Oferta e partilha

Sarcófago de Baebia Hertofila, Roma (séc. III d. C.)

Quando aqui cheguei em 1974, encontrei uns dinheiros muito esquisitos: vinham das muitas missas, das promessas, da venda de velas, etc. Já disse que tentei perceber quem guardava esses dinheiros e que destino tinham. Percebi depois que era a romaria do 15 de Agosto.

A comunidade refletiu: donde vem este dinheiro?, como se obteve? e para que serve?

E logo se decidiu: os sacramentos – missas, batismos e casamentos – nesta igreja e comigo deixarão de ser pagos. Teria de ser a Comunidade a pagar o necessário à sua vida, por oferta (dádiva livre) ou partilha (dádiva de parte de algo que cada um possui).

Foi então que descobrimos as cestinhas que ainda usamos, que não permitem se meta a mão para fazer trocos… e acabaram assim os peditórios. As cestas passam pela mão de todos. Na Comunidade, Oferta e Partilha, mas peditório não.

Começámos todos a aprender o que, um pouco mais tarde, o Chico disse assim: “Estaremos atentos às necessidades materiais que devemos prover e assim nos empenharemos por esta responsabilização, ou seja, uma disposição à Oferta e à Partilha, tradução da Fraternidade Cristã”. Eu próprio resumi doutra maneira: “Não é por falta de dinheiro que deixaremos de pregar o Evangelho”.

Era esse o tempo da Etiópia aqui ao lado, na escarpa da Serra, capital da fome e da pobreza, da violência e de uma enorme podridão humana; e passou-se o mesmo que em Betsaida aconteceu: “cinco pães e dois peixes saciaram 5.000 homens” (Lc 9, 10-17, Mt 14,13-21, Mc 6,34-44 e Jo 6,1-15: todos os evangelistas o noticiam). Começámos – na Etiópia aqui ao lado – por atender as crianças, depois passámos aos “Idosos, Reformados e Sós”, e todos os necessitados tiveram que comer até à chegada do Estado…, apenas com “cinco pães e dois peixes”! Coisas da riqueza dos pobres!

E a Comunidade? Aprendeu a partilhar o seu dinheiro ou outra ajuda, acorrendo às necessidades no seu próprio interior em que havia irmãos muito pobres. Ninguém pedia a ninguém e todos ofereciam o que podiam partilhar. E a mão direita não sabia o que fazia a esquerda! (Mt 6,1-18).

Portanto, vão-me deixar abrir a boca.
Agora aqui não há Peditório. Mas também não há Ofertório.
Há muito tempo que só pouquíssimas moedas…

Temos poucos gastos.  Mas o negativo das contas, é cada vez pior: a assembleia esquece que algumas coisas — as folhas dominicais já começaram a dizer que quando tal — necessitam da sua dádiva

E só os que verdadeiramente são pobres não podem contribuir.

Quaresma, penitência, oferta e partilha,

… um cigarro a menos por dia, um café igualmente, menos um euro diário no supermercado, daqui para ali vou sempre no meu carro quando decididamente melhor me faria ir a pé…

Como é que é possível tão grande negativo de contas se até a eletricidade não somos nós que a pagamos?, se… os casamentos, os batizados, dão tanto dinheiro? Pois é: “dinheiro pagão” a pagar a vida de uma pequena comunidade cristã! Penso que o Chico se pudesse vinha por aí abaixo!

Mas nem eu nem a “Comunidade da Serra do Pilar” permitiremos que a igreja-edifício de que somos responsáveis se transforme num “Salão de Festas e Eventos”, alugado para pagar as nossas despesas. “A minha casa será de oração e vós fizestes dela um covil de ladrões” (Lc 19,46). Este aviso tem mais de 2.000 anos.

Depois do que disse já no domingo passado, recordo uma coisa que Jesus disse também: “Julgais que eu vim trazer paz à Terra? Não; não a paz mas a divisão! Sou eu que o digo, …” (Lc 12, 51).

* * *

É verdade que algumas vezes Jesus perdeu a cabeça: “Raça de víboras” (atirava-se ele aos fariseus, Mt 3,17)! Como podeis falar de coisas boas, se sois tão maus?” (Mt 12,34). Ou ainda, visando agora os judeus: “Serpentes! Raça de víboras! Como podereis fugir à condenação da Geena [inferno]” (Mt 23,33). E, para acabar, “Sai-te da minha frente, Satanás…” (Mt 4,10) e “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno…, dirigindo-se a todos os da esquerda – pessoas e povos – no Juízo último (Mt 25,41).

Outra vez, entrou no templo de Jerusalém, fez um chicote de cordas e, gritando, expulsou todos os que ali vendiam e compravam ovelhas e bois, cambistas e moedas, bancas de vendedores de pombas (Mt 21,12 e Mc 11,15-17), gritando, conta João, “tirai-me isso daqui e não façais da casa de meu pai uma feira” (Jo 2,16) nem “um covil de ladrões” (Mc 11, 15-17).

Se ele, algum dia, entrava nesta igreja durante um desses muitos casamentos que aqui se fazem, não tenho dúvida, pegava novamente nas cordas. E, no fim de tudo, acrescentaria: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro…” (Mt 6,24).

Arlindo de Magalhães, 8 de março de 2020

Partilha

1.

Refiro-me ao célebre sumário da vida dos primeiros cristãos; “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, ao partir do pão, à oração…  e distribuíam por todos o dinheiro, conforme as necessidades de cada um”” (At 2,42-45). “Julgais que se pode comprar o dom de Deus com dinheiro?” (At 8,29).

Eu sei que este “partir do pão” se refere hoje, unicamente, à Eucaristia. Mas o “partir do pão” não é a única riqueza da Comunidade: “distribuíam por todos o dinheiro” (At 2,45). O pôr em comum (algum) dinheiro era também sinal visível da fraternidade: “.

Mas, rapidamente na Igreja primitiva deixou de ser assim: o dinheiro entrou pela Igreja dentro e estragou-a logo. 

Quando eu cheguei aqui, à Serra do Pilar, botavam-se muitas missas, ao domingo eram cinco!, e à semana incontáveis, o que dava muito dinheiro para a grande festa do 15 de Agosto! Tinham sido os monges que, na Idade Média, haviam colocado muitos altares laterais que nas Igrejas primitivas não existiam, muitos altares, à direita e à esquerda das naves das igrejas porque isso dava muito dinheiro: permitia que, para isso, houvesse muitas missas.

Na Igreja, o dinheiro foi e é sempre um problema: quando a mais e quando a menos.

Na Igreja só deverá haver dinheiro que seja fruto de uma partilha efetiva daqueles que a integram.

Na Igreja só é necessário o dinheiro de que necessitam as tarefas da evangelização, dos serviços pastorais e dos mais pobres.

Estes três princípios têm servido, desde que aqui me encontro, na Serra do Pilar.

Em 1987, o Chico — um dos nossos primeiros maiores [morreu em 1990] — escreveu e leu assim para a Comunidade, numa assembleia:

«como nunca o dinheiro foi [nossa] preocupação…, isto parece um verdadeiro paradoxo, mas é verdade. Porque a Igreja precisa apenas do indispensável para dispor de alguns bens materiais e pagar o serviço da ação pastoral [a Irmandade de Na. Sra. do Pilar nunca entregou o seu saldo positivo que, na altura, atingia algumas dezenas de contos). É verdade que, por várias vezes, o saldo tem sido negativo, mas é nesta pobreza que se tem salientado a riqueza das nossas relações, que ultrapassam estas dificuldades materiais e em nada afetam a nossa Alegria Comunitária

Mesmo conscientes das atuais necessidades materiais, nós continuamos a dizer NÃO a toda a qualquer espécie de apelos ou pedidos de dinheiro à Comunidade. Sabemos bem que há comunidades ricas que vivem lado a lado, que comungam a mesma fé e que por isso mesmo não compreendemos como estas comunidades não têm solidariedade para com as comunidades pobres, auxiliando-as materialmente. Se as próprias comunidades não partilham entre sio, se os cristãos não veem e exemplo nas estruturas da Igreja, se dentro do próprio Clero, nós vemos no dia a dia padres a viver abastadamente ao lado de Padres a viver pobremente, sem Espírito cristão comunitário, forçosamente concluímos como é difícil e confuso para nós, leigos, aprender a partilhar, aprender a ser verdadeiros cristãos. 

Uma Comissão Administrativa, na Igreja, não pode mais ser um ”serviço de contabilidade”. Muito mais do que isso, ela deve ter uma “ação evangélica”.»

Foi nesta linha que, com o crescer da comunidade, nasceu a preocupação de refletir: donde veio o dinheiro?, como se obteve?, para que serve? Nesta preocupação da purificação da vida material comunitária, publicou-se na Páscoa de 77 o documento “Dinheiro e Partilha”.

Neste domínio, alguns passos foram dados. Os sacramentos deixaram de ser remunerados e assim a receita passou a ser exclusivamente obtida das ofertas espontâneas dos membros da comunidade…

“O dinheiro da Igreja não pode ser filho da injustiça, muito mais se é viciado logo na sua proveniência”. 

Somos cristãos e como tal assumimos conscientemente o Caminho que nos está a conduzir a um Reino de Verdade, de Justiça e de Paz. Neste crescimento e neste empenhamento, fruto do Espírito de Deus que nos ilumina e conduz, nós acreditamos que cada vez mais esta Comunidade se tornará uma autêntica Família Cristã, unidos pelo mesmo Amor no Senhor Jesus. Seremos verdadeiros irmãos na Fé. Sentiremos a Alegria e a Graça de viver em Comunidade. Então, como membros de uma Comunidade de Discípulos de Cristo, teremos de assumir as responsabilidades que nos couberem individualmente e em grupo. Estaremos atentos às necessidades materiais a que devemos prover e assim nos empenharemos por esta responsabilização, ou seja, uma disposição à Oferta e à Partilha, tradução desta Fraternidade Cristã.» 

2.

Resumindo:

1. Na Igreja, o dinheiro só vale o que exprime e possibilita.

2. No entanto, com dinheiro ou sem dinheiro, jamais o Evangelho deixará de ser pregado e de haver “pão partido”

3. Os proventos necessários à sustentação económica da Comunidade devem provir única e exclusivamente da partilha espontânea da mesma Comunidade.

Desde logo, no princípio, estas 3 alíneas foram tratados como pontos de honra da Comunidade. E têm de continuar a sê-lo!

Desde logo, a Comunidade nunca mais quis dinheiro pagão (de velas e velinhas, missas e missinhas, promessas e promessinhas), apesar de, por vezes, ter chegado quase a cair em pecado. E a comunidade percebeu que tem de viver com o dinheiro partilhado pelos irmãos. Ponto final parágrafo. 

Eu ainda sou do tempo do “se não há que comer, não se come ou come-se menos!” Nunca deix[ar]ei fazer peditórios; viveremos apenas e só de ofertórios. Para isso se arranjaram aquelas cestinhas que passam ainda hoje de mão em mão, e se construiu aquele móvel, não!, aquele fixo (uma pedra por cima) a recolher e guardar ofertas. Para tal começámos já a gastar menos papel. Para já… 

No tempo que corre, ano 2020, o dinheiro da Comunidade não sobeja, nem chega sequer para pagar as despesas da Comunidade com o dinheiro pagão que nos chega de casamentos e batizados, …E é para isso que eu tenha de chamar a atenção a isto. O que continuarei a fazer durante esta Quaresma.

Arlindo de Magalhães, 1 de março de 2020

A caminho da Páscoa

1. Páscoa é uma palavra que vem do grego paska > passar. Assim fez Iavé, impulsionando o seu povo a passar do Egipto e da escravidão para a liberdade. Com a sua morte e ressurreição, Jesus passou deste mundo ao Pai.

Na Páscoa judaica do tempo de Jesus celebrava-se o êxodo ou saída do Egipto, no dia 14 do mês de Nisán (março-abril), o primeiro do ano, data que coincidia com a noite da primeira lua cheia da Primavera. 

”Este mês — disse Deus a Moisés e Aarão na terra do Egipto  — será para vós o primeiro, o primeiro dos meses do ano …” (Ex 12,1-11). “Guarda o mês de Abib [depois Nisan] e celebra a Páscoa em honra do Senhor, teu Deus. Foi no mês de Abib que ele te tirou do Egipto, durante a noite. Imolarás ao Senhor, em sacrifício pascal, gado miúdo e graúdo, no santuário que ele tiver escolhido tiver escolhido para estabelecer aí o seu nome” (Dt 16,1-2).

Nessa noite, as famílias, cada uma por si, sacrificava um cordeiro, recordando assim a noite em que Israel se livrou da servidão do Egipto e à noite, numa ceia familiar, comia-se o cordeiro e alimentos amargos (alusão à opressão do Egipto) e doces (riquezas da terra prometida).

Nessa noite, Deus feriu os primogénitos egípcios e “passou à frente“ das casas de israelitas cujas ombreiras e padieiras estivessem marcadas com o sangue do cordeiro já sacrificado. “Aquele dia será para vós um memorial” (Ex 12,1-14).

“Observa (também) a festa dos ázimos (na mesma noite do sacrifício pascal, diz também Moisés): comerás, durante sete dias, pão sem fermento, durante o mês de Abib: Foi nesse mês que saíste de Egipto, … Trabalharás durante seis dias mas descansarás no sétimo, mesmo no tempo da lavra e da ceifa” (Ex 34,38.21);

e guardarás “… ainda a festa das Tendas, durante sete dias, quando recolheres os produtos da tua eira e do teu lagar (referência ao vinho). (…) Alegrar-te-ás durante a festa com os teus filhos e filhas, os teus servos e servas, com o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que estiverem dentro das portas da tua cidade. Festejarás esses sete dias em honra do Senhor, teu Deus… Faz a festa com alegria!” (Dt 16,13-15.17).

2. Chegados a Jerusalém, os discípulos foram rápidos a perguntar a Jesus “onde queres que façamos os preparativos para celebrar a Páscoa? (Mt 22,17) … e Jesus …: Ide preparar-nos o necessário pra a ceia pascal” (Lc 22, 8). 

“Chegou o dia dos Ázimos em que devia sacrificar-se o cordeiro” (Lc 22,7). Ao cair da tarde, ele e os Doze)” (Mt 26, 20). “Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco! … Pegou então num cálice… depois no pão… (Lc 22, 16-20). 

3. Se, depois da Ressurreição, os primeiros cristãos (ainda se não chamavam assim) judaicos continuaram ou não a celebrar a Páscoa judaica —  é questão que não nos interessa aqui, mas sabemos que sim, que se celebrava —; e que os primeiros cristãos  começaram logo a celebrar a Páscoa cristã, disso é que não há dúvida, foi logo, não anualmente mas semanalmente. Era o dies Domini (dia do Senhor) > dia domingal > domingo: o grupo reunia-se para “a fracção do pão” (At 2,42).

Portanto, se Israel celebrava uma Páscoa anual, os cristãos começaram logo a celebrá-la em todos os “primeiros dias” de todas as semanas (At, 20,7). Mas podemos admitir que a fração do pão de que se fala logo no princípio dos Atos dos Apóstolos (2,42) se tivesse enriquecido mais, uma vez por ano, numa celebração anual da Morte/Ressurreição de Jesus! 

A festa da Páscoa cristã foi fixada— pelo Concílio de Niceia, no ano de 325 — no primeiro domingo a seguir à lua cheia, depois do equinócio da Primavera. Oscila, portanto, entre o 22 de Março e 25 de Abril.Não se esqueça que esta viagem que vimos fazendo pelo Calendário da Liturgia romano-europeia começada com o Advento de 2019“, nos trouxe já, primeiro do Advento-Natal até à Páscoa; depois, passando com Jesus pela Galileia, até aqui. Celebrada a Páscoa acabaremos a perceber o que é o Tempo adulto, o Tempo a que Liturgia chama Comum, Tempo Comum, já a caminho do fim.

Sal

Motoi Yamamoto | Aigues Mortes (2016) https://www.designboom.com/art/motoi-yamamoto-salt-floating-garden-labyrinth-aigues-mortes-france-05-23-2016/

Começou logo a percorrer toda a Galileia, cidades e aldeias, a fazer e refazer a aliança entre Deus e o povo, a anunciar a Boa Nova, a curar doenças e enfermidades; mas fazia também visitas, visitava este e aquela, percorrida logo começou a percorrer toda a Galileia a anunciar a Boa Nova, curando ao povo todas as suas doenças e enfermidades; mas fazia também visitas, visitava este e aquele;

de “chicote na mão” (Jo 2,15), já se atirou ao Templo de Jerusalém que era um feira,
e já apresentou as bem-aventuranças,
dirigiu-se então aos discípulos e disse-lhes vós sois o “sal da terra”.
Que quer isto dizer?

Que é o sal e que saberei eu dizê-lo?

O sal é um eficacíssimo conservante (há milénios que se lhe deve a salubridade prolongada de alimentos que, sem ele, ter-se-iam perdido), o sal rouba água, seca tudo (o que reduz a vulnerabilidade de ataques bacterianos), mas — como sabemos — o sal tem muito a ver com a cozinha, com a saúde, com o equilíbrio do organismo humano, nomeadamente com a tensão arterial, etc, etc, etc.

O sal era muito abundante na Palestina, sobretudo no Mar Morto (morto porque nele, a profusão de sal era tal que matava a vida animal e vegetal).

Depois do exílio, quem fizesse ofertas a IAVÉ no Templo de Jerusalém, devia salpicá-las com sal. Porquê? É que, com Deus, fazia-se assim uma “aliança eterna”: “O Senhor, Deus de Israel, deu para sempre o Reino a David e seus filhos, em virtude de uma aliança perpétua” (2Cr 13,5)… e, portanto, sal para significar essa “aliança perpétua”.

É que o sal puro não perde o seu sabor; o impuro, sim, pode perder a salinidade.

Por isso é que, no Batismo, se metia na boca do batizado uma pedrinha de sal? “PARA SEMPRE!”. Claro que, modernamente, se percebeu que não era nada higiénico e sal saiu do Ritual.

Do mesmo modo, quando Jesus disse aos discípulos “vós sois o sal da terra” queria dizer-lhes vós sois a aliança de Deus com o povo vivo.

Arlindo de Magalhães, 9 de fevereiro de 2020

Bem-aventuranças

Já atrás vimos que, uma vez batizado, Jesus saiu da água e logo se rasgaram os céus, e se viu o Espírito de Deus descer e vir sobre ele o Espírito, como uma pomba E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha graça.»

Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto.

E ele logo começou a percorrer toda a Galileia a anunciar a Boa Nova, curando ao povo todas as suas doenças e enfermidades; mas fazia também visitas, visitava este e aquele,e mergulhava até na vida da própria sociedade.

Por exemplo, os pobres e seu não-pão (Lc 9,10…)

Não esquecendo os melhores tempos e vultos do Antigo Testamento, temos de concordar que Jesus foi o maior defensor dos pobres. Depois, a eclesía, isto é, os primeiros cristãos ouviram que: “toda a minha fortuna para sustento dos pobres” (1Cor 13,3). E se a Igreja quer ser hoje fiel às suas origens, precisa de ser defensora dos pobres do mundo. Nós temos de o ser também. Em todos os lados os pobres pedem ao mundo e particularmente à Igreja, que percebam o que aconteceu naquele tempo, “num lugar afastado … de uma cidade chamada Betsaida” (Lc 9,10) e mais tarde na escarpa de uma “Etiópia aqui ao lado”, lugares onde se multiplicaram o pão, os peixes e muitas coisas mais. Pouquíssimo pão e poucos e pequeníssimos peixes para multidões. Muitas vezes e em muitos lugares isso aconteceu: os pobres comeram e ainda sobrou! Ali também!

Outra questão em que Jesus interveio (Jo 2,13-16).

Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo vendedores de bois, de ovelhas e de pombas, cambistas nos seus postos e muitas coisas do género ainda que. Então, fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: «Tirai isso daqui. Não façais da Casa de meu Pai uma feira.»

“A forma como Jesus atacou diretamente o Templo como antro de materialismo, quando finalmente levou a sua mensagem para Jerusalém, determinou o seu fim”, escreveu há muito pouco tempo Frederico Lourenço. Nunca tinha pensado nisso, mas acho que tem razão.

Após tudo isto, batizado, conhecido o mundo à sua volta, percorridas “cidades e aldeias,… curadas enfermidades“ (9,35), visitados ricos e pobres, crentes e não crentes, depois de intervir no mundo político-religioso um dia, sentou-se num monte e começou a ensinar o povo, dizendo: “Felizes os pobres em espírito”, porque é deles é o Reino dos Céus”! São oito estas Bem-aventuranças apontadas por Mateus (6,20-26). Mas a primeira como que resume todas as mais: “Felizes os pobres…”!

Lucas (6,20-26) é mais concreto nas suas Bem-aventuranças que têm uma maior dimensão; mais preocupado com os pobres reais, desestabilizando a escala dos falsos valores que já naquele tempo enchiam a humanidade. Jesus terá mesmo soltado quatro “ais!” contra os ricos, como Lucas diz que sim?

E, afinal, o que é uma Bem-aventurança?

Arlindo de Magalhães, 2 de fevereiro de 2020

Notícias

Egon Schiele, ‘Umarmende’ 1918

Vimos, há oito dias, que Jesus “começou a percorrer toda a Galileia [não ficava só a andar por ali, de trás para a frente]…, curando doenças e enfermidades do povo” (Mt 4,23). Numa só palavra, percorria “cidades e aldeias,… curando enfermidades“ (9,35). A notícia é de Mateus.

Marcos dá, porém, muito mais notícias, apesar de o seu Evangelho ser o mais pequeno dos 4. Que Jesus entrou logo na Galileia a curar um possesso na Sinagoga de Cafarnaúm (1,21-28), depois a casa de Pedro a sanar-lhe a sogra (1, 29-31); depois ainda, “à noitinha, ao pôr do sol, trouxeram-lhe todos os enfermos e possessos da cidade…, curou muitos enfermos” (1, 32); já não sei onde, veio ter com ele um leproso (1,40-45), voltando a Cafarnaúm, procurou-o um homem que estava na Sinagoga e tinha uma mão paralisada (3, 1-6), depois um leproso (1,40), também um paralítico (2.1) e um possesso do demónio (certamente uma doença epilética) em Gerasa (5,1…); chamaram-no  à casa de Jairo que a sua  filha “estava a morrer” e ele lá foi, também a casa de uma mulher com fluxo de sangue (5,21…); mais adiante, em Genesaré, “nas aldeias, povoações ou campos, onde quer que entrasse, colocavam[-lhe] os doentes nas praças… e todos os que o tocavam ficavam curados” (6,56). Ainda em Genesaré atende um surdo-mudo (7,31-37), em Betsaida um cego de nascença (8, 22-26), um jovem epilético em Cesareia de Filipe (9-14…)

E no Evangelho de Lucas? Lucas era médico. E o Sr. Dr. Lucas deixa-nos notícia de bastantes curas de Jesus: a de um leproso (5, 12-14); a de um paralítico (5, 17-25), a do homem que tinha uma mão paralisada (6,10), a do servo do centurião (7,1-10), da mulher com fluxo de sangue (8,40-48), de um jovem paralítico (9, 37-43); uma mulher que sarou num Sábado, imagine-se! (13,10-16), e mesmo com um hidrópico noutro Sábado (14,1-4), ainda dez leprosos (17,11-19), o célebre cego de Jericó (18,35-43)…

… mas mais, até ressuscitava: o filho de uma viúva (7,11…) e a filha do chefe da Sinagoga (8,49…) [esta palavra ressuscitar não significava o que hoje exprime; significava, na maior parte dos casos, a “recuperação” daquilo a que o povo chamava uma “perda dos sentidos”].

Lucas apresenta um Sr. especial, Zaqueu: é o chefe de publicanos e é rico. Em Jericó todos sabem que é um pecador. No entanto, procura ver Jesus mas é baixo de estatura e procura … não sabe bem o quê. Corre para se adiantar à multidão, sobe a uma árvore como faria um puto, é um homem importante, mas isso não conta… Jesus descobre-o, procura-o com o olhar e diz-lhe: “… hoje mesmo na tua casa …” (Lc 19,1-10).

E no Evangelho de João: de um cego de nascença (9,1…) e a Ressurreição de Lázaro. Só aí disse: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Crê em mim! Mesmo que ele tenha morrido, não morrerá para sempre!” (11,1-25)

Resumindo: os primeiros que Jesus curou, procurou-os ou atendeu os que vinham de tantas “cidades e aldeias”, finalmente passou ele a procurá-los. A muitos deu saúde, é verdade, conforme era possível naquele tempo, não havia nem misericórdias, nem hospitais, nem Inemes, nada, nem injeções, nem pastilhas, nem vacinas…, mas a todos anunciava a Boa Notícia.

Mateus é o que melhor explica tudo: “começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando entre o povo todas as doenças e enfermidades. A sua fama estendeu-se por toda a Síria e trouxeram-lhe todos os que sofriam de qualquer mal, os que padeciam doenças e tormentos, os possessos, os epiléticos e os paralíticos; e Ele curou-os. E seguiram-no grandes multidões, vindas da Galileia, da Decápole, de Jerusalém, da Judeia e de além do Jordão” (4, 23-25).

Jesus terá aprendido estas práticas numa Universidade Católica, pergunto eu?

Percorrer a Galileia

Ivan Mestrovic
Archangel Gabriel | Brooklyn Museum Catalogue published in 1924

Desde a discussão que teve com os “doutores do Templo” — “Filho porque fizeste isto? Não vês que eu e o teu pai andávamos aflitos à tua procura?” (Lc 2,46-48) — não sabemos nada de Jesus. Sabemos, sim, do que falámos há oito dias, o encontro com o primo João, no rio Jordão. A seguir “cheio do Espírito Santo, retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve 40 dias (Lc 4,1), mas logo “impelido pelo Espírito, voltou para a Galileia (4,14).

Imediatamente, se pôs a andar, a percorrer a sua terra, a Galileia.

Marcos foi — no Evangelho que escreveu, o mais pequeno dos 4 — o mais descritivo, muito narrativo, a explicar que Jesus foi e voltou, à beira-mar ou pelos montes, passando por aldeias, vilas ou campos…

“Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia a proclamar o Evangelho de Deus” (1,14)… Entrou de seguida em Cafarnaúm onde foi à Sinagoga (1,21), a seguir foi a casa de Simão e André (1,29); e, de madrugada, ainda escuro, levantou-se e foi para um lugar solitário (1, 35)…

Voltou depois a Cafarnaúm (2,1)…, saiu de novo para a beira-mar (2,13)…, num dia de sábado, indo Jesus através das searas (1,23)…, voltou à sinagoga (3.1), retirou-se para o mar (3,7), dali foi  para a casa dos familiares (3,21) …

“De novo começou a ensinar à beira-mar” (4,1)…, passou depois com os discípulos para a outra margem do mar (4,35)…, “e dali voltou à sua terra, Nazaré (6,1)“; na viagem, ele e os discípulos “foram então para um lugar isolado” (6, 30.32); depois, “aproximaram-se de Nazaré” (6,53) e andaram por “aldeias, cidades e campos” 6,56).

Partindo dali, Jesus foi para a região de “Tiro e Sídon” (7,24). “Tornando a sair da região de Tiro, veio por Sídon para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole” (7,31).

“Chegados a Betsaida” (8, 22), “partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia” (8,27); “seis dias depois tomou consigo Pedro. Tiago e João, só eles, e levou-os a um monte elevado…” (9,2).

Depois atravessaram a Galileia, sem que ninguém o soubesse; Jesus queria que ninguém o soubesse…, chegaram a Cafarnaúm (9,33)…, “saindo dali foi para a região da Judeia, para além do Jordão (10,1)…

Com tudo isto, “iam a caminho, subindo para Jerusalém… começou a dizer-lhes: ‘o Filho do Homem vai ser entregue aos sumo-sacerdotes e aos doutores da Lei, e eles vão condená-lo à morte e entregá-lo aos gentios. E hão de escarnecê-lo, cuspir sobre ele, açoitá-lo e matá-lo’” (10,32.34).

O evangelho de Marcos, que é o mais pequeno de todos, noticia estas 25 andanças feitas por Jesus.

Mateus dá notícia do mesmo; mas não é tão narrativo; é, sim, mais rico de doutrina. Veremos.

E a informação é melhor: “Tendo ouvido dizer que João Baptista fora preso, Jesus retirou-se para a Galileia. Depois, abandonando Nazaré, foi habitar em Cafarnaúm, cidade situada à beira-mar; … A partir desse momento, Jesus começou a andar e a anunciar: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu” (4,17).

“Caminhando ao longo do mar (4,18), … começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando entre o povo todas as doenças e enfermidades… e seguiram-no grandes multidões…” (4,23.25). E ao ver a multidão, subiu a um monte e, depois de se ter sentado, os discípulos rodearam-no, e ele tomou a palavra e começou a ensiná-los: “Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 4,23).

Caminhar à procura dos que querem ouvir ou encontrar aquele que anuncia a Boa Nova, sobretudo aos pobres

Mas que grande aula de Teologia Pastoral, esta de Marcos e Mateus!

Arlindo de Magalhães, 20 de janeiro de 2020

João Baptista

Linda Miller, ‘Jordan River’

Quem é João Baptista?

Filho de Zacarias e Isabel, os pais chamar-lhe-ão João (Lc 1,5-25). Após o seu nascimento, o pai profetizou com estas palavras: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que visitou e vai redimir o seu povo… E tu, menino serás chamado Profeta do Altíssimo porque irás à sua frente a preparar os seus caminhos…” (1,68-79). O Pai cantou-lhe um Benedictus (Bendito).

Já rapaz maduro, após um longo retiro no deserto, foi-se para os lados do rio Jordão, onde batizava muita gente, com um “batismo de penitência”. Flávio José, historiador judaico e depois romano refere a sua atividade por volta dos anos 27/28.

“Veio então Jesus da Galileia ao Jordão ter com João” onde discutiram quem era o maior.  João ainda dirá que ele – o primo – é que “batiza no Espírito Santo e no fogo” (Mt 3,11),pois que ele   é também “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”  (Jo 1,29)!

Mas “uma vez batizado, Jesus saiu da água…” (Mt 13-16).

Enquanto isto, aparição de João Baptista causou uma crescente movimentação popular: João censurava abertamente o adultério do tetrarca Herodes Antipas, gerando-lhe uma grande inquietude. Pô-lo a ferros (Lc 3,20) e depois mandou que o decapitassem (Mc 14,1-12). Quando Jesus o soube… (Lc 7,24-35)… “Tendo ouvido dizer que João Baptista fora preso, Jesus retirou-se para a Galileia” (Mt 4,22).

«Da cadeia, João ainda enviou a Jesus de alguns dos seus discípulos a perguntar-lhes se efetivamente ele era o Messias: “és tu aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”. Jesus respondeu-lhes: Ide contar a João o que vedes e ouvis: Os cegos veem e os coxos andam…, e a Boa Nova é abençoada os pobres”» (Jo 11,3-5)

João procurava levar os homens ao arrependimento e conversão, tendo em vista os tempos messiânicos que estavam a chegar: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo! (Jo, 1,29).

O batismo de Jesus no Jordão é um dos momentos essenciais na vida de Jesus: assinala o fim do silêncio da sua vida — dos 12 anos (Lc 2,42) chegar ao Jordão ­(3,1) —  e inaugura a sua vida pública: do batismo do Jordão ao dia em que, como vítima, será a pedra angular de um mundo novo: a morte.

Esclarecidos os primos — tu e tu —, executado o mais velho, o mais novo que até então andara calado lá por Nazaré, vai começar uma tarefa que “modificou a religião do seu e nosso tempo. Lutou contra o sofrimento, deu resposta ao plano de Deus. E anunciou um Reino de Deus muito mais baseado no humano que no religioso: aliviar desgraças e dores, criar felicidades e espalhar boas notícias” (García Lorca – Cristo).

Continuamos. Jesus vai entrar em cena.

Arlindo de Magalhães, 12 de janeiro de 2020

O Natal do Oriente

E a gente não sabe que mais admirar: se a Manifestação de Cristo ao Mundo, ou se a Realidade do acontecimento que foi o seu nascimento.

Talvez seja necessário explicar que a festa da Epifania é o Natal do Oriente. O seu aparecimento aconteceu mais ou menos do mesmo modo e ao mesmo tempo que o do Ocidente. Mas o primeiro foi o do Oriente, aquele que, pelo cômputo do tempo das astronomias orientais, nomeadamente a egípcia, se assentou em 6 de Janeiro; era a festa da manifestação dO Filho de Deus (epifania, algo que se manifesta, um relâmpago por exemplo, do verbo faínô > tornar visível). Era a celebração de um mistério: Deus-Homem! Pode lá ser?, perguntavam ainda os seguidores de Ario (256-336), pai do arianismo (o presbítero ariano, nascido em Alexandria do Egipto, defendia que Jesus não era “Enviado do Pai…” nenhum!

No Ocidente — cuja cultura viria a inventar tudo, armas e relógios, computadores e armas atómicas —, o Natal foi concebido como a celebração do que aconteceu em Belém (a manjedoura, o boi e a vaquinha, os pastores…), o nascimento do Filho de Deus feito homem em 25 de dezembro. Mas que fazer, no ocidente, no dia de Natal do oriente, a 6 de Janeiro ? Oh!…, a chegada dos Magos. Antigamente até se dizia que era a festa “de Reis ou dos Reis”… com respectivo Bolo-rei!

Liturgia mistérica no Oriente, Liturgia episódica no Ocidente!

Mas as Igrejas, tão diferentes, eram também muito unidas, do Oriente ao Finisterra do Ocidente, de tal modo que tiveram, cá e lá, a audácia de enfrentar o mundo pagão circundante, lá (na Grécia) e cá (no império romano), mas de modo diferente?

Uma Igreja não monolítica nem monocórdica mas atenta às sugestões várias que lhe vinham de fora e de dentro, foi capaz de ser luz, de evangelizar, atendendo aos povos, suas culturas e costumes, seus ritmos festivos e suas necessidades? E, em todos os Povos, muitos convergiram para Cristo, como os Magos do Evangelho, através do seu Sinal ou estrela.

Depois Oriente e Ocidente: igreja ortodoxa e Igreja romana. Que na romana (agora toda partida: Adventista, Católica, da Reforma, etc) e na Ortodoxa, a Luz de Cristo que é a Igreja (Vaticano II) possa ser recebida por todos nós. Só assim, “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos” (Jo 8, 31). 

Arlindo de Magalhães, 5 de janeiro de 2020

As obras veem-se

Lourdes Castro : Grande Herbário de Sombras. Fototipia, 1972

João (o Batista) teve notícia do que Jesus, seu primo, andava a fazer. Enviou, portanto, discípulos seus a perguntar-lhe: “És tu Aquele que há de vir ou devemos esperar Outro?”. João Baptista não entendia muito bem o que o primo andava a fazer ou a dizer.
E Jesus respondeu-lhes imediatamente: Os cegos vêm, os coxos andam, os leprosos atendem-se e limpam-se, os surdos ouvem, até os mortos ressuscitam! E aos pobres anuncia-se a Boa Nova (o Evangelho)!
Mas Jesus não fazia só isto. Comia com os pobres, visitava os doentes, acolhia publicanos e enfrentava ricos e pecadores, fossem eles Zaqueus ou fariseus, Madalenas, Martas e Marias, Lázaros e Simãos, viúvas e samaritanas…
Mas João não esperava um Messias como o que lhe diziam ser o seu primo; tinha a sua esperança posta unicamente num Messias a lutar contra o pecado, esperava um Messias justiceiro, ameaçador, castigador dos pecadores, dos desencaminhados, dos incrédulos… “Raça de víboras! – chamou ele aos fariseus – Quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir?”.
Sempre foi assim: ontem e hoje nos mundos religiosos, fala-se muito, prega-se muito mais, escreve-se até para ninguém ler. Isso acontece especialmente nos ambientes religiosos e eclesiásticos.
E Jesus modificou a religião do seu [e nosso] tempo. Lutou contra o sofrimento, deu resposta ao plano de Deus. E anunciou um Reino de Deus muito mais baseado no humano que no religioso: aliviar desgraças e dores, criar felicidades e espalhar boas notícias. Não nos entra também a nós, na cabeça, que a solução não está em discursos, argumentações, teorias e dogmas.
O que desconcertava a cabeça de João não era o que Jesus dizia, era o que fazia, as suas obras, não as suas palavras.
As palavras, a maior parte são paleio, ouvem-se; as obras veem-se.

Arlindo de Magalhães, 15 de dezembro de 2019

Vigilantes

Robert Rauschenberg | ‘Calendar’ | 1962

O ano litúrgico começa hoje com o mito do fim do mundo: “Haverá sinais do sol, na lua e no nas estrelas: e n Terra angústia sobre os homens! (Lc 21,25)”

Não é possível saber com segurança se Jesus disse estas palavras que o evangelho hoje recorda: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas e, na terra, angústia entre as nações. Os homens morrerão de pavor, na expectativa do que vai suceder ao universo, pois as festas celestes serão abaladas” (Lc 21,25-26). Mas já sabemos o que já no Japão, na Amazónia e mo Pinhal de Leiria ou da Califórnia …

Jesus não quer assustar as gentes com o mito do fim do mundo devastador. Segundo Lucas, pediu aos discípulos que estivessem vigilantes, e não se deixassem dominar pelo sono. Foi o que disse na trágica noite da paixão: “— Tende cuidado convosco, não suceda que os vossos corações se tornem pesados…” (Lc 21,34-36).

… Mas quando foi para junto dos discípulos encontrou-os o dormir, informa Mateus; e Lucas dir-lhes-ia que “os homens morrerão de pavor, na expectativa do que vai suceder no Universo: “as forças celestes serão abaladas” (Lc 21,26).

Mas diz-lhes tambem: “quando estas coisas começarem a acontecer, cobrai ânimo e levantai a cabeça. A vossa redenção está próxima” (Lc 21,28).

Viver com Jesus não é viver assustado de uma possível desgraça ou vigiar um temível ladrão.

Aquele que entende um Jesus assim não crê nele. Jesus não nos trouxe uma mensagem de terror, mas uma Boa Notícia (Evangelho) de paz e esperança. Este é o sentido do Advento.

Viver vigilantes com Jesus é viver com honradez no lugar onde se vive, no trabalho onde se trabalha, e onde tenho de dizer, embora isso possa representar para mim uma ameaça. Jesus não nos mete medo, propõe-nos um projeto de responsabilidade perante a tarefa que cada um tem de levar a cabo. Por desgraça, é frequente encontrar cristãos que têm as suas preocupações religiosas colocadas não na “responsabilidade profissional” e na familiar, mas só na “observância religiosa”. Isto é a ruína do cristianismo e a maior desgraça da Igreja.

Arlindo de Magalhães, 1 de dezembro de 2019

O pior é o medo

Emil Nolde | Sultry Evening | 1946

Um dia, Jesus resolveu ir ao Templo. Entrou e ao passar à beira de uma malta que estava admirada com a beleza do seu interior, o Templo adornado de belas pedras e cheio de dinheiro de promessas que os ricos deitavam no cofre do tesouro, contrariamente a uma pobre viúva que apenas deitou duas insignificantes moedas (Mc 12,42), comentou: “Virá o dia em que de tudo isto que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra” (Mc 13,2).

Jesus disse da beleza e do esplendor do Templo, mas disse logo também que esse não era nem o lugar nem o caminho de encontrar Deus.

O Templo de Jerusalém deve ter sido coisa tão grande que, com o desastre da conquista de Jerusalém levada a cabo pelos romanos, anos 68 – 70, saqueando e pilhando tudo se espalhou ouro por toda aquela região

O historiador Flávio José, hebraico de nascença e depois cidadão romano, deixou escrito que ”uma libra de ouro vendia-se então por metade do seu preço anterior”.

Quem já visitou a basílica de São Pedro do Vaticano e percebeu e dito com Agustina que a Basílica de S. Pedro, de Roma, “é uma igreja pagã…, poderíamos dançar lá dento”!, ou se espantou com a Catedral agora queimada de Notre Dame de Paris, mesmo assim, certamente se impressionou e admirou. Mas nada disso me levou a ser mais honrado, mais justo e de melhor coração. Não é por aí que se encontra Deus.

Mas quando Jesus lhes disse que, do Templo de Jerusalém, “não ficará pedra sobre pedra”, eles entenderam que seria o fim do mundo.

Mas Jesus respondeu-lhes: “Não vos deixeis enganar…… Quando ouvirdes falar de guerras, revoltas e revoluções, não vos alarmeis… Não será logo o fim… Deitar-vos-ão a mão, é verdade, hão de perseguir-vos…, mas não vades atrás deles…” (Lc 21,9). Esses iluminados aproveitar-se-ão desses momentos de crise e desconcerto para vos oferecer soluções seguras.

Cuidado, essa gente é perigosa! Desgraças, calamidades, guerras, crises económicas, haverá sempre. Até ao fim dos tempos. Mas não percamos a cabeça. A pior de todas as calamidades é o medo, o medo da perda das nossas melhores aspirações.

A vida é mais forte que tudo o mais. O pior é o medo.

É tempo de continuarmos a nossa vida. Após uma pausa no último ano, vamos retomar o Catecumenato, nascido em 1975, se alguns antigos catecúmenos e catecúmenas que tenham vivido o catecumenato aqui, na Serra do Pilar, quiserem voltar à reflexão catecumenal, agora a fazer como que uma reciclagem.

“À catequese de adultos corresponde a diocese (do Porto) de formação permanente e de encontrar formas de a realizar: a experiência pioneira da Comunidade da Serra do Pilar… [e] a criação do Centro Catecumenal do Porto…” (História Religiosa de Portugal, PV-Apêndices, 2001, 33).Fico à espera de recicladores…, pois que “Como cristão que sou não penso que seja o fim. É um desafio para a chamada Nova Evangelização”, escrevia Frei Bento Domingues, há um mês atrás. 

Arlindo de Magalhães, 24 de novembro de 2019

Património dos pobres

Manuel de Sousa Coutinho, fidalgo de ascendência nobre, nasceu em 1555 (São Bartolomeu dos Mártires nascera 41 anos antes); Coutinho casou em 1583 e em 1614 ingressou também no convento dominicano de S. Domingos de Benfica, em Lisboa, com o nome de Frei Luís de Sousa. Nele morreu em 1632. A mulher fez o mesmo, mas entrando no convento “do Sacramento”, também em Lisboa.

Entrado no convento, Sousa Coutinho (então Frei Luís de Sousa) foi instado a escrever “uma obra admirável (A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires), na qual o seu estilo sereno e suavíssimo se manifesta em todas as páginas”. É um dos mais brilhantes autores de língua portuguesa.

Dois pequenos textos:

Os bens da Igreja são património dos pobres

Achou o Santo no arcebispado (Frei Bartolomeu dos Mártires) algumas coutadas de montes e rios que seus sucessores estimavam e faziam guardar para dias de passatempo. E estas são hoje delícias dos príncipes e uma das partes em que fundam estado e grandeza (e não é cousa indigna, se o rigor extraordinário com que se defendem as coutadas se temperara de maneira que não ficaram sendo laço irremediável de pobres e coitados).

Uma das do arcebispado está no caminho que vai da cidade para Santiago de Esporões. Indo um dia o arcebispo visitar esta igreja, andavam uns pobres homens roçando mato na coutada. Alvoroçaram todos os que o acompanhavam, e alguns diziam que seria bem fazê-los prender e castigar.

Repreendeu-os o Santo, e estranhou-lhes o dito e a tenção; e, passando, disse aos que cortavam o mato que continuassem embora no serviço e fizessem seu proveito e, se alguém lho quisesse tolher, acudissem a ele.

E desde logo, tornando para a cidade, mandou largar e franquear todas as coutadas, para dar mais este refúgio à gente pobre. Porque a sua opinião era que o ofício do prelado consista em ser pai e remediador de pobre, e sentia muito não se entender a praticar assim por toda a Cristandade.

De sorte que foi voto seu, quando se achou no sagrado Concílio de Trento, e nele com veemência instou que se decretasse que todo prelado, depois de tomar de suas rendas o necessário para um côngrua e decente sustentação de sua pessoa e casa e oficinas,  tudo o mais depositasse no tesouro de sua sé, aplicado logo, como património que era de Cristo, para sustentação dos pobres, e daí se repartisse por eles. E ajuntava que declarasse o Concílio por homem que o alheio possuía e retinha o bispo que o contrário fizesse. (…).

Houve em Braga um homem nobre que se vendia por muito afeiçoado às por muito afeiçoado às cousas do Santo e, como tal, matava-se por lhe persuadir se ilustrasse seu nome com fazer nos paços pontificais alguma fábrica sumptuosa que perpetuasse neles sua memória, ou, quando menos,  mandasse reparar alguns aposentos que se iam danificando.

Escusava-se o Santo com as necessidades dos pobres que eram grandes, e eles muitos em número, e os tempos cada vez mais apertados de esterilidades, e fomes, e trabalhos.

Vendo-se o arcebispo perseguido e tentado um dia demasiadamente, cortou a prática, dizendo:

– Verdadeiramente, Senhor, que me obrigais a vos dizer que sois pior com esta teima que o nosso Satanás. Porque ele, se queria persuadir a Cristo que fizesse das pedras pão, já era cousa de que poderia resultar algum proveito aos pobres; mas vós matais-vos e matais-me, porque faça pedras do pão dos pobres!

Assim, nunca gastou dinheiro em edifício de gosto nem vaidade, despendendo muito e com muito gosto nos que eram de serviço de Deus, e proveito dos próximos.

(A vida de D. Frei Bertolameu dos Mártires, livro escrito por Frei Luís de Sousa, Livro V, cap.18)

Na cidade… todo o rol de pobres

Nesta primeira visitação que fez (o já bispo Bartolomeu à cidade episcopal de Braga) foi tomando estreita e miúda informação das necessidades mais precisas que havia em cada lugar, e os nomes dos necessitados, tanto gente recolhida, como mendicante das portas, fazia apontar com distinção das ideias e sexo e qualidades, e a todos estes mandou conforme ao estado de cada um e ao  que mais lhe convinha; e foi um grande número, porque nos consta que ano que corria a terça pare do arcebispado, chegavam a quatrocentas pessoas as que vestia.

Na cidade mandou tomar e rol todo género de pobres, assim das portas como envergonhados, e viúvas e donzelas honradas, com tanta diligência que não havia necessidade tão encoberta que andasse fora dos seus memoriais. E porque receava ficar-lhe alguma por remediar, como se fora algum grande delito, encomendava a pessoas de confiança e virtuosas que, como todo resguardo e cuidado, procurassem saber que havia gente que antes quisesse padecer (como às vezes acontece), que manifestar-se e logo lhe dessem aviso para não lhe escapar o socorro. E ele, por outra parte, com o mesmo segredo, se informavam se vivia virtuosamente , como achava necessidade e virtude, logo entravavam no rol e, conforme a qualidade e virtude, logo entravam no rol e, conforme à qualidade e família, lhes taxava a quantidade que haviam d’haver, de seu esmoler, de pão, carne e peixe, azeite e vinagre, para cada semana; e o pão o mandava dar em grão. Aos de mais qualidade ajuntava quantia certa de dinheiro e alguns alqueires de pão na entrada de cada mês. E a todos se acudia com tanta pontualidade que nem no dia limitava havia falta, nem na taxa, alteração.  Estes eram providos todos de vestido, e às mulheres mandava dar mantos para não faltarem ir à Igreja; para o qual efeito tinha em casa peças de pano e sarjas que mandava comprar por junto, como ao adiante diremos. A muitos que moravam em casa alugadas mandava pagar os alugueres.

A esmola da porta que se dava a todos os pobres que a ela vinham era quartas e sextas feiras, e era em dinheiro; e achava-se que passavam de mil pessoas as que de ordinário vinham a ela em cada um destes dias. Afora esta esmola, costumava o Arcebispo dar de sua mão outra a todos quantos lhe pediam sem exceção de pessoa; e para isso trazia na algibeira quantidade de vintéis em prata, que outra moeda nenhuma conhecia, nem lhe sabia a valia.

Outras esmolas fazia extraordinárias a mosteiros pobres de frades e freiras, em que despendia muito, por serem muito contínuas.

(A vida de D. Frei Bertolameu dos Mártires, livro escrito por Frei Luís de Sousa, Livro I, cap. XX)

São Frei Bartolomeu dos Mártires, roga por nós!

Frei Bartolomeu dos Mártires

Foi em 6 de Julho passado que o Papa promulgou o decreto da canonização do conhecidíssimo Frei Bartolomeu dos Mártires, uma das maiores figuras da nossa História e da 3ª fase do Concílio Ecuménico de Trento (1562-1563), nascido em Lisboa (1514) e falecido em Viana do Castelo (1590). Podemos dizer que foi assim uma espécie de Papa Francisco, mas só no Arcebispado da Arquidiocese Braga (que, ao tempo, compreendia todo o território português a norte do rio Douro, com a exceção da diocese do Porto). Chamado a Roma, ao Concílio de Trento, tempo em que a Igreja vivia um tempo muito difícil, mas que ele soube ler no seu tempo; isto é, soube ler o futuro. Um pouco do muito que está a acontecer com o Papa Francisco.

Batizado na igreja paroquial da extinta freguesia de Santa Maria dos Mártires, no Chiado, em Lisboa, ao nome de seu filho Bartolomeu, os seus pais acrescentaram “dos Mártires”. Depois…, “pregavam naquela freguesia os religiosos de S. Domingos, [ele] via de contin(u)o aquele hábito, ouvia aquela doutrina, ia-se-lhes afeiçoando”…

… e um dia, bateu-lhes à porta: “Padre, trabalhos busco e aborreço mimos. Por fugir de mimos que me sobejam e provar trabalhos que desejo, e sei que pera a salvação me são necessários, busco a religião [ie, a ordem religiosa]. Não temo esses nem me assombrarão outros maiores, que não há corpo fraco onde o coração é forte”.

Já bispo de Braga, foi chamado ao Concílio de Trento (1543 – 1563), no norte da Itália, num tempo decisivo da história da Igreja Católica, confrontada ao tempo com a Reforma Protestante. Afirmar-se-ia como uma das suas maiores figuras. Como ele no Concílio de Trento, só alguns no Concílio Vaticano II (1962-1965), 400 anos depois.

Regressado a Braga, vindo de Trento, teve muitos problemas com a igreja da sua diocese onde, afinal, se esforçou por iniciou a reforma tridentina. Preocupou-se sobremaneira pela formação do clero, com a instrução e moralização dos fiéis, e com a administração rigorosa dos bens eclesiásticos passava a maior parte do ano em visita pastoral ao todo da diocese, de Braga a Miranda do Douro.

Preocupou-se sobretudo com a pobreza de muitos sectores da população e do próprio clero; pressionava os padres mais ricos a partilhar com os mais pobres e a providenciar apoio a(os) mais desfavorecidos. Bispos e padres, dizia ele que eram apenas administradores dos bens da Igreja, que estavam destinados a evangelizar e a socorrer os pobres.

Espalhou-se então uma peste por todo o território: e atingiu aí o heroísmo da sua caridade. E teve também uma enorme postura na crise nacional de 1580, a perda da independência do país.

A seu tempo, começou a pedir insistentemente ao Papa a resignação do seu ministério de Arcebispo atendendo à sua saúde e idade; o Papa cedeu dois anos depois, em 1582. Morreu nesse mesmo ano, em 1582, com fama já de grande santidade. E o povo chorou.

Levantar-se-ia questão entre Braga e Viana da Foz do Lima (assim chamava a “de Castelo”), ambas quiseram o seu cadáver. Viana guardou-o, é nosso!

“Hoje estamos também numa situação idêntica, já que a Igreja precisa de uma renovação interna e de percorrer caminhos novos” na sua missão, diz, levando o “evangelho para longe”. O catolicismo precisa de encontrar “caminhos para se tornar válido” para as pessoas. “A Igreja tem um dinamismo próprio, no âmbito interno, na sua atitude” e, ao mesmo tempo, deve “situar-se no tempo, na sociedade em que vive, reconhecendo as aspirações das pessoas e mostrando que o evangelho tem alguma coisa de válido a dizer a essas aspirações.” – diz o atual arcebispo de Braga.

Arlindo de Magalhães, 10 de novembro de 2019

45 anos

Nas três Leituras (Jr 1,4-10; 2 Tim 4,1-5; Lc 10,1-12), a Liturgia refere-se à missão de todo o enviado do Senhor ao seu povo, pondo em relevo três pontos fundamentais:

  1. Todo aquele que é enviado é um escolhido de Deus: “Antes que fosses formado no seio de tua mãe — dizia o Senhor a Jeremias — antes do teu nascimento, já eu te havia consagrado” (Jr 1,5). E não objetes que és uma criança, que não sabes ainda falar, porque eu te inspirarei o que hás de dizer a todos aqueles a quem eu te enviar (Jr 1,7).
  2. Para os homens assim vocacionados, escolhidos por Deus e enviados ao seu povo, a tarefa principal e primeira é pregar a Palavra de Deus, oportuna e inoportunamente e, em seu nome, insistir, repreender, ameaçar e exortar, sempre com paciência. É o que recordava S. Paulo na 2ª Carta que escreveu a Timóteo (4,2).
  3. Apesar da sua eficácia, apesar de poder ser rejeitada, a Palavra de Deus é um convite livre feito a homens livres. Se, portanto, os homens a não aceitam, se os homens recusam o dom da Paz que ela traz, Vinde-vos embora! — diz o Senhor aos 72 discípulos escolhidos para anunciar a Boa Nova em todas as cidades e lugares aonde ele deveria ir posteriormente (Lc 10,10). Vinde-vos embora e, em gesto violento, mas claro, dirigido aos que rejeitaram a vossa mensagem de paz, sacudi até o pó dos vossos sapatos! Mas, entretanto, anunciai uma última vez a proximidade do Reino de Deus que vós pregais e, assim, se vê rejeitado.

Como Palavra de Deus que é, esta mensagem é para hoje e é para nós.

Amigos e cristãos desta comunidade da Serra do Pilar:

Esta tarefa eu tenho de desempenhá-la em fidelidade absoluta aos princípios postos em destaque pela Palavra proclamada na Liturgia de hoje:

  1. Antes de mais, como um enviado de Deus ao seu Povo. Terei, portanto, de ser fiel ao seu Espírito, mas livre de toda e qualquer pressão ou influência.
  2. Depois e primariamente como ministro da sua Palavra que deverei meditar e conhecer, e pregar, oportuna e inoportunamente, instruindo, insistindo, repreendendo e exortando.
  3. Finalmente, dirigindo o convite livre que é essa Palavra, a homens que a podem receber ou rejeitar. Mas, neste caso, há a diretiva clara do Evangelho de hoje: “Quando entrardes nalguma cidade e aí vos não receberem, saí para as praças e dizei: Até o pó que da vossa cidade se pegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, ficai sabendo: está próximo o Reino de Deus” (Lc 10, 10-11).

É difícil nos nossos dias esta tarefa. Acelerou-se a evolução política, económica, social e cultural do nosso mundo, e a Igreja ficou presa a tempos passados. No desejo reto de ser fiel, deixou-se ultrapassar.

E se sentimos um desfasamento grande face aos tempos, a tentação pode ser dupla: agarrarmo-nos ao passado, às suas formas, às suas estruturas e à sua mentalidade, e tentar fazê-las sobreviver em dias que são os de hoje, pretendendo injetar vida no passado que já não é história, porque esta constroem-na apenas os homens vivos. Esta tentação é muito grande, é real. Apalpa-se a cada momento. Contra isto estou prevenido; vo-lo digo.

Mas a outra tentação é também real: querer para a Igreja aquilo que ela não comporta, pretendê-la fiel a quaisquer homens ou situações de vida que não os de hoje, é igualmente falso.

A tarefa é grande, portanto, mas nem a utopia do possível nem a institucionalização negativa de formas e estruturas podem meter medo àqueles que acreditam no Deus único e vivo, cuja primeira palavra dirigida ao homem acabado de criar foi “Crescei e multiplicai-vos; enchei a terra, sujeitai-a e dominai-a” (Gn 1,28), isto é, recriai-a, reinventai-a.

Esta tarefa que é a humanidade é também para a Igreja parte integrante e essencial desta humanidade, para esta Igreja do nosso tempo envolvida em roupagens antiquadas e antiquantes. Esta tarefa é para nós, cristãos desta vila de Gaia que, se é nova de nome, nova se quer de facto: Vila Nova de Gaia, ou simplesmente Vila Nova, como ainda há bem poucos anos diziam (talvez ainda digam) as gentes simples das aldeias deste concelho. Portanto, rosto novo para esta Igreja que é sempre nova desta Vila Nova, é tarefa para vós e para mim: tarefa que é programa e apelo.

Sempre que é preciso andar caminho novo, corre-se o risco de errar ou, pelo menos, de não acertar totalmente: é preciso também contar à partida com a resistência dos que possam pretender caminhos velhos e estafados, nada abertos portanto ao verdadeiro espírito que, soprando sempre o mesmo sobre a sua Igreja, se manifesta de formas diferentes e novas conforme os homens que constroem os tempos. Vão ser, portanto, muitas as dificuldades.

Vou tomando conta delas pouco a pouco. Algumas conheço-as já. Doutras suspeito. Não valerão paninhos quentes nem reformismos estéreis: as pessoas e as instituições que existem merecem respeito e, certamente, louvor; mas nada poderá ser entrave. E, sempre tudo e em tudo, se procurará no Evangelho a reta orientação para tudo o que se empreenda.

Em mim encontrareis, assim o espero, com a graça de Jesus Cristo, um espírito sacerdotal já temperado por idênticas dificuldades vividas noutros trabalhos e noutras comunidades. Nem elas me farão retroceder num caminho que tem de ser novo para ser fiel ao Espírito de Deus revelado aos homens em Jesus Cristo, mas em cada tempo.

Estas necessidades que existem no seio da comunidade e que, algumas delas, trarão problemas (oxalá que não-compreensões!), não poderão desviar-nos a atenção do meio sociológico que nos cerca. Estamos em pleno coração de Vila Nova de Gaia, em zona que engloba, talvez, a sua maior zona de convívio — a do Mucaba — mas circundada por uma zona de pobreza material (escarpa da Serra, encostada a Santa Marinha, etc), a par de uma outra zona de aparente desafogo material. A todos estes homens, a Igreja é enviada a pregar e a salvar; e nem a urgência de questões internas nos pode fazer esquecer que somos Igreja de Jesus Cristo, portanto evangelizadora, missionária, isto é, enviada a todo o homem e ao homem todo.

Esta primeira ideia que vos deixo e que é o programa da ação pastoral que hoje começa aqui, na Serra do Pilar, irá sendo explicada em pormenor e traduzida concretamente, sem falsos escândalos, firme e lucidamente todos possamos ajudar.

A alteração que hoje se introduz na vida da comunidade — esta celebração das 11 horas — quer ser uma primeira realização deste espírito que nos anima.

Queremos conseguir uma celebração de Domingo que seja o encontro alegre e fraterno de homens com fé; queremos uma celebração que tenha lugar no programa da semana e não seja mais ritualismo de um cristianismo sociológico: queremos uma celebração universal como a Igreja, para jovens, adultos e crianças, contanto que sejam todos, gente do nosso tempo; queremos uma celebração que, na alegria da fé e na liberdade de que o próprio domingo é tradução, celebre cristãmente a vida e a mesma fé, recordando a Morte e Ressurreição do Senhor Jesus Cristo.

A celebração não é minha; muito menos se dará espetáculo. Ela será o que a comunidade conseguir. Eu apenas lhe emprestarei o serviço da presidência que como Padre, me compete.

A experiência de anos passados noutras comunidades certamente nos ajudará. Cristãos amadurecidas na fé no seio doutras comunidades prestar-nos-ão serviço valioso de uma ajuda desinteressada e pobre que é a tradução do espírito que une as igrejas locais das quais nasce a Igreja Universal. De todos me cumpre aceitar o serviço que, pobre e desinteressadamente, querem dar: e a alguns particularmente devo agradecer o auxílio que me prestaram em horas bem mais difíceis que esta, de procura, de incerteza e até de alguma dor.

Este trabalho cujo programa tão breve e resumidamente vos deixo. Começa praticamente com a Eucaristia. Nela vai subir para Deus este projeto que, a executar por homens (se for esta a Sua vontade), é obra do seu Espírito presente em nós desde o dia do Batismo. Nela terei presentes as vidas e projetos de quantos fazem parte comunidade.

E vós, pedi por mim também, não facilidades no trabalho, nem a simpatia dos homens; pedi, sim, que, pelo meu ministério sacerdotal, nesta Vila Nova de Gaia e nesta comunidade da Serra do Pilar, o Senhor esteja mais presente na história dos homens.

(Esta foi a primeira homilia que fiz aqui na Serra do Pilar, no dia 3 de Novembro de 1974, faz hoje 45 anos)

Arlindo de Magalhães, 3 de novembro de 2019

Confiança e comunhão

J. M. W. Turner, ‘Three Seascapes’, ca. 1827

 

Como tantas vezes aqui tenho dito, a Fé não é um saber intelectual, fruto de um raciocínio frio, mecânico, matemático. A verdadeira Fé é de outra ordem. A confiança é uma sua componente importantíssima: confiança num Deus que se revela (História da Salvação) e promete (da “Terra” de Abraão à “Nova Terra” do Apocalipse): Deus da Revelação e da Promessa.

Claro que a nossa Fé não é irracional. Ela não parte o homem em dois, em duas capacidades antagónicas, uma reservada à Fé, outra ao conhecimento racional e científico. Isso foi no tempo do “impossível” diálogo entre a Fé e a Ciência. A nossa Fé é uma Fé racional, quer dizer, a razão dialoga com ela, é um seu suporte, se bem que nem de longe a compreenda na sua inteireza e totalidade.

Por isso, no domínio da Fé, há olhos que não veem e ouvidos que não ouvem: inteligências que não entendem. Porque o conhecimento da Fé é de outra ordem: nem só a razão mas também o coração (confiança); nem só eu, também nós.

Esta afirmação é importante e fundamental, ao tratar-se da educação da Fé. Porque não se trata de um cuidado ou preocupação intelectual: não se trata de ensinar coisas. Também se trata disso, que a fé, como dizia, tem uma componente “racional” (o que, a não acontecer, resultaria numa fé “acriançada”, que é o que mais se vê por aí!). Mas trata-se também, sobretudo, de testemunhar e viver a fraternidade dos que são Discípulos, de penetrar toda a riqueza da vida da Igreja E isto só se consegue contactando com ela, por dentro, isso não vem nos livros, isso é uma Vida, e uma Vida vive-se, testemunha-se, participa-se dela, uma vida faz-se e nós vivemo-la.

E ninguém pense que somos apenas nós, os mais velhos, que temos de a ensinar. Comentava-me uma vez o pai de uma criança que fazia a primeira comunhão, assim a jeito de interjeição: «como estas coisas são importantes para os miúdos!». Ele não disse mais nada. Mas de certeza que a frase dele tinha umas reticências que eu interpretei assim: «… e para nós!».

Tudo isto é muito importante para se perceber o que é a catequese de Infância, e até porque é que, hoje em dia, muitas vezes, são as crianças a exigi-la aos pais, como direito. Escolas (da Fé) há muitas, certamente que todas muito melhores que a da Serra do Pilar, como bons livros e melhores professores. Mas a fé não é uma questão intelectual.

Por isso, para a catequese, é importante e fundamental termos connosco as crianças.

Mas não se trata – repito – de ensinarmos coisas aos meninos. Trata-se de lhes abrir os olhos da fé. E para isso é precisa muita coisa: é preciso o pão e a mesa, a Água e a Fonte, a Luz e o Calor, o partir e o distribuir, o estar juntos e a experiência do perdão, a casa e os Irmãos. E sem isso não há Fé que floresça ou resista, porque é ela que nos revela o sabor da vida.

Arlindo de Magalhães, 27 de outubro de 2019

Justiça

Agnes Martin, ‘Summer’ (1964)

“Tinham um só coração e uma só alma” (At 4,32), “partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade” (2,26), “aumentava todos os dias o número dos que tinham entrado no caminho da salvação” (2,47), “ensinavam o povo” (4,2), “todos cheios do Espírito Santo” (4,31), enfim, era o céu na terra.

O ambiente de vida dos cristãos da Igreja primitiva era tal e a maldade do mundo tão grande que o que eles queriam era o regresso de Jesus, que voltasse depressa, como dizia a prece que logo criaram e repetiam: “Marana tha! Marana tha!, Vem, Senhor!” (1 Cor 16,22). Eles próprios impacientavam-se com o tardar da salvação do Mundo! Venha ele, o Senhor!, trate disto!

Por outro lado, com o andar dos tempos, continua a haver quem pense que o Mundo não tem solução; nos desastres e cataclismos, nas guerras e fragilidades de tudo, viam apenas o dedo de um deus castigador e por isso lhe pediam destruísse tudo com fogo, Mundo e Humanidade.

É este o contexto da parábola de Lucas. Evidentemente que a viúva não tinha hipóteses de conseguir justiça para o seu caso. E importunar o juiz, dia atrás de dia, não levava a sítio nenhum.

A parábola, no fundo como todas as parábolas, não é totalmente lógica. É verdade que o juiz podia, de qualquer maneira, ter mandado a viúva passear. Pode ele, um juiz que não faz justiça, cansado de ouvir a reclamante, ajudar a compreender a situação de Deus, que, dia a dia, escuta os gemidos dos pobres?

Não. O próprio Evangelho afirma que Deus fará justiça sobre toda a História dos homens, porque os seus julgamentos são perfeitos: todas as divisões e injustiças do tempo cairão, pois que o poder dos injustos que oprimem os pequenos da terra, está cimentado sobre o nada. Por isso, ele “derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52).

Nós acomodámo-nos à injustiça institucionalizada e passámos a dizer que é a Natureza ou até o Acaso que nos faz nascer desiguais: uns, filhos de ricos, e outros, de famílias pobres; uns, com imensas possibilidades, e outros, sem nenhumas; uns, com direito ao trabalho, e outros, sem emprego toda a vida, durante toda ela condenados e … desprotegidos da sorte.

Acomodámo-nos a isto como nos acomodámos à geografia da Fome. Olhamos o mapa da injustiça com a maior serenidade do mundo. Seremos nós até dos mais conformados e resignados, que não levantamos problemas? Somos honestos, trabalhadores, mas essas coisas passam-nos ao lado.

Acomodámo-nos a tudo, até dentro da Igreja. Já percebi há muito tempo e me convenci de que muitos quiseram dar cabo do Vaticano II — ou que estão ainda a fazê-lo —, apesar dos esforços do Papa Francisco, da audácia de um teólogo como Herbert Haag (que já morreu em 2001) ou agora da capacidade do poeta Cardeal Tolentino, … e todos os mais que oramos: Marana tha! Marana tha!, Vem, Senhor!, (1 Cor 16,22). Vale-nos a Liturgia que começa a espalhar o perfume do Advento, levemente ainda, mas recordando já a oração dos primeiros — Marana tha! Marana tha! — e “saibamos interpretar os sinais dos tempos” (Mt 6,2)!

Razão tinha o evangelista quando perguntava se “o Filho do Homem, quando voltar, ainda encontrará Fé sobre a terra”! (Lc 18,8).

Precisamos de “engenheiros de pontes, não de muros”, diz o jornalista! Graças a Deus! 

Leprosos

Agnes Martin, ‘Untitled’ (1977) | https://www.guggenheim.org

 

Sabemos todos, mais ou menos, do que a lepra era no mundo antigo a mais horrível de todas as doenças, que originou então uma especial preocupação das autoridades eclesiásticas e seculares com os que a sofriam. Desde a Antiguidade que era assim. Já o velhinho Livro do Levítico (cap.s 13 e 14) incluía normas rigorosas para evitar o contágio, que se julgava inevitável e incurável. Os leprosos, afastados do convívio com as populações, deviam andar “com as roupas esfarrapadas em várias partes, o cabelo intonso, a boca tapada e de cabeça rapada e descoberta; ao aproximar-se-lhes alguém, deveriam gritar “Cuidado! Eu sou um contaminado, um imundo!” (Lv 13,45).

Isto durou, Idade Média dentro, até quase ao nosso tempo: os leprosos eram mandados ali para a Serra do Caramulo, convencidos todos de que se tratava de uma doença fortemente contagiosa… Era eu miúdo, e um Senhor que morava em frente à casa dos meu pais, leproso, já todo marcado pela doença, um dia vi que o levavam para a leprosaria, praticamente à força, e outro dia soube-se que por lá tinha morrido, na serra… Conhecida a doença só praticamente por meados do século passado, o seu diagnóstico começou a não ser tão difícil e percebeu-se que a lepra não era contagiosa; havia era pessoas que, por razões idênticas e a viverem num mesmo sítio, podiam ter lepra: a pobreza, a alimentação, a higiene, etc. A lepra não era controlável.

E, como sempre acontece nestas coisas, quando uma doença se não conhece com precisão, alarga-se o quadro da defesa. Na Idade Média, leproso era todo aquele que tivesse uma qualquer dermatose (doença da pele), pelo que era enorme o número dos desgraçados não leprosos que, julgando-se que o eram, se apartavam da sociedade, onde só lhes restava esperar a morte ou vaguear perdidos pelos montes. Mais tarde, começaram a ser acolhidos numa leprosaria (gafaria), que se erguia quase sempre à beira de uma ponte: ponte de Alfena, de Lousado, de Canavezes, etc.

Enquanto isto, nascia nas populações, por um lado, um sentimento de defesa, por outro, o da exclusão dos pobres atingidos pela doença. E isto foi terrível; isto é terrível, ontem como hoje. Vejam-se os fenómenos de rejeição que despoletaram, já em nosso tempo, os doentes da Sida!

Eu conto uma história medieval. Lázaro, o pobre da parábola do rico, que tinha o corpo coberto de chagas, portanto leproso, tornado então S. Lázaro, acabou por tornar-se o advogado dos doentes leprosos. Daí os lazaretos ou gafarias, as leprosarias, uma das incarnações maiores da Caridade na Idade Média! S. Lázaro, portanto, o patrono dos excluídos, dos leprosos, mas também dos padeiros. Não é verdade que também estes estavam, de algum modo, excluídos da sociedade?, a trabalhar de noite e a dormir de dia? Esquisito que isto era! Aqui está, a exclusão!

Seja como for, esta realidade da exclusão foi enorme no mundo antigo. Excluídos e a excluir, foram, ao tempo, os cristãos, os cátaros e todos os dissidentes, heréticos ou não, queimados vivos quantos. E a Inquisição, que matava para defender a Religião? E em Espanha não havia essa da “limpeza de sangue”, que era preciso provar, instrumento jurídico praticado pela Igreja e pelos reis que, até ao séc. XIX, excluíam de muitas corporações e territórios do país os descendentes dos judeus, dos mouros e dos penitenciados da Inquisição?

E, em Portugal, como se passaram as coisas com a história dos cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo e seus descendentes só se limpavam “à sétima geração”; fossem o que fossem tinham sempre a Inquisição à porta!) e cristãos velhos (os sempre cristãos). E o que fez Hitler na 2ª guerra mundial?

E como foi no nosso Estado Novo, que, para alguém ser funcionário público, tinha que fazer o juramento anticomunista? E na Igreja não tinha de se fazer (e eu fiz, sabia lá o que fazia!) um juramento anti modernista?

A Europa cristã teve sempre as suas lepras e os seus leprosos. Porque a mania da limpeza acabou, quantas vezes, por passar por cima de todas as exigências da fraternidade, da caridade, do respeito mais liminar pela dignidade e sacralidade do Homem.

O Outro é sempre um perigo. Entre as nações (guerra quente ou guerra fria), na política (os partidos), na economia (os que roubam o dinheiro dos pobres, e são tantos, uns e outros), no comércio, na escola, o vizinho do lado, o tipo que vai à minha frente na estrada ou que vem atrás em cima de mim, o Outro não é meu irmão, é leproso, afaste-se e grite que é impuro, porque não tem nem saúde nem dinheiro, porque é diferente, e perigoso, e não tem direito e é diferente no que tem e no que pensa, é um perigo, perigoso se chama, e os migrantes africanos que não pode entrar no nosso Mundo, e os migrantes americanos que fogem do seu mundo para um mundo melhor, defendido por muros …

Até na Igreja, a alegria de “O Deus da minha juventude” (Sl 42,4) e “da Alegria do Evangelho” é posta em guarda, o que é pouco condizente com a sisudez das ortodoxias.

O episódio dos leprosos do Evangelho de hoje tem o seu núcleo não na cura dos 10, mas na capacidade que teve um de, libertando-se da Lei, se abrir à novidade da Graça. Para ele foi mais importante vir atrás e dar graças que seguir em frente para se apresentar aos sacerdotes, os representantes da Lei. Por isso, Jesus se mostrou admirado pela falta dos outros. E mais: o que veio era um samaritano!

Arlindo de Magalhães, 13 de outubro de 2019

Catequese

Jean-Baptiste Greuze, ‘La lecture de la Bible’ (1755, Louvre)

Catequese é uma palavra grega que refere o ensino: o catequista catequisa. A palavra, do grego passou ao latim — catechizo — e logo às diferentes línguas europeias, inclusive o português. Jesus “ensinava os caminhos de Deus” (Mt 22,16), os apóstolos ensinavam o povo (At 4,2), numa palavra, “não paravam de ensinar a Boa Nova de Jesus” (At 5,42). Entretanto só muito mais tarde mas tarde a palavra começou a ser usada só no ensino religioso dos filhos: nos bons velhos tempos eram os pais cristãos que ensinavam — que catequizavam — os seus filhos: certamente que os ensinavam a recitar a Pai Nosso, a explicar-lhes as noções primeiras do mundo cristão — pão e vinho, Jesus, a graça e o pecado, a partilha, a cruz…, e por aqui fico, isto é…

Os pais transmitiam aos filhos o que eles próprios tinham aprendido: ensinavam o que era a Missa, a Igreja, o Santo, etc, em algumas freguesias, aqui e ali, era o Senhor Abade que ensinavam a catequese, etc, etc, etc…

Durante séculos foi assim que as crianças se cristianizaram: a família e a comunidade.

Nos meados da Idade Média essa ótima maneira de ensinar começou a perder-se. Sobretudo nos fins da Idade Média (séc.s XIII/XIV) tudo começou a alterar-se. Já no século XVI, em pleno Concílio de Trento (1545-1563), rebentou a questão: catequizar?, pra quê?, como? Ainda não havia catecismos.

A família já não, a igreja já não também, catecismos não existiam …

… mesmo assim, um pouco mais tarde, no século XVIII, o Papa Clemente XIII (1758-1769) lançou-se na tarefa de escrever um: “O Catecismo Romano é um livro duplamente louvável: a sua primeira vantagem é conter, sem a menor sombra de erro, a doutrina comum da Igreja; e a segunda é expô-la em palavras claríssimas”. Mas o que ele disse não serviu de nada. A descristianização do mundo cristão foi até ao fundo.

Quando nos finais do século XIX, a França criou a escola dita primária para todas crianças, com livros, penas (de escrever), carteiras …, a Igreja copiou: livros, canetas e carteiras, quase sempre uma catequista a obrigar as crianças a decorar o que não entendiam e de que não precisavam, a não ser para poderem ir à 1ª comunhão, a solene viria depois… depressa acabando por criar um motivo para uma festa familiar e civil! O mesmo que aconteceu com o casamento

Muitas paróquias ricas construíram então, ao lado da igreja, uma verdadeira escola com bom material, com programas, calendários, etc.

Tanto para ensinar, mas tão pouco dado e recebido!

Repito, nessa altura, a família ainda não cortara a sua ligação à Igreja; mas …

Agora é assim: o automóvel sobe até à porta da Igreja, abre-se a do carro, o filho sai…, tratem-no que eu voltarei aqui a buscá-lo!

Dói-me a alma quando vejo o pai ou a mãe a descarregar o/a filho/a, a deitá-lo/a fora do carro, e, meia volta que eu já venho!

Mas a família não ajuda nem sequer ajuda a Igreja a ajudar os/as catequistas…!

“A família é insubstituível na catequese da infância e, ainda que de modo diferente, da adolescência; isto é, nas fases etárias em que os catequizandos mais dependem dos pais ou outros responsáveis pela sua educação. Ora se o encontro com Cristo deve atingir a totalidade do ser humano, de modo algum se podem dispensar dele as pessoas que fazem parte farte da vida dos que com Ele se encontram… Há que realçar as vantagens desta inserção dos pais na catequese. A primeira é a própria família” (Catequese: a alegria do encontro com Jesus Cristo, documento do episcopado português, de 2017).

Sim, de facto, na Igreja, o primeiro lugar das crianças é na casa de seus Pais. Antes de mais nada aprenderão o nome de Jesus e o “Pai nosso”…, e começarão a crescer na Fé. A Esperança e a Caridade chegarão pouco depois. E isto a Igreja não saberá dar-lhes.

Isto acontecido, porém, a Igreja poderá fazer maravilhas.

Isto é: só depois de a Família ter feito o que lhe compete, a Igreja pode fazer alguma coisa, o que lhe cabe.

Acreditamos ou não que, com a Família e a Comunidade, podemos fazer cristãos de pequeninos que frequentam a Eucaristia com seus Pais? Então foi correto o seu Batismo e é correta a sua participação na Catequese da infância. Fora disso…!

Arlindo de Magalhães, 6 de outubro de 2019

Estruturas de pecado

Jackson Pollock | The Moon Woman | 1975

“Um homem rico vestia-se de púrpura e linho fino e banqueteava-se esplendidamente todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se do que caía da mesa do rico!”.

Não é fácil ler a parábola do homem rico e do pobre Lázaro: “ignorar estas realidades seria tornarmo-nos como o rico que fingia não conhecer o pobre Lázaro que jazia junto do seu portão” (A solicitude Social da Igreja, encíclica de João Paulo II, de 1987,  42).

São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da educação, do aumento da criminalidade, da ruptura dos laços familiares, da transformação do papel da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem acções concertadas a nível mundial.

Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que defende os interesses ora dos cidadãos ora dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.

Nós, os cristãos, temos algumas coisas a ver com isto?, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), uns dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nos papéis, nos documentos, nas doutrinas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?

Um dia, no longínquo ano de 1511, Frei António de Montesinos (?-1540) surpreendeu os colonizadores espanhóis da ilha La Española (hoje República Dominicana) com este sermão:

“Estais todos em pecado mortal, nele viveis e morreis, pela crueldade com que tratais estas gentes inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça sujeitais estes índios a tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade empreendeis horrorosas guerras contra estas gentes mansas e pacíficas que ocupavam as suas terras cujos recursos agora destruís com chacinas e depredações? Como as mantendes presas e esgotadas, sem lhes dardes de comer nem cuidardes das doenças que lhes advêm dos excessivos trabalhos com que as sobrecarregais e das quais lhe resulta a morte, ou antes, dos trabalhos com que as matais na mira de apanhar sempre mais e mais ouro? Que cuidado pondes em que sejam evangelizadas e conheçam a Deus, seu criador, sejam batizadas, ouçam missa, guardem as festas e os domingos? Não se trata de homens? Não têm eles alma racional? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?”.

Frei Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) estava lá e ouviu o sermão. Converteu-se então à causa da defesa dos índios, atacando na sua Brevíssima relação da destruição das Índias os descobridores da América com seus crimes, abusos e violências, dizendo-os escandalosos e exagerados, e não conseguindo — ele — evitar a continuação de tão grande chacina.

Vem aí um terceiro daquele mesmo tempo (1514-1590) — chamava-se Bartolomeu dos Mártires — era português. Veremos!

Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar estas estruturas de pecado.

Arlindo de Magalhães, 29 de setembro de 2019