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Breve história da Comunidade
De Outubro de 1962 a Dezembro de 65, o Concílio Vaticano II foi a surpresa da Igreja. Os seus frutos continuam a fazer-se sentir, para lá de todas as resistências e oposições: é incontrolável a força do Espírito.
A redescoberta da Comunidade – que na Igreja e diante do Mundo os cristãos vivam efectivamente como Irmãos – foi um dos seus primeiros frutos. É curioso, no entanto, reparar que a Comunidade não foi propriamente uma categoria conciliar: o Concílio pouco falou da dimensão comunitária da Igreja, para lá de genéricas referências na Lumen Gentium (n.os 8 e 9) e de quanto se diz no Documento sobre a Actividade Missionária.
Ele desencadeou, no entanto, um fortíssimo vento comunitário a tal ponto que a palavra Comunidade passou a ser quase mítica nos anos que se lhe seguiram.
Esta necessidade de revalorizar o comunitário não era, entretanto, exclusivamente sentida na Igreja: toda a sociedade começara a notar a urgência de refazer o seu tecido humano, reconstruindo aquela teia de relações e cooperações que o mundo urbano-tecnológico rompera. Mas na Igreja este apelo sentiu-se sobremaneira: porque, quando os Filhos de Abraão se calam, gritam as pedras (Luc 19,40), o mundo puxou pela Igreja, sugerindo-lhe e pedindo-lhe sinais concretos e visíveis de fraternidade, de ajuda, de cooperação, de humanidade, numa palavra.
Recordo-me bem de ter vivido meio deslumbrado a descoberta da dimensão comunitária da Igreja, em ocupações pastorais anteriores à minha vinda para a Serra do Pilar.
Aliás, já desde Medellín (1968), 2ª Conferência dos Bispos Latino-Americanos, que se ouvia falar de Comunidades de Base. Não se sabia bem o que era, mas falava-se muito.
Em 1975, um ano depois do 3º Sínodo dos Bispos dedicado à Evangelização, o Papa Paulo VI, num documento que ficou célebre (Evangelii Nuntiandi), falou de modo claro:
«As pequenas comunidades… nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja; ou então do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles».
Penso que esta foi uma palavra decisiva. E se, neste texto, Paulo VI ainda reuniu num mesmo «e» copulativo «pequenas comunidades e comunidades de base», o tempo imediatamente posterior desfaria confusões: as Comunidades de Base são o florir dessa «Nova Forma de Ser Igreja» (assim se titulava um documento o Episcopado Brasileiro de 1982) na América Latina, bem diferentes (na concretização) das pequenas Comunidades que, entretanto, surgiam na velha Europa. É a esta realidade pastoral (europeia) que se referem os documentos da Conferência Episcopal do Piemonte (Norte de Itália) sobre «As Pequenas Comunidades Eclesiais», e, sobretudo «O Serviço Pastoral das Comunidades Cristãs Pequenas», de 1982, da Conferência Episcopal Espanhola.
Em 1977, no 4º Sínodo dos Bispos, sublinhar-se-ia na linha do que Paulo VI escrevera em 1975, a importância das pequenas comunidades cristãs, dizendo-as de «talha humana», aptas para o «partilhar da Fé» e para a «educação no exercício do amor fraterno», definindo-as como «lugar de autêntica experiência da vida eclesial».
A Diocese do Porto tem também neste capítulo a sua história, não pequena, que está por escrever.
Para lá de toda uma série de iniciativas da responsabilidade quer do Centro de Cultura Católica, quer no âmbito das então ricas Semanas de Actualização Teológico-pastoral[1], salientaria dois momentos:
Em 1973, na criação da Paróquia da Senhora da Ajuda (Pasteleira), no Porto, o então Bispo Ferreira Gomes falou da «crise da paróquia sob a rajada do urbano», e afirmou que era «tempo de mudar pastoralmente; e agora ou mudamos ou seremos os novos pagãos, a caminho igualmente do fim» – acrescentou. E explicava de seguida: «Nestas condições, uma Igreja que se sente missionária, que tem o mandato deste mundo como ele é, que se sente pequeno rebanho , assembleia convocada e convocante, com missão principalmente de converter e cristianizar os cristãos ou, na alternativa, de passar aos bárbaros , esta Igreja ensaia novos caminho de acesso às inteligências e corações deste tempo, a nova linguagem no diálogo com o homem de hoje e os novos métodos de inserção da Graça na natureza deste mundo, que se quer personalizado e de dimensões humanas». Sempre considerei esta uma palavra profética que nunca teve sequência pastoral prática.[2]
Mas, logo em Setembro de 1974, numa célebre Carta à Comunidade, a Equipa Pastoral do Padrão da Légua, a cuja acção pastoral presidia o nosso conhecido Pe. Leonel, se escrevia assim: «Precisamos de encontrar urgentemente formas progressivas de vida comunitária intensa, onde cada um se conheça pelo seu nome, pelos seus problemas, pelas suas possibilidades e pelos seus dons, pela sua Fé. É necessário ultrapassar, custe o que custar, ainda que seja preciso arriscar tudo por tudo, a igreja-das-grandes-massas, onde cada um corre o perigo de andar a vaguear mais ou menos irresponsavelmente, em risco de se perder. É preciso que acabe definitivamente o escândalo de as pessoas se perderem dentro da própria Igreja. A igreja-das-grandes-massas nunca pode ser Comunidade»
Muito mais seria preciso referir, para a história ser completa. Mas não é aqui o lugar de a fazer.[3]
Entretanto, neste contexto, em Novembro de 74, sem ninguém dar por ela, nascia a Serra do Pilar. A nível da Igreja Universal, o processo comunitário era então imparável; a nível diocesano, no entanto, os tempos começavam a não ser de muita esperança, que o debate Comunidade/Paróquia anunciava já o seu fim e as experiências pastorais novas começavam a agonizar. E não foi fácil apostar aqui num trabalho pastoral apoiado naqueles pontos que, di-lo-iam os Bispos no Sínodo de 77, definem essencialmente a Igreja, para lá da sua concretização histórica (a consciência clara da vinculação a Cristo e ao Pai, no Espírito; a Palavra de Deus como modo de conhecer o desígnio de Deus sobre os homens; a celebração da Fé, sobretudo dos Sacramentos; a oração comunitária ou individual, à luz da Palavra de Deus; a fraternidade na Caridade; a consciência da missão da Comunidade no Mundo; o conhecimento da limitação própria e da complementaridade das outras comunidades; e a comunhão com o Papa e os Bispos).
Eu chegava aqui vindo de outros lugares e tarefas, com todas as inépcias, com a consciência de que tinha pela frente um trabalho pastoral de grande alcance e novidade, mas ao mesmo tempo de alto risco. Como de facto, Mas arrisquei.
Crescera e fora educado num mundo cheio de certezas onde paradoxalmente tudo estava e era posto em questão.
Menino bem comportado mas rebelde, tudo aceitara, colocando no entanto interiormente, perante quase tudo, um grande cepticismo. O meu primeiro grande drama terá sido esse exactamente: a difícil clivagem entre as minhas intuições (quase todas de tipo racional) e os códigos a que me via obrigado.
A Razão e o Instinto, a Força e a Graça, a Ordem e a Liberdade, não encontravam harmonia dentro da minha Natureza tumultuosa, domada apenas por alguns valores e muitos preconceitos. Porque eu era, já na altura, uma imagem viva de um inferno de contradições. Por isso, nunca me iludi na ilusão de uma serenidade que não tenho.
Uma educação de tipo iluminista privilegiara-me a racionalidade descuidando aquela parte do Homem que é feita de sensibilidade e afectividade (coração). Toda a minha vida tenho carregado este peso.
A minha primeira postura pastoral foi muito marcada por isso. Tudo me parecia mal, da Igreja à Sociedade, mas eu sentia-me impotente.
A descoberta dos outros e sua riqueza foi então para mim muito importante. Reunir companheiros pareceu-me o caminho
Para além deste caminhar que ia avançando no meu dia a dia, aconteciam as experiências mais exaltantes do meu viver: o Vaticano II, o Maio de 68 e o 25 de Abril. Não me trazendo certezas, deram-me no entanto contornos mais definidos da dificuldade do caminhar.
E tudo me ajudaria a perceber que a racionalidade não esgota o Homem, nem – só ela – lhe ilumina o caminho.
Esta questão entronca de resto com a da Fé: do Deus que se procura e tenho encontrado sobretudo no concreto do Homem. Porque «a maior glória de Deus é o homem».
Começara pois a aventura chamada Serra do Pilar, história que todos conhecem, uns melhor e outros pior, uns há muito tempo, outros só mais recentemente aqui chegados. Foi preciso vencer resistências de dentro e de fora, as desconfianças e tentativas de intromissão, as oposições e calúnias: o desmontar de um muito velho, e por vezes caquético, rosto de Igreja. João XXIII falara do seu necessário «aggiornamento» .
Depois, o construir a Igreja, aqui e agora: descobrir a vocação baptismal, o Mandamento Novo e as novas relações de Fraternidade, a dimensão do Serviço, a Liturgia (celebração da Fé), logo veio a urgência da educação da mesma Fé (o Catecumenato, principalmente), a inadiabilidade de o cristão assumir o seu papel na construção da Cidade dos Homens, Pedra vida de uma Igreja que se sabe e quer Sacramento Universal de Salvação. Tudo isto, de início, no contexto eufórico e difícil de um conturbado período político-social; depois, as crises de crescimento e da adultez, as habituações, os marasmos, os acomodamentos, as mortes de alguns dos melhores (o Santos, o Chico…), e a necessária e indispensável complexificação da vida que, longe de nos fazer esquecer o idealismo dos inícios, nos exigia uma cada vez maior lucidez. De resto, como poderemos escapar um certo ambiente de «invernia» eclesial e mesmo social?
As crises: «em certos momento da nossa existência surge a ameaça da perda, o medo do futuro, a tentativa de a gente se agarrar ao que já possui, e a resistência a abrirmo-nos à hipótese da mudança, à riqueza ou ambiguidade de um futuro sobre o qual no fundo não temos controle. E no entanto, é unicamente por estas experiências de perturbação e de ruptura que poderemos progredir para o crescimento e a perfeição» – assumo a afirmação de dois psicólogos, o casal Whitehead.
Foi aqui, na Serra do Pilar que eu aprendi isto: que é de ruptura em ruptura, de passo em passo, sempre abandonando o conquistado mas permanentemente em atitude de conquista, que se faz o caminho. Muitas vezes foi para mim muito dolorosa esta aprendizagem, e alguns de vós sabem-no particularmente. Sou europeu: e aprendi, aqui na Serra do Pilar, existencialmente, que uma das maiores características desta cultura que é a minha tem sido a de fazer ruptura e mesmo revolução, para, à frente, chegar a uma nova síntese.
(Homilia na Serra do Pilar, em 92.02.23, 7º Domingo do Tempo Comum)
[1] Este texto foi feito a partir de um outro, anterior, de 1984, escrito para os 10 anos da Comunidade. Nesse primeiro, neste lugar dizia-se assim: “Em 1972, o Centro de Cultura Católica promoveu pelas paróquias da cidade e arredores um assim chamado “Curso de iniciação pastoral” que, pela primeira vez entre nós e de forma sistemática, agitou a questão: A Igreja na cidade de amanhã. Pela primeira vez se falou da Igreja numa sociedade em transformação e da urgência da redescoberta da dimensão comunitária de uma fé pessoal. Vinha-se insistindo nas técnicas pastorais da Renovação Paroquial inspiradas no Movimento por um Mundo Melhor, haviam-se criado na década de 60 variadíssimas paróquias novas suburbanas e urbanas, e este curso, digamos o nome que se lhe deu, inquietou, agitou e levantou protestos”.
[2] A seguir a este parágrafo, o texto mais antigo dizia: “Ainda em 1973, o Centro de Cultura Católica organizou novo Curso de Iniciação Pastoral pelas paroquias do Grande Porto: Ao serviço da Comunidade Cristã. De novo a dimensão comunitária da Igreja. A nível pastoral concreto, o Padrão da Légua e a Zona Ribeirinha [do Porto], o Cerco do Porto, a Pasteleira, percorriam caminhos de pioneirismo tentando ir da paróquia tradicional à Comunidade, e, tema de debate aceso, começavam a sofrer processos de envolvimento”.
[3] Neste lugar acrescentava-se assim: «E no “Ideário… para a construção da Igreja da Zona Ribeirinha” [do Porto] podia ler-se que se tomava a opção de considerar a pequena comunidade como meio normal para a dimensão duma Fé pessoal e comunitária” (Outubro 1974). Mas quando, em 1976, se organizou uma Semana de Actualização teológico-pastoral sobre A Paróquia, comunidade fundamental da Igreja, era já outro o tom do discurso oficial. Mas houve debate, ainda assim. Na edição de 1978 da Semana de Actualização teológico-pastoral, Anunciar a Fé, hoje, assistiu-se já a uma exposição monocolor, e alguns tiveram mesmo de manifestar ruidosamente a sua alegria quando o Dr. Manuel Pelino (que contamos ter entre nós no Advento próximo) surgiu a defender a inadiabilidade pastoral da opção comunitária. Entretanto, morrera o Padrão da Légua, morrera a Zona Ribeirinha, a esperança das equipas (de presbíteros) pastorais fora-se, etc, etc, e aparecera já uma nova tábua de salvação pastoral que começou a dar para tudo e fez esquecer a anterior: chamava-se Catecumenado. E foi tudo a correr atrás da nova panaceia».