

Ex-votos

No interior do santuário, há uma enorme colecção de ex-votos, a dizer da multidão de peregrinos que aqui acorria.

“Em torno das imagens, nas paredes, ao longo das naves ou em capelas acessórias, frequentemente vários painéis atestam e celebram admiráveis milagres, proclamando assim o perpetuando o reconhecimento pelas graças obtidas” – assim explicava o poveiro Rocha Peixoto o que sejam tábuas votivas, geralmente chamadas ex-votos ou até simplesmente milagres, que chegaram até nós aos milhares.

O Monte de São Mamede, ou de Penafiel ou do Castelo

Do alto deste Monte, localizado na freguesia de Maria da Fonte, Santo André de Frades, disfruta-se um dos mais belos cenários paisagísticos de Portugal.

Lugar habitado desde os tempos mais remotos, por lá passaram Celtas, Romanos, Suevos e Visigodos.

Aqui se reúnem, portanto, práticas religiosas pagãs e cristãs. Monte de São Mamede. São Mamede, que terá padecido martírio em Caesareia da Capadócia, ao tempo do imperador Aureliano (170–175),  diz-se que pregava a Palavra de Deus aos animais selvagens!, e conquistava a sua amizade; ordenhava mesmo corças e cabras selvagens e, com  o leite, fazia queijos que distribuía aos pobres. E assim se tornou patrono do gado, passando a ser invocado em todas as causas do leite. No dia da sua romaria, 17 de Agosto, os romeiros acudiam ao Monte a dar graças ao mártir: e traziam-lhe leita em jarros (hoje em pacotes de leite do supermercado). Eram (são) os lavradores que vêm agradecer a saúde dos seus animais, nomeadamente das fêmeas que, após o parto, têm leite para amamentar os filhotes.

Nas Inquirições de 1220 fala-se de um Castelo de Penafiel que era certamente o que aqui existia no Monte de S. Mamede.

O abraço do [Chico ao] Bispo

21. bispo 83

Ainda há bem pouco tempo, nem sequer me passava pela cabeça que fosse possível, durante a minha vida, surgir-me a oportunidade de um dia poder abraçar o Bispo: tive sempre a ideia de que o Bispo era uma coisa intocável, uma coisa de que a gente ouvia falar mas que nunca via, uma coisa com quem a gente gostaria de falar mas que nunca se podia.

Eu sabia que ele era o meu-irmão-mais-velho-na-Fé, mas era um irmão muito importante, um irmão que eu conhecia só pelo nome, mas que nunca tinha contactado pessoalmente. E eu já me tinha habituado à ideia de que nunca seria possível conhecer o meu irmão, embora isso me confundisse, pois ele vivia ali tão perto de mim.

Habituei-me a viver na minha comunidade com os meus irmãos mais novos. Éramos todos muito pequenos, muito pobres, muito simples, mas havia entre nós uma grande Humildade que nos enriquecia, uma grande Alegria que nos confortava, um grande Amor que nos unia; e assim fomos crescendo com muitas dificuldades. Até que chegou um dia em que nos foi anunciado que o nosso irmão-mais-velho vinha à nossa Casa. Era a Confirmação!

Parecia impossível! Que alegria! Que ansiedade!

Nunca mais chegava o dia! O Grande Dia!

Nessa manhã, acordei mais cedo. Estava nervoso porque era a primeira vez e eu não sabia como se tratava com o meu irmão-mais-velho. Tinha que ir bem arranjado porque ele era uma pessoa de cerimónias. Mas ao mesmo tempo eu não percebia muito bem porquê tudo isto, pois ele não era meu irmão? Ele era gente da casa!

Aguardámo-lo com um certo nervosismo e impaciência. Era uma pessoa pontual e, à hora exacta, ele chegou.

Não havia mestre de cerimónias nem pompas nem foguetes. Acolhemo-lo como é costume fazer nas casas humildes, sem artificialismos, mas com o coração nas mãos, com o calor do nosso amor-de-irmãos. Distribuíram-se sorrisos, trocaram-se palavras simples. Foi o primeiro contacto.

Durante a festa da celebraço foi para mim o ponto alto do e palavras de muita amizade. A Confirmaço mdades.Atado que nunca se podia. largos anos para crismão, recebemos bons conselhos e palavras de muita amizade. A Confirmação foi para mim o ponto alto do dia e um marco importante na minha vida.

Comemos à mesma Mesa e bebemos do mesmo cálice.

O meu irmão-mais-velho já tinha conquistado toda a minha admiração e simpatia, e eu gostava que entre nós houvesse mais aproximação e simplicidade, mas eu tinha que me conformar com a distância que havia entre nós e que era preciso manter porque ele era de outra condição.

O nosso Pai tinha dito “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, e eu sabia que ele prefere o contacto com os pobres e os simples, e por isso eu estava triste porque não lhe fazíamos a vontade dentro da nossa Igreja.

Mas graças a Deus que na celebração da Eucaristia temos o gesto da Paz, gesto que nós dá a graça de nos aproximarmos uns dos outros, anulando e ultrapassando, ainda que só por momentos, todas as diferenças sociais. E uma das coisas que mais me alegrou nesse dia foi o momento da Saudação da Paz em que ficamos selados  pelo mesmo abraço fraternal, o Abraço da Igualdade.

Estávamos juntos, unidos, ligados. Agora não havia distância entre mim e o meu irmão importante.  Agora éramos dois irmãos-gémeos, dois irmãos mais iguais, unidos pelo mesmo abraço, unidos pela mesma fé em nosso Senhor Jesus Cristo.

Durou poucos segundos o abraço que esperei durante os meus quarenta anos de vida, mas valeu a pena!

Nunca mais o esquecerei!

Era o abraço do Bispo! Aquele abraço!

(FD 204, 10 de Junho de 1979)

Jesus e as crianças

Crianças

Uma vez, ia Jesus para Jerusalém e trouxeram-lhe umas crianças para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas. Mas os discípulos não queriam: que Jesus estava cansado! Mas ele interveio e disse-lhes:

 Deixai! Deixai as crianças virem ter comigo. Não as impeçais! Delas é que é o Reino de Deus. Já vos disse que, quem não receba o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele.

E depois de lhes ter imposto as mãos, prosseguiu o seu caminho. Tendo chegado ao Templo de Jerusalém, começou a expulsar dali, todos os que compravam e vendiam fosse o que fosse. Vendo isto, um bando de crianças começou a gritar:

­ — Hossana! Hossana! Filho de David!

Os sumos sacerdotes e os doutores da Lei ficaram muito indignados e disseram-lhe:

Tás a ouvir? Bonito, não é?

E Jesus respondeu:

Estou a ouvir, estou! Vós não sabeis, que é da boca dos mais pequeninos, ou até, das crianças de peito, que sai a verdade? Vós dizeis, que João Baptista está possesso do demónio, por não comer pão nem beber vinho; e a mim, por comer e beber, chamais-me glutão e bêbedo. Pareceis crianças sentadas na praça pública, a dizerem umas para as outras: tocámos flauta e não dançaram, lastimámo-nos e não choraram.!

Doutra vez ainda, depois de ter sarado um doente, o que deixou toda a gente admirada, Jesus disse aos discípulos, que haveriam de o entregar aos que o queriam matar. E, perante isso, os discípulos, começaram logo a pensar e a discutir, qual deles, depois da sua morte, seria o maior. Mas Jesus percebeu o que eles estavam a discutir entre si. E então, pegou num menino, chegou-o a si e disse:

Quem acolher este menino em meu nome, é a mim que acolhe. E quem me acolher a mim, acolhe aquele que me enviou. E portanto, o maior será o que, entre vós, for o mais pequeno. Esse, é que será o maior!

Jesus disse isto com tanta espontaneidade e alegria, que todos perceberam que tinha sido o Espírito de Deus a dizê-lo em vez dele. E continuou:

Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra. Tu escondes estas coisas aos sábios e aos inteligentes, e revela-las aos pequeninos. Mas estas é que são as coisas do teu agrado!

Marcha nupcial?

MarchaNupcial                                                      Marc Chagall, Wedding Crop

Comece por dizer-se que a Marcha Nupcial, tradicionalmente tocada nos casamentos, é parte de um poema sinfónico composto por Felix Mendelssohn (1809-1847), inspirado numa comédia de William Shakespeare (1564-1616)  que tinha por título Sonho de uma noite de Verão.

A cena passa-se em Atenas, por ocasião do casamento de um tal Duque Teseu com uma amazona, Hipólita. Não se sabe ao certo quando foi escrita pelo grande dramaturgo inglês, embora se pense que na última década do séc. XVI.

No século XIX, por volta de 1820, Mendelssohn encanta-se com o texto de Shakespeare e inicia a composição do poema sinfónico, ou seja, de uma composição baseada num poema ou texto literário em que o autor procura descrever sentimentos e despertar emoções. Com o romantismo e a queda ou desaparecimento do racionalismo, a Música esforçava-se, cada vez mais, por traduzir sensações e ideias definidas e concretas. A esta música — romântica — se deu o nome de Música de programa que, pouco a pouco, começou a distanciar-se da anterior, luxo aristocrático, quando muito prazer espiritual de alguns privilegiados da fortuna que podiam ter ao seu serviço compositores e intérpretes. Em palavras simples a própria música erudita passou a inspirar-se nas coisas do povo e a tornar-se ”uma necessidade e um acontecimento social de alcance universal”.

Assim nasceu o Sonho de uma noite de Verão, de Felix Mendelssohn, que o compositor foi escrevendo — dos seus 17 aos 33 anos — ao longo da uma curta vida. Morreria com 38.

Digamos que este poema sinfónico exprime em música os sentimentos e emoções do texto shakespeariano.

Da peça de Mendelssohn, que tarda uns 45 minutos e foi estreada em Potsdam, em 1843, faz parte uma Marcha Nupcial, que descreve o brilhantismo do casamento de Teseu e Hipólita. A obra, no seu todo, foi executada uma primeira vez em 2 de Junho de 1847 (o compositor morreria a 4 de Novembro desse mesmo ano) num casamento celebrado em Inglaterra. Onze anos depois, a futura rainha Victória, ainda princesa, escolheu-a também para o seu casamento com o Príncipe herdeiro da Rússia, no dia 15 de Janeiro de 1858.

De então para cá, Marcha Nupcial é Marcha Nupcial, se bem que nada tenha a ver com a Liturgia cristã do casamento.

O pastor

O pastor que eu conheço, de que vou falar, é o meu pai. É pastor na Coriscada, concelho de Mêda, distrito da Guarda, no sopé da cadeia montanhosa Serra da Estrela / Marofa.

A localização é importante e pertinente porque o meu pai não é pastor nem no Alentejo ou no Gerês, nem numa qualquer ilha dos Açores… O meu pai é pastor neste lugar determinado geograficamente, há vinte anos. E, neste lugar, as estações, as quatro estações sucedem-se ciclicamente!

No correr do ano, o pastor é pastor 366 dias; 32 dias no mês; 25 horas no dia…

No outono, é pastor de outono; no inverno, pastor de inverno; na primavera, pastor de primavera e, no verão, pastor de verão!

No outono, é pastor de outono! Nos dias em que o calor ainda aperta, levanta-se por volta das 5h30; come qualquer coisa, segue para a corte, ordenha as poucas ovelhas que já pariram e as poucas que ainda dão leite. Junta e coa o leite da primeira ordenha do dia. Regressa a casa a fazer o bornal para comer durante o dia; só depois é que sai para a folha (pastagem), aí por volta das 7h! Se o calor ainda aperta e as ovelhas acarram (as ovelhas deitam-se para passar as horas de maior calor), o pastor também descansa um pouco. Quando desacarra, mais um pouco de pastagem. Regressa por volta das 20h30. Depois de os borregos terem mamado, ordenha e leva o leite para casa, pois o leiteiro ainda não passou (a empresa contratada a quem se vende o leite); o leite serve para se fazer o queijo que vai dar para compor os rendimentos do pastor ao longo do ano, mas é também o seu principal conduto (alimento que come com o pão). Os dias começam a ficar mais pequenos e…

No inverno, é pastor de inverno! Levanta-se por volta das 6h30, come qualquer coisa, ordenha a meia dúzia que já pariu e cujos borregos já não mamam; regressa a casa e, olhando o tempo em quanto caminha, decide se é dia de capote, capa ou guarda-chuva. Faz o bornal para o dia e, pelas 8h30 / 9h, sai com o rebanho para a pastagem: faça chuva, neve, frio ou mesmo o famoso sincelo das Beiras, que com o seu nevoeiro até corta a respiração… Quando regressa, por volta das 16h30 / 17h, já a cama do gado está feita com palha nova e seca, que as ovelhas não podem ficar doentes, nem a lã suja para no verão ser vendida, após a tosquia, no fim da primavera, início do verão. Os dias começam a crescer e há que ajustar o período de pasto ao período de luminosidade do dia. Mais tempo para pastar = mais erva ingerida = mais e melhor leite!

Na primavera, é pastor de primavera! A alvorada acontece cada vez mais cedo; aí pelas 4h30 / 5h, pois ordenhar à mão 30 a 40 ovelhas é duro. Só depois da ordenha é que se sai para a pastagem; aí por volta das 6h30 / 7h. A erva (num bom ano) abunda, é viçosa, tenra e, porque o tempo está um pouco mais quente e o dia é maior, as ovelhas parem com mais frequência e é normal haver 20 / 25 borreguitos (será que é também por este facto que os judeus comem borrego na Páscoa?). Na pastagem, o comportamento das ovelhas muda, já não correm procurando a erva tenra; como ela abunda, detêm-se mais num mesmo lugar e o pastor não corre tanto atrás delas…

De manhã e à noite, tem de se cuidar dos borregos e das mães… ensinar as jovens borregas a dar de mamar aos seus borreguinhos e começar a desmamar aqueles que já são grandes. Vender os que têm de ser vendidos e separá-los dos que vão ficar no rebanho para renovar o mesmo. Andar com eles às costas ou na mão quando nascem na pastagem e velar para que nenhuma ovelha “deite a barriga” (aborte) é trabalho do pastor.

No verão, é pastor de verão! É um período muito difícil. A erva que até então abundava começa a escassear, o calor é cada vez mais e aí por volta das 10h as ovelhas começam a acarrar… Tem de se aproveitar o orvalho da manhã, antes da erva começar a murchar, por isso, o pastor sai para a pastagem por volta das 5h, e às 10h já está em casa. Entre as 10h e as 16h30, tem de se aproveitar o tempo para ceifar canas sem espiga, semeadas bastas, para se espalhar no pasto antes do almoço, que depois é hora da sesta. À tarde, a erva está muito murcha, as ovelhas não a comem; não fossem as canas, alguma rama de freixo ou ervas das batatas a sustentar o rebanho, este perder-se-ia, definharia. Não esquecer que depois de acarrarem tem de se dar de beber às ovelhas e é preciso tosquiá-las. O leiteiro, que havia começado a passar aí por volta do fim de outubro, deixa de passar no fim de junho, quando a diminuição da produção de leite é significativa. O pastor regressa por volta das 21h30 / 22h e ordenha a meia dúzia que ainda tem leite e, por volta das 23h, pode descansar um pouco até às 4h… No dia seguinte, tudo recomeça.

Quando os dias começam novamente a diminuir, o pastor e o rebanho voltam a adaptar-se à luminosidade do dia.

É a natureza (com as suas estações do ano) e o rebanho que marcam o ritmo da vida do pastor, e não o pastor que marca o ritmo de vida do rebanho. E é assim o ano, os anos do pastor.

(Rogério Melão Alves)

A caminho de Emaús

Emaus

Quem não conhece a estalagem de Emaús? Quem não andou por essa estrada numa tarde em que todas as coisas pareciam perdidas? Cristo estava morto em nós, levado de nós pelo mundo, pelos filósofos e os sábios, pela nossa paixão. Jesus acabara para nós, enquanto na terra seguíamos caminho e alguém caminhava ao nosso lado. E de súbito uma porta aberta, a obscuridade de uma sala em que o fogo aceso da lareira bate a terra batida e acende as sombras. O pão dividido! Ó migalha de pão consumida entre tanta miséria nossa!

Fica connosco, que já tomba o dia!

(François Mauriac – Vie de Jésus)

TEMPO PASCAL

tpascal1Para os primeiros cristãos, a Páscoa não era apenas a festa por excelência ou a festa das festas, mas a única festa ao lado da qual mais nenhuma existia.

Festa única de sete semanas (49 dias + 1), a Páscoa celebrava a Ressurreição do Senhor: o tempo antigo tinha definitivamente terminado com o Ressuscitado, mas esperava-se ainda a inauguração do Tempo Novo com a vinda do Espírito Santo.

Porquê então uma festa de sete semanas?

Recordemos a explicação de Eusébio de Cesareia (c. 263 – c. 339):

“Depois da Páscoa, celebramos o Pentecostes durante sete semanas inteiras, do mesmo modo que mantivemos, com coragem, durante as seis anteriores à Páscoa, a observância quaresmal. … Às fadigas suportadas durante a Quaresma, sucede justamente uma segunda festa de sete semanas que multiplica para nós o descanso, de que o número sete é símbolo” (De sollemnitate paschali, 2.4.5: PG 24, 693 ss).

Este conjunto de 50 dias designava-se originariamente Pentecostes (palavra de origem grega formada com o prefixo penta que quer dizer cinco).

Neste tempo litúrgico, a Igreja recorda as variadas experiências de Jesus Ressuscitado: as aparições aos Discípulos, a ascensão à Glória do Pai, o dom do Espírito. Nenhum destes acontecimentos no entanto se celebra isoladamente, fragmentado, antes de uma forma una e indissociável.

De facto, a Igreja Primitiva seguiu em tudo o critério do Evangelho de João que não os reparte de forma cronológica mas antes os reúne e contempla de modo unitário, como que se tivessem acontecido fora do tempo. É precisamente a experiência desta grande realidade, vivida com intensidade ao longo de toda a cinquentena, espécie de ressonância da alegria pascal, que enche de alegria a comunidade cristã.

Assim, enquanto a Quaresma foi um tempo de exercício ou luta ascética contra as paixões e maus desejos que mancham e degradam o Homem, a cinquentena celebra a glorificação de todos os baptizados em Cristo. Daí que vários Padres da Igreja lhe chamem um grande domingo (Atanásio de Alexandria, Ireneu, Tertuliano).

Serra do Pilar, 2014.04.27

AVISO

POR MOTIVOS DE FORÇA MAIOR, O CONCERTO DE GUITARRA CLÁSSICA AGENDADO PARA SÁBADO, 26/04/2014, ÀS 21H30 NA SERRA DO PILAR, FICA CANCELADO.

Páscoa 2014
5ª semana da Quaresma

A finalizar o percurso catecumenal e a Liturgia quaresmal — que a Páscoa está à porta — a figura de David, rei, poeta e pecador.

O Profeta

David 5dom                                                                                                                                                                                                                                   Marc Chagall

Quem é profeta?, ou o que é um profeta?

Pensava-se antigamente que o profeta adivinhava o futuro, mas não, nada disso, o profeta é o homem mais lúcido do seu tempo, aquele que olhando o presente é capaz de discernir o futuro.

Os grandes profetas do Antigo Testamento apareceram em cena nos tempos da grande crise da história de Israel, um pouco como aconteceu em todas as grandes religiões (em que há mesmo uma chamada “revolução profética”). E foram mensageiros antes de tudo. Naqueles tempos não havia nem jornais, nem rádio, nem televisão, as notícias e as leis eram tornadas públicas de terra em terra em voz alta no meio da aldeia por um mensageiro que começava por dizer quem o enviava a proclamar: assim ordena o rei, por exemplo. Por isso, também os discursos dos profetas – chamados oráculos – começavam amiúde por estas expressões: Deus disse ou Deus falou assim ou ainda Palavra do Senhor!. Os profetas eram chamados (vocacionados) por Deus a falar em seu nome, anunciando; por isso quase todos os livros dos profetas começam por narrar a sua vocação. As suas mensagens eram de anúncio, de crítica ou até previsão de catástrofes (entendidas como castigos).

Os profetas, portanto, iam em princípio contra a corrente da opinião pública, e sobretudo contra a opinião dos poderes instituídos, religiosos e políticos. Mesmo quando parecia que estava tudo bem, denunciavam os males da sociedade em que viviam antecipando de algum modo o que não se esperava. Mas quando o povo entrava em depressão, eram eles quem lhe acalentava a esperança. Por isso, muitos deles morreram às mãos dos poderosos que os não suportavam, por inquietadores do povo. Dirigindo-se aos doutores da Lei e fariseus hipócritas, Jesus – o grande profeta – dizia-lhes: Vós sois filhos dos que assassinaram os profetas! Andai lá: acabai de fazer o que eles começaram! (Mt 23,31).

Os profetas de Israel?, os que escreveram e os que não escreveram, os maiores e os menores, todos ou só alguns, foram “os sentinelas da aliança que Iavé selou com o seu povo”.

A Liturgia deste domingo propõe um texto do profeta Ezequiel. Há profetas maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel) e menores, escritores e não escritores (Samuel, Elias, Eliseu, etc).

Ezequiel foi desterrado para o cativeiro, na Babilónia, no ano 597 aC. Ali viveu na colónia de desterrados judeus, animando os seus concidadãos. Previu a destruição de Jerusalém, que de facto aconteceu em 587 aC, mas logo de seguida começou a anunciar que Deus restauraria o seu povo: “Vou abrir os vossos t aCEz12)e Israel” vos reconduzir tar, ariua o seu povo.i oevado oaraúmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo, para vos reconduzir à terra de Israel” (37,12); e ainda: “Dar-vos-ei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo” (11,19).

(Homilia na Serra do Pilar, 5º Domingo da Quaresma, 2012.03.25)

Páscoa 2014
4ª semana da Quaresma

Estamos às portas da grande semana — Santa, Maior ou Autêntica – e do Tríduo Pascal. Na recapitulação catecumenal que a Liturgia quaresmal possibilita às Igrejas, faltam ainda duas referências importantes.

O rei David

Rei David

O rei por excelência – David – perfaz, com Abraão e Moisés, o trio principal do Antigo Testamento. Mas ele é também o degrau mais importante da genealogia do Messias (Mt 1,1-17), chamado depois o Filho de David (Mt 21,9).

Quem diria? David era o filho mais novo de Jessé e guardava os rebanhos do pai. Mas foi esse mesmo que o profeta Samuel, enviado por Deus, chamou para o ungir como rei. Sempre a preferência de Iavé pelos mais pequenos!

Mas a coisa não foi imediata. Entrou na corte porque era um harpista exímio: tocava para Saúl, o rei, que assim se tranquilizava nos seus cada vez mais frequentes acessos de loucura. Mais tarde, mandado a levar comida aos irmãos que eram soldados do rei, propõe-se aceitar o repto de Golias e lutar com ele. Haveria de o vencer com uma simples fisga. Esta vitória – que levaria as mulheres a cantarem que Saúl matou mil mas David dez mil! (1 Sm 18,7) – despertaria o ciúme do rei. A partir deste momento, tentou matá-lo de mil maneiras. Valeu-lhe sempre Jónatas, filho de Saúl, que o avisava que fugisse. Enquanto isto, David teve o rei à sua mercê por duas vezes mas nunca lhe tirou a vida.

Finalmente, o rei e seu filho Jónatas haveriam de morrer numa batalha contra os filisteus (os antepassados dos Palestinianos). David foi então coroado rei.

Valente soldado, ganharia muitas batalhas. Foi um grande rei, um grande governador e gozou de grande popularidade entre o seu povo. Conquistaria mesmo a cidade de Jerusalém aos jebuseus, o povo que a ocupava, a ela e a toda a terra de Canaã. Jerusalém ficava no cimo da colina de Sião: por isso na cultura judaico-cristã se fala muitas vezes em subir a Jerusalém (Lc 18,31). David fez da cidade a sua capital, levou para lá a Arca da Aliança e planeou construir ali um templo para Iavé. Mas ele trocou-lhe as voltas (1 Sm 7): não serás tu a construir-me uma casa, mandar-lhe-á Iavé dizer pelo Profeta. O templo construi-lo-ia o seu filho Salomão (2 Sm 7,13). Foi um passo importante para o tempo em que não haveria mais uma casa para Deus e outra para os homens, pois que Deus habitaria então com os homens se eles vivessem como irmãos. Mais ainda: tempo viria em que se adoraria a Deus não no alto dos montes nem nos templos de pedra mas em espírito e em verdade, como Jesus disse à samaritana.

Preocupados com os seus feitos dos seus reis, os cronistas enalteceram desde sempre muito mais as qualidades dos soberanos que as suas fraquezas. A Bíblia fala, por isso, pouco do David-pecador, que o foi. Cometeu adultério com a mulher de Urias, o general do seu exército que acabou por colocar mesmo na linha da frente da batalha onde acabaria por morrer (2 Sm 11) … para lhe ficar com a mulher. O profeta Natan denunciou o seu pecado, mas David arrependeu-se de verdade e Deus perdoou-lhe. E a mulher, que entretanto engravidara, perdeu o filho, no que David viu um castigo do seu Deus.

Mais tarde viriam os conflitos entre ele e seus filhos. O mais célebre de todos é o de Absalão, o seu filho preferido, cuja morte David choraria amargamente: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Porque não morri eu em teu lugar? Absalão, meu filho, meu filho!” (2 Sm 19,1).

Já no fim da sua vida o célebre canto de David, disse assim o rei: O Senhor é a minha rocha, o meu baluarte e o meu libertador. Deus, meu rochedo, em quem eu confio, meu escudo, minha força salvadora que me livra da violência! (…) Quem é deus senão o Senhor? Quem é um rochedo senão o nosso Deus? Deus é a minha praça-forte, ele torna recto o meu caminho (2 Sm22.1-2.32-33).

Escrevendo sobre David já depois da sua morte, os autores do Antigo Testamento não tiveram dificuldade em perceber que o seu nome, David, que quer dizer um homem segundo o coração de Deus, tinha sido um bom nome próprio para o rei, porque há mais alegria no céu por um pecador que se converte que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (Lc 19,7).

Um grande rei, um grande crente e também um grande pecador! Mas foi ainda a evidência de que Deus cumpria as suas promessas: David foi a grande prova de que o prometido [a Abraão] é devido; farei de ti um grande povo (Gn 12,2).

Na plenitude dos tempos, Jesus seria chamado filho de David. Porque ele vinha cumprir definitivamente as promessas feitas ao grande rei, porque ele – diria o autor do Apocalipse – é o descendente e da estirpe de David (Apo 22,16). Por isso, disse o Senhor a David, a tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de mim e o teu trono será firme para sempre (2 Sm 7,16).

Também por isto chamamos rei a Jesus. E Pilatos perguntar-lhe-ia se ele era rei (Lc 23,3).

(Homilia na Serra do Pilar, 4º Domingo da Quaresma, 2008.03.02)

Páscoa 2014
2ª semana da Quaresma

Abraão

AbraãoNo tempo baptismal que é a Quaresma, a figura de Abraão, que é o “pai na fé” ou o “pai dos crentes”.

A um Homem foi feito um convite: Deixa a tua terra e a casa de teus Pais e vem para a terra que eu te vou mostrar (Gn 12,1). E Abraão partiu como o Senhor lhe tinha dito (Gn 12,4). Em consequência, foi-lhe feita uma grande promessa: Farei de ti um grande povo (Gn 12,2); Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar. E todas as nações da terra serão nela abençoadas porque obedeceste à minha voz (Gn 22.17-18). Levanta os olhos para o céu e conta as estrelas! Se fores capaz de as contar!… Assim será a tua descendência (Gn 15,5).

É verosímil que tenham existido, Abraão e seus descendentes: entre os semitas nómadas, o sentido e a recordação dos antepassados é muito forte.

Agora que se trate de uma memória histórica e pessoal ou de um tipo religioso e étnico é questão que, certamente, ficará sempre por resolver. Temos a certeza, isso sim, de que “viveu” entre 1.900 e 1.700 aC. De facto, nessa altura, houve uma grande corrente migratória de sumérios para o Norte: as famílias ricas deixavam o país por causa dos incessantes conflitos que o tornavam pouco seguro.

Abraão procedia de Ur, na Caldeia, uma cidade situada na margem ocidental do rio Eufrates (actual Iraque). Cresceu portanto no seio do povo mais culto de então, onde funcionaram os mais antigos tribunais e parlamentos que a História conheceu, onde se elaboraram as primeiras legislações sociais, e onde a técnica nascente atingiu, ao tempo, um altíssimo grau de desenvolvimento. Mas a Escritura guarda silêncio sobre tudo isso, certamente para apresentar Abraão absolutamente intacto face às religiões pagãs, e para salientar que Israel nasceu de uma ruptura radical e absoluta com o politeísmo: tanto que “Abraão deixou a terra”. Segundo o relato bíblico, um dia, ouviu a voz de IAVÉ, “o Senhor”, um Deus desconhecido para ele: Deixa a tua terra natal e a Casa de teu Pai e vai para a terra que eu te vou mostrar. Farei de ti um grande povo (Gn 12,1/2).

E a descendência de Abraão cresceu de geração em geração. Conhecemos os nomes de muitos, de tantos: Isaac e Jacob (ou Israel, O que luta com Deus, Gn 32,29 e 35,10), Sara, Rebeca e Raquel, as 12 tribos do Senhor, de Rúben a Benjamim, o mais novo. Nesta altura, Deus era ainda El Shadai, o Maior, fixe!, entre outros menores. Mas foi ele o da promessa, e foi de certeza ele quem falou a Abraão lá longe na Caldeia, nessa terra que ele haveria de deixar para sempre a fim de se lançar na mais interessante aventura de todos os tempos da História.

Ouviu e respondeu, deixou a terra e caminhou à procura de uma outra, nova: “pela fé, Abraão, tendo sido chamado, obedeceu e partiu para um lugar que  haveria de receber como herança” (Hb 11,8). É este o pai dos crentes, invocado pelos judeus, cristãos e muçulmanos.

(Catecumento, Serra do Pilar, 1983)

Páscoa 2014
1ª semana da Quaresma

Começou já a celebração da Páscoa 2014 com a sua preparação ou Quaresma. Neste tempo fundamentalmente baptismal assumem grande importância as catequeses litúrgico-catecumenais. Desde logo a criação segundo o Génesis.

 A Criação do Universo

digitalseance

É impossível não nos maravilharmos com o relato de criação divina. Com a imensa generosidade de Deus criador dotando o mundo das condições físicas necessárias para a seguir o povoar de seres vivos e lhe acrescentar a sua mais importante criação, aquela que fez à sua imagem, o ser humano.

É impossível não nos deslumbrarmos e surpreendermos com as teorias do Big-Bang, da deriva dos continentes, da evolução das espécies. É impossível não nos espantarmos e interrogarmos acerca do povoamento do espaço, da guerra biológica, da manipulação genética.

O confronto entre a fé e a ciência percorre os séculos até aos nossos dias. Esteve presente em momentos críticos da civilização humana, nos momentos de trevas que fizeram a luz. Copérnico, Galileu, Descartes, Newton, Darwin e Wallace, Einstein, Freud e Damásio e tantos outros, são nomes que ficarão para sempre ligados ao caminho do homem na busca da verdade, do como, do onde, do quando, e, inevitavelmente, do porquê.

O desenvolvimento das várias ciências aproxima-as, no limite, das questões religiosas e metafísicas. A ciência procura o como, as segundas causas, mas não atinge o porquê, a causa primeira. O Homem, desde sempre se interrogou sobe as suas origens e as origens do Universo e sobre a sua finalidade, a sua razão de existir. Desde sempre o princípio e o fim. O relato da criação dava-nos quase todas as respostas, pelo menos no que diz respeito às origens, mas esse relato deixou de nos bastar… Muitos de nós interrogamo-nos actualmente sobre qual o papel de Deus na criação do Universo, da Vida e do Homem. Onde e como se sente o sopro divino quando o Universo e a própria Vida parecem ser unicamente governados por leis físicas e químicas? Onde colocamos Adão e Eva se o Homem tem um ancestral comum com os símios?

Temos de recontar a história da criação… sem fechar o livro do Génesis, vamos abrir e folhear outro… aquele que vem sendo escrito, página a página, por homens e mulheres, em vários tempos, em vários locais. Há páginas que se emendam, que se reescrevem, páginas que se arrancam em definitivo, outras que se arrancam a se voltam a colar, páginas escritas antes que o tempo as compreenda e que ficam à espera das outras que lhes darão sentido… o livro que está a ser escrito pela ciência.

O nosso conhecimento recua até quinze mil milhões de anos atrás, ao tempo em que havia um puré de matéria densa e informe; subitamente, uma explosão de luz, a matéria expande-se em todas as direcções, torna-se mais rarefeita e começa a organizar-se. Tomam parte nessa organização quatro forças físicas com valores tão ajustados que desde o primeiro instante tornam possível toda a evolução que se lhe seguiu. As primeiras partículas fundem-se em átomos e estes noutros átomos mais pesados, começam a brilhar as estrelas. Os átomos organizam-se em moléculas, a matéria atrai mais matéria, formam-se os planetas. Num planeta especial, nem muito perto nem muito longe de uma estrela, existe água líquida. Na superfície da Terra as moléculas continuam a organizar-se e tornam-se mais complexas. Alguns conjuntos isolam-se fisicamente do meio, estabelecem trocas com ele e começam a ser capazes de se reproduzirem, surgem as primeiras células. A organização e complexidade continuam a aumentar, a vida explode em variadas formas à superfície do planeta. Uma dessas formas de vida é um primata obrigado pela seca a deixar a floresta pela savana. Assente em dois pés, com as mãos livres e o cérebro em desenvolvimento adquire capacidade de reflexão e abstracção, consciência, produz e transmite cultura. É o primeiro Homo, mas podemos chamar-lhe Adão ou Eva. Ser inteligente, consciente, capaz de antecipar as consequências da suas acções, imagem e semelhança de Deus. Feito de barro que simboliza toda a matéria do universo.

No Livro do Génesis conta-se a história sagrada da criação, no livro da ciência a história natural. Não se excluem nem se contradizem. Foram escritas em contextos históricos diferentes e partindo de pressupostos diferentes, mas são uma e a mesma história. A história da matéria que se organiza no sentido do mais complexo e do mais eficaz, do inerte que engendra lenta e gradualmente a vida, da vida que se multiplica, se diversifica e permite o aparecimento de seres com capacidade de reflexão e de consciência. Excluímos Deus da criação pelo facto de ter criado de forma evolutiva?, ou, pelo contrário, adquirimos uma nova consciência da grandeza da Sua obra?… Deus não criou o Universo e o Homem em sete dias, Deus cria! A criação acontece em cada momento, debaixo dos nossos olhos; as espécies surgem, modificam-se, evoluem, tornam-se cada vez mais adaptadas e mais complexas, e nós estamos nesse ciclo. Partilhamos a matéria do universo, sempre a mesma desde o seu início, e as suas leis, e ao mesmo tempo somos únicos. Somos poeira das estrelas, somos cinza e nada, somos a imagem de Deus.

Como pode existir oposição entre ciência e fé se o mesmo Deus que criou o Universo e a Vida, regidos pelas suas leis, criou também uma criatura a quem dotou de curiosidade e de inteligência crítica que a levam incessantemente a tentar descobrir essas leis e a compreender o funcionamento da Natureza? A ciência procura a verdade, e quanto mais formos capazes de nos aproximarmos da verdade mais nos aproximamos de Deus.

Se, na esfera pública, ciência e fé não se misturam, a ciência procura o como, a fé procura o porquê, a ciência duvida, a fé crê; na nossa esfera privada, no mais íntimo dos nossos pensamentos, cada um de nós interioriza e reflecte acerca dos novos conhecimentos e das novas verdades que todos os dias nos assolam. Para alguns, já predispostos a isso, as descobertas da ciência negam a existência de Deus, para outros levantam o véu sobre a grandeza da criação tornando-a simultaneamente generosa e inteligente.

Mas será que o Homem usa sempre a ciência para o bem do planeta e da humanidade? A questão das implicações e dos limites morais e éticos do desenvolvimento científico coloca-se com particular pertinência neste início do século XXI. Estamos na iminência de poder colonizar o espaço, de assistir à clonagem de seres humanos e não fazemos ideia das armas químicas e biológicas que poderão estar prontas a ser utilizadas a qualquer momento. Legislamos, proibimos, assinamos acordos.

Mas o Homem, ser livre, consciente, gosta de pisar o risco, de comer do fruto proibido, nem que seja uma só vez… Pelo menos uma vez a bomba atómica foi lançada, pelo menos uma vez experimentaram-se armas biológicas, pelo menos uma vez, muito provavelmente, será clonado um ser humano. Parece que faz parte da nossa natureza… Conseguimos prever as consequências das nossas acções e mesmo assim continuamos a optar, livre, consciente e voluntariamente pelo mal. A nossa imperfeição… o que nos falta para verdadeiramente sermos a imagem e semelhança de Deus… o pecado.

Provavelmente estamos mais perto do que pensávamos do barro original, Deus ainda não acabou a criação… e os desafios que nos são colocados são uma maneira de nos tornarmos Homens. Uma maneira de aprendermos a viver com os nossos conhecimentos, o nosso domínio sobre a Natureza, o nosso poder. Uma maneira de aprendermos a superar a nossa imperfeição.

Não é proibindo, censurando, travando os avanços da ciência, que vamos salvar a imagem de Deus e que vamos fazer com que não venha a ser usada para o mal. Chegamos a um ponto em que precisamos de reflectir, de aprender com os erros do passado, precisamos de repensar o nosso caminho na procura da verdade, fora e dentro de nós, onde Deus continua a sua criação.

(Homilia da Lígia na Serra do Pilar, em 2002.02.17, 1º Domingo da Quaresma)

A cinza

queimada

É quando as coisas começam a falar e o homem a ouvir as suas vozes que, no efémero, se pode ler o permanente, no temporal o eterno, e no mundo Deus. As mais diversas culturas foram capazes, todas elas, de perceber que o mundo, todo o mundo, constitui ou possui todo um sistema de sinais e significações: a noite é diferente da manhã, o frio do calor, o norte do sul, a pedra da madeira, a floresta do jardim, etc, e cada uma destas coisas é diferente da outra. Toda e qualquer realidade não é senão um sinal.

A coisa chamada “cinza” não tinha já praticamente nem valor nem significado na cultura do presente. Talvez tenha deixado de ser assim depois de terramotos como os de Bam, depois do ataque às torres de Nova Iorque, depois dos muitos atentados terroristas a que já nos habituámos, e mesmo depois dos acidentes de derrocadas de estruturas que deviam ter sido bem calculadas ou construídas como a da cobertura do Palácio do Gelo de Moscovo que ainda há bem poucos dias matou dezenas. É verdade que já nas culturas antigas a Cinza era o que ficava do desastre, do incêndio das casas dos nossos avós, para mais cobertas de palha, ou das nossas cidades: Roma no sec. I, Londres no XVII e tantas outras arderam num ápice. A Cinza é, por isso, nada.

Representando a condição do homem – “sou apenas pó e cinza” (Gen 18,27), dizia Abraão  ao “Deus de Abraão”, no seguimento da afirmação da segunda narração da Criação que afirma que “Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2,7) – a cinza era o sinal do nada que sobrava do desastre (quer podia ser o da própria vida do homem).

Mas de facto, hoje, cinza só (alguns) a conhecemos, das lareiras das nossas salas no Inverno. Como não temos destino a dar-lhe, lixo.

Não assim no mundo antigo. Aí, a cinza era sinal de ter havido luz e calor. Porque o fogo domesticado não era sinónimo de desastre. Por isso tinha também vários préstimos.

Era, por exemplo, adubante da terra: no campo de semeadura espalhava-se a cinza, e a semente nela lançada nascia e crescia. O fruto podia ser a 100%.

Mas a cinza lavava também: nas antigas barrelas das casas ricas e pobres, uma vez por mês, água quente, sabão e cinza para dentro da barrica e assim se branqueava a roupa.

Há aqui, pois, na cinza, uma dupla significação: ela é fim quer do desastre quer da condição do homem (dirão alguns ou pensaremos todos, numa antropologia demasiado pessimista: “todos caminhamos para a mesma meta: todos saímos do pó e todos ao pó voltamos”, Ecle 3,20), mas também – adubo e branqueador – sinal de recomeço, portanto de penitência e conversão.

É neste último sentido que ela aparece no início da quaresma. Mais do que sinal da condição do homem – recordada na célebre expressão da Liturgia medieval marcada já pelo pessimismo do séc. XIV, o desgraçado, “Lembra-te, homem, que és pó e em pó te hás-de tornar” -, a cinza quaresmal é a cinza de Job (2,8), do rei de Nínive (3,6) e de tantos mais que, fazendo penitência, se vestiram de saco e se sentaram sobre ela.

Por isso, começando com cinza, a Quaresma termina com a celebração da Páscoa. Se hoje ela é o sinal, então, os grande sinais passarão a ser a água e o fogo. Este faz cinza, é verdade, mas trata-se de um fogo que “eu vim lançar à terra; e como eu gostaria que ele se ateasse!” (Lc 12,49). Por isso na Noite Pascal se cantará que o fogo do círio “seja um sinal de tudo quanto queremos dizer e fazer para que, tornando-nos luz de Cristo, continuemos a brilhar sobre a terra com mais intensidade”. Mas também a água, necessária nas antigas técnicas agrícolas para que a cinza penetrasse a terra. Conhecemos todos a sua dimensão baptismal, que é ela que faz nascer o Homem Novo, desde logo na Vigília Pascal.

(Serra do Pilar, 2004.02.25, Homilia em 4ª feira de Cinzas)