O Mar

Na cultura judaica, o mar (resquícios de Tiamat) é um inimigo de Deus. Por isso é que, no “novo céu e na nova terra [do Apocalise], o mar já não existirá” (Apo 21,1). 


No princípio, era o mar. E o mar chamava-se Tiamat, a deusa das mitologias babilónicas e suméricas (em francês ou em espanhol, o mar é um substantivo femimino: la mer, la mar), a mãe de todos os elementos. Os próprios deuses eram seus filhos. E os filhos ficaram todos a viver com ela, Tiamat, ou nela. Era em “a mar” que moravam os deuses: Júpiter, o pai dos deuses romanos, morava já aqui acima, na Galiza, no Finisterra.

“A mar” era serenidade e beleza, e a fonte de toda a vida. As suas águas tinham um movimento eternamente repetido — as ondas —, que gerava nos seus filhos, os deuses, algo de indeciso entre o talvez e o possível, a incerteza, a dúvida, e até o medo.

Mas “a mar” era a fonte de toda a vida: certamente muitos conhecem a famosa pintura de Boticelli, O nascimento de Vénus, ela a sair das águas do mar. E, por isso, os antigos gregos e romanos ofereciam “à mar” o sacrifício de cavalos e toiros, símbolos da fecundidade.

Foi de Tiamat, isto é, de ”a mar”, portanto, que nasceram os deuses: por isso é que, na Bíblia, antes da Criação, “o espírito de Deus já se movia sobre a superfície das águas” (Gn 1,2): nesse texto bíblico, Deus chamava-se Iavé.

Mas os filhos de Tiamat rebelaram-se contra ela. Até Iavé pôs regras a Tiamat: “Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus num mesmo lugar a fim de aparecer a terra seca” (Gn 1,9). E depois de ter visto que esta decisão foi boa, acrescentou: “se passas daqui ou dali, quebrar-se-á a altivez das tuas ondas” (Jb 38,11).

É também verdade que os vários filhos de “a mar” se zangavam entre si. Nesses casos, quem pagava as tespestades éramos sempre nós, os humanos: «— Amaina (disse) amaina a grande vela! — Não esperam os ventos indinados / Que amainassem, mas, juntos dando nela, / Em pedaços a fazem, cum ruído / Que o mundo pareceu ser destruído. / O céu fere com gritos nisto a gente / Cum súbito temor e desacordo.» Quem descreve assim é Camões (Lus, VI, 71/72).

Só percebido isto entendemos os dois textos bíblicos de hoje. Job é claro: Tu, Tiamat, a mãe ou “a mar”, podes vir até aqui, mas não passarás dacolá (Jb 38,11). E Marcos: Cala-te, mar, aqui quem manda sou eu! E o vento e o mar obedeceram-lhe!

Na cultura judaica, o mar (resquícios de Tiamat) é um inimigo de Deus. Por isso é que, no “novo céu e na nova terra [do Apocalise], o mar já não existirá” (Apo 21,1). De resto, já Jeremias dizia que “é o Senhor do Universo que agita o mar e que faz rugir as suas ondas” (Jr 31,35).

Por detrás de todo este episódio está, em todo o Médio Oriente, a ideia de que o mar é o detentor dos poderes do caos e do mal que lutavam contra Deus. Controlando a tempestade do mar, Jesus faz o mesmo que Deus e vence as forças do mal. Claro que, à data, se é que o episódio a teve, os discípulos ainda não tinham visto a verdadeira identidade de Jesus. Por isso perguntam “Quem é este?”.

Posto que, já no Antigo Testamento, se acreditava que só Deus podia controlar o vento e o mar, a pergunta dos discípulos — “Quem é este?” — levava implícita a confissão da divindade de Jesus. Por isso perguntaram “Quem é este…?”.

Há dias, um velho companheiro que não via há uns bons 50 anos, interpelou-me na rua…, eu olhei-o e ele não sei se afirmou se me perguntou: “És o Arlindo… que eu já venho atrás de ti há um bocado”. Eu parei, olhei-o, e disse: “Dá cá um abraço, Zé Moca!”.

“Quem é este homem a quem até o vento e o mar obedecem”. Ponham no fim da frase um ? ou um ! que é a mesma coisa.

Arlindo de Magalhães, 21 de Junho de 2015

A Caminho do Reino

Se olharmos com atenção para os Evangelhos, uma coisa nos aparece com clareza: Jesus falou pouco de si próprio. Ele falou muito mas foi do Reino de Deus.

Jesus anuncia o Reino que está eminente: “Convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo” (Mc.1,15). E Jesus proclamou-o não com muitas teorias, mas através de comparações simples, as parábolas. Através delas e das suas atitudes, Jesus foi dizendo que tipo de Reino vinha a anunciar: um Reino em que os Homens virão a ter a plenitude de tudo; em que qualquer dívida será perdoada e todo o mal será vencido; um reino em que os pobres, os famintos, os aflitos, os oprimidos, poderão enfim, levantar a cabeça; acabarão a dor, o sofrimento, a morte; um Reino difícil de descrever: falam melhor dele as parábolas da Nova Aliança, da semente que germina, da seara madura, do grande banquete, da festa real; um Reino de justiça completa, liberdade total, de amor a toda a prova, de reconciliação universal, de paz eterna. O Reino de Deus que será um tempo de salvação, tempo de plenitude, tempo de total presença de Deus: este será o Futuro! É para aí, para ele, que tudo caminha!

Aceitar que Deus está no nosso Futuro, no Futuro do Mundo, implica que se estabeleça uma tensão entre o presente e o Futuro, pois que o presente é uma preparação para o Futuro. É aqui que se enquadra a conversão.

Este mundo de hoje é imperfeito, está cheio de contradições e de injustiças, de males de toda a ordem. Está repleto de desumanidade, para poder ser aquilo que nós esperamos: a realização do Homem todo e de todo o Homem. Isto é: nós vivemos em tensão para o Futuro, acreditando que aquilo que Jesus começou, também ele o levará a seu termo, acabando a obra iniciada. Nele tudo será consumado, quando todas as coisas atingirem a unidade em Cristo.

Mas é muito importante que o Futuro não nos aliene. Não vivemos apenas para o Futuro como se o presente não existisse. O Futuro remete-nos para o presente a fim de o transformarmos e irmos, dessa forma, preparando e apressando o seu acontecer. O mundo presente deve ser, não só interpretado em função do Futuro, mas deve ser transformado em função do Futuro, já que Jesus não veio ensinar uma teoria sobre como interpretar o Mundo e o Homem, mas ensinar a transformar o Mundo e o Homem: criar o Homem Novo que todos ansiamos.

Por isso a construção do Reinado de Deus exige a crítica do tempo presente. Que Reino anunciamos? Situados na Europa dos ricos, acenam-nos com o bem-estar da sociedade de consumo como meta a atingir. Não nos dizem à custa de quem é ele conseguido, de quantos pobres e sem-abrigo, de quantos desempregados, de quantas dívidas externas, de quanta poluição, de quantas mortes. É o reino dos mais fortes, dos mais ricos, dos senhores do mundo. Mas não é este o Reino de Deus. No Reino de Deus os pobres e os marginalizados são preferidos, a justiça está acima da produção e a fraternidade acima do sucesso económico. A terra é um bem de Deus para todos e os poderes não poderão ser mais que serviços ao povo.

Na Cidade Nova haverá possibilidades para todos, em igualdade: menos a possibilidade de uns homens se porem acima dos outros homens, a possibilidade dos mais fortes explorarem os mais fracos, dos mais inteligentes os menos inteligentes, pois todos estarão convertidos e os dons de cada um serão um bem comum ao serviço de todos. É esta a nossa Esperança!

A paixão do Reino é a paixão pelos valores evangélicos do Perdão, da Fraternidade, da Partilha, da Vida, dos Novos Céus e da Nova Terra. Quando nós percebermos que isto é o mais importante da vida e que vale a pena perder tudo o resto por causa do Reinado destes valores, então estaremos a caminho da conversão. E estaremos convertidos quando, para além de percebermos que isto é o mais importante, nos apaixonarmos pela tarefa de o concretizarmos na nossa vida e o colocarmos no centro das nossas preocupações e dos nossos gostos (e desgostos).

Homília de 15.VI.2015 (extratos retirados do livro Padre Gaspar – A via do trabalho e da pobreza de Arlindo Cunha, presbítero)

Imagem: Gustave Moreau