Ponto Ómega

Grace Carol Bomer, “The Four Evangelists” (2015)

Começámos o Advento. Só que, com uma afirmação destas, podemos estar a laborar em falso. Isto não é “vira o disco e toca o mesmo”, chega-se ao fim volta-se ao princípio; não voltamos ao tempo pagão do eterno retorno. O tempo cristão é progressivo, para a Frente e para o Alto, se bem que o vivamos ciclicamente. Quando falamos de Ano Litúrgico trata-se apenas de pôr um pouco de ordem na casa, de distribuir pelo ciclo de um ano a celebração de todo o mistério de Cristo. Fazemo-lo, entretanto, sempre de modo diferente e progressivo – repito. O ano que começa não é necessariamente igual ao que termina, tudo é diferente, a vida está mais cara, o tempo mais alterado, os filhos mais crescidos e nós mais velhos, etc.

E ninguém celebra hoje o mistério de Cristo, como já o fez há 10, 20 anos atrás. Nem os indivíduos, nem as comunidades.

Entramos, portanto, em Advento, não como no ano passado, não como há 10 anos. Porventura alguns fá-lo-ão connosco pela primeira vez. E, nas comunidades, é sempre preciso, de vez em quando, voltar à catequese.

Esta palavra Advento, etimologicamente vem do latim ad+venire, vir para (lugar ou finalidade). Advento é o tempo de a Liturgia alertar a Igreja e os cristãos para o Dia em que o Senhor “de novo há de vir… para julgar os vivos e os mortos”.

No correr de um ciclo anual, a Liturgia celebra sucessivamente, na Páscoa e no Natal, os maiores mistérios e acontecimentos da História da Salvação (Mistério Pascal e da Incarnação), propõe a reflexão da Antropologia Cristã (Tempo Comum) e faz presente às Igrejas a Escatologia, os Fins, o Tempo que há de vir. Há em tudo isto uma preocupação verdadeiramente pedagógica: para que se perceba e não esqueça. E desde sempre, mas, por maioria de razão, nesta civilização em que o imediato e o material, a qualquer preço, são preocupação única e constante, a fazer esquecer outras dimensões importantes da vida dos homens.

Aos cristãos deste tempo é também preciso lembrar os Fins, o para onde se caminha, o que implica considerar como se caminha e por onde se caminha. Porque nem todos os Caminhos são para a Frente e para o Alto, para o “ponto Omega” que é Cristo. Alguns são caminhos em que podemos tornar-nos verdadeiros “extra-viados” (via > caminho) da Vida, isto é, postos fora do Caminho da Vida. A temática dos Fins é a deste tempo litúrgico: pomos diante dos olhos Aquele que há de vir que é Aquele-que-já-veio.

Os Fins, e o Caminho para eles. Isto não quer dizer, no entanto, que haja um só Caminho para se lá chegar. “Na Casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2). Claro que a direito é mais fácil: “Disse-lhes Jesus: ‘Eu sou o Caminho’” (Jo 14,6). Mas nós os cristãos não podemos sequer pretender a exclusividade do Caminho, como se só o nosso lá fosse dar. Pelo contrário. Temos hoje consciência – e nisto o Vaticano II, nunca é demais lembrá-lo, desempenhou um papel fundamental – que dar as mãos a todos os homens de boa vontade no percorrer destes caminhos é sinal de fé no Homem, em todo o Homem, cujas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias … são as dos discípulos de Cristo, e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1).

Por isso a gente vibra com os Sinais dos Tempos que nos falam não apenas nem necessariamente de Deus, mas também do Homem e das suas esperanças – que “a glória de Deus é o Homem vivo” (Stº Ireneu, séc. II) -, sinais positivos e negativos do Homem e da Humanidade, sinais da presença e da ausência de Deus.

O Advento é o Tempo que nos espicaça a Esperança, aguça a perspetiva e ajuda a saborear a Vida, que é tarefa e alegria rumo ao Reino de Deus. “Per visibilia ad invisibilia”, parafraseando Paulo aos Romanos, através das coisas visíveis chegamos às invisíveis (Rm 1,20), por visíveis aqui entendendo:

“Todos estes bens da dignidade, da comunhão fraterna e da liberdade, frutos da natureza e do nosso trabalho, (que) depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrar, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal, “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”, Reino que está já misteriosamente presente, mas que atingirá a perfeição quando o Senhor vier” (GS, 39).

“Nada serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se a si mesmo se vem a perder. A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do Reino de Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao Reino de Deus” (GS 39).

Não é verdade que também o que vivemos nos espicaça a Esperança que neste Advento especialmente celebramos?

Arlindo de Magalhães, 9 de dezembro de 2018

Esperança

Georgy Kurasov, “Annunciation” (2013)

A primeira leitura de hoje fala-nos da existência do caminho da tentação, tantas vezes percorrido e que torna as pessoas seres mais egoístas, inconscientes, maliciosas até. E quando se apercebem que este não é o verdadeiro caminho, aquele que Deus quer que façamos, sentem-se perdidas, angustiadas, culpadas.

Fala-nos de Eva, a primeira mulher, mãe de todas as pessoas! Sinal de Vida! Uma Vida que deve ser vivida em pleno, mesmo que por vezes seja atribulada, com falhas, com momentos menos positivos. Deus dotou-nos de capacidade para mudar o rumo e corrigir os erros.

No Evangelho temos Maria, a nova Eva, exemplo de humildade e de Fé: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Ser mãe, esposa, cristã, profissional, dona de casa, ser mulher nem sempre é tarefa fácil. Vivemos numa sociedade muitas vezes cruel, que nos fragiliza e nos deixa imensas questões para resolver, mas, com persistência, dedicação, humildade e capacidade de refletir no que somos e no que queremos ser, tudo se torna mais fácil.

Quando somos chamados a um serviço o nosso primeiro sentimento é de entusiasmo, mas também de receio, de não sermos capazes de cumprir com os objetivos a que nos propomos, mas, tal como Maria, devemos acreditar e superar os obstáculos.

Ser Cristã permite-nos olhar o mundo de forma diferente. Acreditamos num Deus que, através do seu filho Jesus, nos mostrou o quanto podemos ser humildes e generosos, colocando-nos ao serviço do próximo, que é, no fundo, uma forma de amar.

Participar na celebração dominical ajuda-nos a relembrar os princípios pelos quais nos queremos reger e é meio caminho para seguir em frente, carregando energias para o que aí possa vir.

Dando graças a Deus por fazer parte desta Comunidade, faço minhas as palavras de uma das nossas crianças da catequese (com 8 anos), que disse: “Ser Cristão é partilhar sem esperar recompensa”.

Que Deus ilumine o nosso caminho e nos ajude a ser humildes e capazes de o percorrer com Fé e esperança de que o amanhã seja sempre melhor!

Elsa Lopes, 8 de dezembro de 2018

Advento

Wassily Kandinsky, ‘O Juízo Final’, 1912

Entre os vários tempos litúrgicos, foi o Advento o que mais lentamente se formou e mais tardiamente se fixou. Entre muitas outras razões, porque, face à crescente e rápida importância que a festa do Natal adquiria no Ocidente, Roma tentou controlar-lhe o crescimento, impedindo assim que Natal e Páscoa aparecessem no mesmo degrau de importância e se fizesse do Advento uma espécie de quaresma natalícia, um tempo de preparação da festa do Natal, que o Advento não é, por mais que os reverendos padres digam que sim.

O debate foi – digamos que – duro e longo. As Igrejas orientais – e, com elas, as hispânicas – salientavam um Advento preparador da festa do Natal [oriental], a Epifania, que tinha um forte acento batismal. De facto, no Médio Oriente, a Epifania não era a festa do nascimento de Jesus, mas a da manifestação do Verbo; e, sobretudo a partir de Alexandria do Egipto, cidade situada no delta do célebre rio Nilo, passou a celebrar-se o Batismo também nesse dia, na Epifania. O Ocidente, porém, ficou-se pela Vigília Pascal. Assim sendo, a exemplo da quaresma pascal, nasceu à volta do Natal oriental (a Epifania) uma quaresma natalícia de preparação última e especial dos que iam ser batizados, prática que, como acima dizia, Roma sempre contrariou.

Para além disso, entretanto, outras coisas se passavam. O Natal oriental, a Epifania, celebrava o mistério da manifestação de Deus. Mas quando chegou ao Ocidente, partiu-se em quatro festas: o nascimento de Jesus, a apresentação aos Magos, o batismo no Jordão e a manifestação numa festa de casamento em Caná — Natal episódico —, enquanto no Oriente continuava mistérico.

Daí os pormenores episódicos da festa ocidental, agora a desaparecer, o presépio, a vaquinha, o burrinho, a manjedoura, a neve e o frio, os pastores, queijos dos pastores… O Ocidente recordava eventos, o Oriente celebrava o mistério.

No entanto, foi-se percebendo cá e lá que Aquele que veio é Aquele que há de vir: por isso, o tempo anterior ao Natal carregou-se de conteúdos escatológicos. Porque o que veio, no passado, é o mesmo que há de vir no fim dos tempos.

Mas não ficou por aqui a reflexão cristã. Não é verdade que Aquele que veio, que é Aquele que há de vir, é Aquele que vem Hoje? Não disse ele que sempre que fizerdes isto a um dos mais pequeninos é a mim que o fazeis, hoje? Vigiai, pois, hoje, porque não sabeis em que dia e a que hora virá o vosso Senhor (Mt 24,42 e 25,13). Claro que Aquele que vem é o mesmo que há de vir e o mesmo que já veio! Felizes, portanto, aqueles a quem o Senhor, quando vier, encontrar vigilantes (Lc 12,37).

Porque estais a olhar para o céu? (At 1,11) – disse o anjo aos discípulos que ficaram a olhar para o balão: Sabeis interpretar o tempo (meteorológico), mas os sinais dos tempos, esses, não sabeis interpretá-los (Mt 16,3).

Nos tempos da maturidade, o Advento tornou-se o tempo da especial atenção ao Senhor que vem hoje, que se manifesta hoje, nas pessoas e nos acontecimentos, de modo positivo e de modo negativo, diretamente ou através do seu Espírito, que sopra onde quer e quando quer (Jo 3,8), mesmo através das pedras (Mt 3,9).

Atento à realidade do Tempo, às riquezas da vida e seus atropelos, o cristão “esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações em que participa juntamente com os homens de hoje quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus” (GS 11).

O Advento é, portanto, um alerta da Liturgia: Atenção! O que veio e que há de vir vem hoje também. Atenção! Estai atentos! Não vá dizerdes depois que nunca me vistes por aí com fome e com sede ou até a dividir a capa com um pobre!

Antigamente, a divisão do ano litúrgico não se fazia tão nítida como hoje. Não havia propriamente um ano litúrgico a que se seguia outro ano litúrgico. Havia apenas um tempo litúrgico, irrepetível, porque sempre novo, ultrapassado, portanto, o tempo do eterno retorno. Só que… os livros litúrgicos haviam de ter um início, qualquer que ele fosse. Missais houve que começavam pela Novena do Natal e acabavam com o Advento!, lançando assim um apelo às Igrejas que pusessem os olhos no fim do tempo, na escatologia. No entanto, o que se impôs universalmente foi que a divisão do ano litúrgico se fizesse pelo início do Advento. Por essa razão, ele passou a ser o primeiro tempo do ano (litúrgico), se bem que, como sabemos, a sua temática seja igual à dos últimos domingos do Tempo Comum.

Aqui está, portanto, o sentido mais autêntico deste Advento que começamos, fixado só depois de uma lenta decantação feita pelo Tempo: o Advento só se fixaria definitivamente na baixa Idade Média.

“A sua vinda última será, em boa verdade, semelhante à primeira… mas também hoje os fiéis desejam recebê-lo no seu próprio tempo”, assim explicava o Diácono sírio Santo Efrém, no séc. IV.

Cristo Rei

Lida de trás para a frente ou da frente para trás, a Bíblia é um tesouro donde se tiram sempre coisas novas e coisas velhas, tantas, tantas…! Mas algumas páginas ou cenas ficam-nos marcadas para sempre! Não há livro nenhum, pelo menos na cultura do Primeiro Mundo, tão entranhado na cultura culta e na popular como a Bíblia. Então há cenas que, mesmo sem querer, toda a gente conhece: o relato da Criação, o Dilúvio, a passagem do Mar Vermelho, a mesa posta no alto do monte para todos os povos, o presépio, o Sermão da Montanha…

Quero dizer que, de toda a Bíblia — e quanto mais poderia acrescentar!: a figura de Job, Jonas e a baleia, os novos Céus e a nova Terra do Apocalipse… —, cenas há que, bíblicas ou não, pela sua grandeza ou monumentalidade, são, isso mesmo, bíblicas!

Mas poucos textos evangélicos exerceram e exercerão sobre o tempo cristão um fascínio tão grande como este do Juiz Supremo que separa as ovelhas dos cabritos, Mateus 25.

Na Idade Média, por exemplo, foi ele que levou a cristandade à lista das 14 obras de misericórdia. 7 ditas corporais, embora algumas seja de um tempo há muito passado: Dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos, e enterrar os mortos. E outras tantas ditas espirituais: Dar bons conselhos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, e orar a Deus per vivos e mortos.

Hoje em dia, todos percebemos, ao menos teoricamente, que a caridade é o campo de verificação da fé — ”a fé sem obras é morta” (Tg 2,17) — e que Mateus 25 é, em boa verdade, o compêndio da doutrina e das exigências de todo o Evangelho.

Mas isto acontece não só na teologia cristã. Também as grandes religiões do mundo são unânimes em reconhecer a importância e centralidade religiosa do núcleo deste texto ou do que ele contém: “A piedade não consiste em voltar o rosto para o Oriente ou para o Ocidente. A piedade está no que crê em Deus, no … que dá os seus bens por amor dele … aos órfãos e necessitados, aos viajantes e aos pedintes; que resgata cativos, que ora, que dá esmola, que respeita os compromissos, que é paciente na adversidade e nos tempos de violência… Esses são os justos e os que levam Deus a sério” (Alcorão 2,172). E Confúcio diz: “Quando não sabemos servir os homens, como é possível servirmos os manes [as divindades]?” (Conversações 11,11). “Revestir-se de mantos bordados, cingir espadas aceradas, comer e beber em demasia, acumular riquezas, tudo isso se chama roubo e mentira e não provém do Tao”, do Livro da Via e da Virtude, LIII, do chinês Tao-te-Ching.

Voltando a Mateus 25, ele é, certamente, o exemplo bíblico mais impressionante da entrada de Deus na história: ele sai-nos ao encontro no imanente, no temporal e no histórico, no humano. Para nós, a Palavra de Deus não passa muitas vezes de um texto carregado de história, é verdade, mas um texto de outro tempo, vindo de um passado longínquo e das cavernas da História. E, no entanto, é ele que nos leva não a um novo entendimento de Deus, mas a uma nova maneira de nos encontrarmos com ele. Hoje, como sempre, em todo o tempo, a realidade histórica é feita de dor e sofrimento, de pobreza, de fome e de sede, de abandono. Deus padece da dor do mundo e, por isso mesmo, o lugar da dor do homem acaba por ser o melhor da experiência do transcendente. Quer queiramos quer não.

É nos que cabem na designação que é dita por esta tão perigosa palavra, “os pobres”, que Jesus, o Cristo, particularmente se manifesta, pois que, como diziam os antigos, os pobres são a sua presença real na História.

Como pode alguém comungar do pão e beber do vinho da Eucaristia e menosprezar depois ou esquecer pura e simplesmente a presença real de Jesus nos “tus”, nos irmãos mais pequeninos e sofridos?

Chegamos hoje ao fim do Ano Litúrgico, durante o qual celebrámos todo o mistério de Cristo: da Incarnação à Cruz e à Ressurreição, isto é, à Redenção, revisitámos-lhe os passos, o ensino e os gestos, contemplámos a Criação, a História (a nossa História), a Vida e os Vivos, também a Morte e os que morreram, e, agora no fim, confrontamo-nos nós com os Fins. Para isso, há que praticar, levar à prática, que a fé sem obras é morta. Mas é das obras que se faz o Reino: de um planeta que se desfaz e que alguns — poucos — tentam salvar, da realidade da fome e da sede dos famintos e sedentos de justiça e de pão ou de trabalho, das dificuldades dos estrangeiros exilados dos seus países, dos marginalizados na e por uma sociedade de loucura e numa cultura de loucos, das dores dos doentes à espera de conforto e de saúde, da multidão dos encarcerados em prisões sobrelotadas, dos infernos suburbanos colocados mesmo ao lado de paraísos artificiais onde se morre de tédio, dos desempregados e dos iletrados de um mundo laboral só comparável ao dos meados do séc. XIX, voltado unicamente para o lucro da riqueza…

Por isso, em tempo que é de crise e até de perigo de existência, é necessário partilhar, porque há fome e há sede, para muitos não há que vestir nem onde viver, nem no planeta sequer que se desfaz …

Então, “O Rei dirá aos da sua direita: Vinde, benditos de meu Pai!… E em seguida dirá aos da esquerda: Afastai-vos de mim porque tive fome e tive sede, e estive na prisão…” e não me socorrestes.

A Liturgia nos dirá de hoje a oito: “O Senhor vos faça crescer e abundar na caridade para com os outros e para com todos” (1Ts 3,12). É a esperança cristã.

Arlindo de Magalhães, 25 de novembro de 2018

Este pobre grita e o Senhor o escuta!

“Este pobre grita e o Senhor o escuta!”

1 – “Este pobre grita e o Senhor o escuta“. (Sl 34, 7). “As palavras do salmista tornam-se também as nossas no momento em que Quem escreve aquelas palavras não é estranho a esta condição; bem pelo contrário. Faz experiência direta da pobreza e, apesar disso, transforma-a num cântico de louvor e de agradecimento ao Senhor. Também a nós hoje, imersos em tantas formas de pobreza, este salmo permite que compreendamos quem são os verdadeiros pobres para os quais somos chamados a dirigir o olhar, para escutar o seu grito e conhecer as suas necessidades.”

…”Com efeito, ninguém pode sentir-se excluído pelo amor do Pai, especialmente num mundo que frequentemente eleva a riqueza ao primeiro objetivo e que faz com que as pessoas se fechem em si mesmas.”

Gritar“. Seremos nós capazes de estar despertos e atentos ao grito do pobre que clama” por melhores condições de vida e por um mínimo de dignidade e não serem perseguidos em nome duma falsa justiça, oprimidos por políticas indignas deste nome e atemorizados pela violência?”

Neste Dia devemos fazer um sério exame de consciência e verificarmos se somos verdadeiramente capazes de escutar os pobres.

Responder“. Qual será a nossa resposta ao grito do pobre? Vamos ficar indiferentes e impassíveis ou tentar envolver-nos e descobrir formas de criarmos condições para que se chegue às causas da pobreza combatendo as desigualdades cada vez mais profundas e, defendermos uma melhor distribuição da riqueza?

Como muito bem diz o Papa, na sua mensagem, este Dia pode ser uma gota de água no deserto da pobreza, mas também pode ser um sinal de partilha para com os que estão em necessidade, para sentirem a presença ativa de um irmão e de uma irmã. O nosso envolvimento tem que ser pessoal e procurarmos que seja alterada uma situação degradante e revoltante que a todos nós deve preocupar e obrigar a fazer algo.

Libertar“. “A pobreza não é procurada, mas é criada pelo egoísmo, pela soberba, pela avidez e pela injustiça” E o que podemos fazer?

O padre Américo não se cansou de defender e gritar bem alto que cada freguesia devia tratar dos seus pobres. Se isto fosse feito e cada um de nós se sentisse envolvido e responsável para que tal acontecesse, estávamos no bom caminho e dados os primeiros passos para uma sociedade mais justa e fraterna.

E porque não pensarmos e pormos em prática um PLANO NACIONAL DE LUTA CONTRA A POBREZA, com um Serviço Nacional de Luta contra a Pobreza, na dependência da Casa Civil do Presidente da República?

Este Serviço seria composto por sete membros designados pelo Presidente da República, Primeiro-Ministro, Tribunal de Contas, EAPN -European Anti Poverty Network (Rede Europeia anti Pobreza, Associação Nacional do Combate à Pobreza, Associação Portuguesa Transparência e Integridade e Banco Alimentar. Funcionaria na Presidência da República, no primeiro trimestre de 2019 elaborariam um Regulamento Interno, com sete artigos., o mais simples e rigoroso possível.

Nunca esquecer que isto seria um SERVIÇO a prestar à sociedade e comunidade mais carenciada, sem remuneração, com direito a ser compensado de despesas efetuadas, devidamente comprovadas e sem exageros, com a máxima parcimónia.

Os fundos para o desenvolvimento deste trabalho sairiam dos orçamentos das seguintes entidades: Tribunal de Contas, Casa Civil da Presidência da República, Conselho de Ministros, Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, Ministério da Defesa, Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia. O contributo de cada entidade seria 1% do seu orçamento anual. Também seria uma fonte de receita o dinheiro apreendido pela PSP, GNR e PJ, dos roubos de que não fossem localizados os seus legítimos donos, assim como o resultado da venda de armamento apreendido e, de objetos perdidos e não reclamados. Todo este processo seria supervisionado e fiscalizado pelo Tribunal de Contas.

Seriam criadas sete zonas no País: Trás- os -Montes, Minho e Alto Douro / Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral / Alto e Baixo Alentejo e Algarve / Açores / Madeira / Zona Metropolitana de Lisboa / Zona Metropolitana do Porto.

Este movimento partiria do interior para o litoral, tendo em conta que as zonas mais carenciadas e abandonadas são as do interior, mas tendo sempre como base as freguesias e, um trabalho feito da base para o topo. Cada freguesia faria o levantamento das suas principais carências e dificuldades, que encaminharia para o Serviço Nacional de Luta contra a Pobreza, avançando desde logo com propostas de trabalho e de soluções para combater essas carências.

Entretanto, até ao final do corrente ano seriam designados os sete membros do Serviço Nacional. A cada um destes elementos seria atribuído uma zona, ficando responsável pela coordenação do trabalho a desenvolver.

Na primeira semana de cada mês reuniria num concelho da sua zona, a convite desta zona, para no local começarem a ter uma primeira noção das dificuldades e necessidades existentes e, desde logo, uma primeira abordagem a possíveis soluções. Este levantamento seria mensal e dado público conhecimento a todos nós pela Casa Civil do Presidente da República, através dum simples e concreto relatório do Serviço competente. Para quê? Para que cada um de nós e, muito em especial, cada zona e cada freguesia, tivesse conhecimento concreto e real das carências e pudesse contribuir para as mitigar e ultrapassar.

Este trabalho não seria para ser feito SÓ por aqueles membros, mas por TODOS e CADA um de nós como corresponsáveis de todo o processo.

Todos os que andassem no terreno a proceder ao levantamento teriam de o fazer de coração aberto e, atento, a quem era dirigido todo este trabalho e não se considerarem como tendo todas as soluções e respostas aos problemas.

Neste momento e, segundo o Instituto Nacional de Estatística, praticamente um quarto da população portuguesa, 25%, está no limiar da pobreza.

Com o Plano agora apresentado teríamos o objetivo de em cada legislatura reduzir um quarto deste número, de modo a passadas quatro legislaturas termos reduzido substancialmente os 25% da população nacional mais carenciada.

Não podemos continuar indiferentes, a uma situação tão grave que atinge tantos milhões de irmãos nossos. Não podemos esperar que os poderes instituídos resolvam por si só o problema, pois se assim fosse não existiria ou, já teria sido combatido. Temos de ser TODOS E CADA um de nós a tomar consciência das suas responsabilidades e fazer algo que contribua efetivamente para o resolver.

Se assim acontecer, daqui a um ano podemos ter em mãos um levantamento rigoroso e efetivo da situação e propostas de solução.

Temos de estar atentos aos três verbos em que o salmo caracteriza a atitude do pobre e a sua relação com Deus: “GRITAR” “RESPONDER” “LIBERTAR” e, que em cada ano que passe, podermos afirmar que algo foi feito e, que os números desta verdadeira calamidade vão diminuindo. Não somos nós um povo solidário e fraterno que sempre sabe dar uma resposta nas alturas mais difíceis e nas grandes tragédias? Só temos de ter consciência que as desigualdades devem diminuir e não aumentar e, que não são os outros que devem resolver este problema, mas TODOS E CADA UM DE NÓS.

Martin Luther King, disse um dia: I Have a Dream! – Eu tenho um Sonho!

O poeta escreveu e cantou: “Sempre que um homem sonha, o Mundo pula e avança, como bola colorida, nas mãos duma criança”.

Vamos TODOS dar o nosso melhor no sentido deste sonho se tornar uma realidade!

António Martins, 18 de Novembro de 2018

Elias

Washington Allston (1818)

Elias foi o maior profeta-não-escritor de Israel. Viveu no tempo do rei Acab (874-853 aC), que tinha casado com uma mulher estrangeira, Jezabel. A mulher deu-lhe a volta ao miolo e passaram os dois – e com eles o povo – a adorar Baal, um ídolo pagão, pondo de lado Iavé e a sua Lei. Para tudo ficar nos conformes, começaram a matar os profetas do Deus de Israel.

Elias foi então enviado a Acab a anunciar que Iavé ia mandar, como castigo, uma seca sobre Israel. Foi este o primeiro passo de uma luta titânica do profeta contra o culto idolátrico de Baal.

Baal era o deus das tempestades e da fertilidade. Portanto, no seu culto, a água tinha uma imensa importância: sem água, tudo morria. Não é, pois, de admirar que Baal e seus fiéis seguidores tenham tentado controlar eles [as águas d]a chuva. Mas Elias anunciou que, como castigo, não choveria em Israel. E foi verdade. No cap. 18,21-40 do 1º Livro dos Reis, relata-se a cena bíblica da luta final entre Elias, o profeta único de Iavé, e os profetas todos de Baal: o céu coberto de nuvens negras e espessas, ao que se seguiu um vento fortíssimo e uma chuva torrencial. Ao tempo, já havia Leslie´s! E Elias ganhou a contenda: “Iavé é que é Deus!” (1 Re 18,39). E ficou provado que os profetas de Baal eram uns zecas e o seu deus um zequinha.

Mas, ao lançar a maldição de uma seca sobre Israel, foi garantido a Elias que, a ele, nunca lhe faltaria a água, mas que os seus compatriotas pagãos nunca a teriam: Vai e esconde-te na ribeira Querit, um pequeno afluente do Jordão, que aí a água nunca te faltará. E eu providenciarei que os corvos te levem todos os dias, de manhã e à tarde, pão e carne (1 Re 17,3.5) – assim lhe prometeu Iavé.

Só quando a ribeira secou é que… o episódio de hoje.

Portanto, resultado?: “Iavé é que é Deus!”.

Nessa altura, já Elias estava hospedado em casa da pobre viúva que o acolhera, onde a pouca farinha, o nenhum azeite e a pouca água guardada numa vasilha nunca faltaram lá em casa. Os pobres têm destas coisas, do pouco fazem muito, contrariamente aos ricos, que quanto mais têm mais querem e mais estragam!

Nesta luta de Elias contra o rei Acab, a pérfida Jezabel tentaria matar Elias, mas acabou ela por morrer atirada de uma janela abaixo (2 Re 9,32-33).

Salienta-se a confiança do profeta no Deus de Israel, em Iavé, e a partilha de bens de dois pobres, uma viúva e um profeta na mó de baixo!

Numa cultura com muito mais de 2.000 anos, em que poetas e escritores tentavam explicar o mistério, mas impenetrável…, “Iavé é que é Deus!” (1 Re 18,39).

“O Novo Testamento entende que ’a fé’ são os ensinamentos básicos acerca de Jesus em que se fundamenta a nossa confiança” (Aquilino de Pedro)!

Arlindo de Magalhães, 11 de novembro de 2018

Vocação e tarefa

Joan Miró

Não há outro Deus senão aquele que de si disse que se chamava EU SOU AQUELE QUE SOU > Iavé (Ex 3, 14). Mas os Judeus não ousavam sequer dizer o seu nome: por isso, quando liam a Bíblia e aparecia a palavra Iavé pronunciavam, Adonai, isto é O Senhor.

Dizer o indizível, o inexprimível, é muito difícil. Nós, humanos que o digamos: ou será que as cartas de amor já deixaram de ser ridículas?, como reconhecia Fernando Pessoa.

Dizer o indizível, dizer de Deus uma palavra que seja, é muito difícil. É esta de resto uma das maiores dificuldades das Religiões. Chamar-lhe simplesmente “meu tudo”, Alá, Iavé, Eloim, Adonai ou El Shadai, ou dizer, com S. João da Cruz, ”mostra tua presença / e mate-me tua vista a formosura. Lembra-te que a doença / de amor nunca se cura / senão com a presença e a figura”, revela já alguma coisa de indeclarável. As religiões bem tentaram escapar à dificuldade diversificando-lhe os nomes e multiplicando sacrifícios e holocaustos, orações e ritos, liturgias e festas! Mas não foram longe, como de resto já Isaías enunciava no início do seu livro. “Estou farto” (Is 1,11), punha ele na boca de Iavé.

É que também as religiões necessitam, de quando em vez, de dar saltos qualitativos em frente. Chamem-se-lhes Concílio Vaticano II ou Livro do Deuteronómio.

Deuteronómio é uma palavra grega formada de duas outras: deuteros (segunda) + nómos (Lei). O Livro do Deuteronómio é o Livro da 2ª Lei. A primeira fora dada por Deus ao Povo, no Sinai, e está espalhada pelos livros do Êxodo, do Levítico e dos Números. A 2ª Lei é esta, a do Deuteronómio, aplicada à vida sedentária do Povo.

Literariamente, o livro está escrito como se se tratasse de um pacto estabelecido entre um rei e o seu Povo; há mesmo escritos semelhantes entre os povos vizinhos do Israel naquele tempo. Sempre o diálogo e intercâmbio entre a cultura e a fé!

Para lá das leis judaicas e do seu minucioso — torna-se hoje quase impossível para um ocidental ler este livro, tantas são as minudências legais e rituais que impõe, por exemplo, no sacrifício de um touro oferecido a Iavé! — há nele afirmações basilares: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças (ou sejam, a riqueza e o poder político)” (Dt 6,5).

Era isto que o escriba queria ouvir da boca de Jesus, esse homem que despertava paixões, é verdade, mas de quem havia que desconfiar criticamente.

Jesus sossegou o escriba. Por isso não esqueceu, como não podia deixar de fazer, uma outra afirmação, não do Deuteronómio mas do Levítico (19.18): “Amarás o próximo como a ti mesmo”. No entanto, a vaguear nos meandros de um culto ritualista e vazio de sentido, o Judaísmo esqueceu-se muitas vezes do próximo, apesar de todas as violentas chamadas de atenção do próprio Livro do Deuteronómio mas sobretudo dos Profetas. Por isso, em toda a pregação de Jesus, a questão de Deus passa pelo Homem, por todos os homens, mas sobretudo pelos pobres.

Diante da síntese de Jesus à questão que lhe fora colocada, nada mais há a dizer; a Lei resume-se no Amor que “vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios”. O escriba ficou então definitivamente sossegado e concordou com a resposta; afinal, ele não andava longe do Reino de Deus, como reconheceu Jesus.

«Amarás o Senhor teu Deus… e o próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos de resumem toda a Lei… e os Profetas» (Mt 22,36-40).

Eis a questão, o essencial da questão: em última análise, o Amor de Deus, Criador e Fim das criaturas; mas o seu critério é o Amor do Próximo. De facto, “aquele que não ama o seu irmão que vê, é incapaz de amar Deus que não vê” (1 Jo 4,20). A Caridade e a Fé são inseparáveis: a Fé é o fundamento “radical” do Amor, e o Amor a prova provada da Fé (“por isto reconhecerão que sois meus Discípulos: se vos amardes uns aos outros” – Jo 13,35).

Esta é a nossa vocação de batizados, de Discípulos de Jesus. Pelo Amor do Próximo nos têm reconhecido ao longo dos séculos (“Vede como eles se amam”, Tertuliano, séc. III), em nome dele nos têm invetivado (“religião, ópio do Povo”), e pelo Próximo tanto temos batalhado ao lado de tantos…

“Amarás o Senhor teu Deus… e o próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos de resumem toda a Lei… e os Profetas”.

O Amor é hoje uma palavra traiçoeira, em que a gente se não pode fiar muito, utilizada em todas as frases, devotas ou políticas.

Que vamos, pois, fazer com ela?

A sensibilidade e as necessidades de cada tempo vão-lhe dando contornos. Não é verdade que, nos tempos conturbados da 2ª Guerra Mundial uma sua tradução dava pelo nome de Democracia, mas agora já não, e não só no Brasil e na Itália?

“Amarás o Senhor teu Deus e o Próximo como a ti mesmo”. Neste século que já conheceu um pouco de todos os “ismos”, razias nucleares ou étnicas, multidões famintas, muros e redes levantados a separar, Natureza destruída em nome de um progresso material descontrolado…, é ou não é Amor uma palavra louca?

E que religião a proclama? O Judaísmo que a conhece bem? Parte grande do Islamismo que a nega em nome da jihad, a “luta no caminho de Deus” transformada em “guerra santa”? E o cristianismo que a conhece de cor e salteado!

Esta é a nossa vocação e a nossa tarefa para o tempo presente. E não nos demitiremos de ensinar isto aos mais novos. Porque entregaremos o que nos foi dado. Os nossos maiores ensinaram-nos a nós que “amarás o Senhor, teu Deus“, e “o Próximo como a ti mesmo”. Nós o ensinaremos aos nossos irmãos e aos nossos filhos.

Arlindo de Magalhães, 4 de novembro de 2018

Sacerdotes

Gabriel Guerrero | https://www.facebook.com/tavakultur/

Do Novo Testamento ouvimos hoje, como 2ª leitura, um magnífico texto: trata-se de uma mensagem dirigida aos cristãos da 2ª geração, assaltados uns por dificuldades vindas do meio pagão e sua cultura, e outros provavelmente convertidos do judaísmo.

Estes segundos tinham saudades da majestade do Templo de Jerusalém destruído pelos romanos no ano 70 e do esplendor dos seus ritos, dos numerosos sacrifícios de novilhos e cordeiros que — a pedido dos crentes — os sacerdotes ofereciam ao Deus de Israel, IAVÊ.

Foi, portanto, a eles que o autor da Carta aos Hebreus (Judeo-cristãos), um desconhecido, quis incutir coragem e confiança dando-lhes ao mesmo tempo uma segura base doutrinal sobre a excelência do sacerdócio de Cristo.

Eu explico.

O primeiro Isaías — expliquei domingo passado que houve três poetas chamados Isaías, três que escreveram um livro dito “do Profeta Isaías — põe na boca de Deus que o Senhor da criação inteira não quer nem (sacrifícios de) novilhos nem de cordeiros: «Estou farto dos vossos holocaustos de cordeiros e novilhos gordos; eu não quero o sangue nem de bezerros nem de bodes (…). Cessai [mas é] de fazer o mal e aprendei a fazer o bem, respeitai o direito, protegei o oprimido, fazei justiça ao órfão e defendei a viúva» (Is 1,11/17).

Nesta linha, Jesus não oferece nada ao Pai, «oferece-se a si mesmo» (Hb 9,14), oferece «o seu próprio sangue» (Hb 9,12.14), ele que é o verdadeiro «cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo», sinal do seu amor ao Pai e aos irmãos, do que deu provas em toda a sua existência terrena que teve o seu momento culminante na cruz.

Isto é: assim como Jesus se entregou confiadamente ao Pai — «nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46) —, depois de ter vivido toda a sua vida de uma maneira absolutamente nova, em liberdade e amor diante de tudo e de todos, assim os que, pelo batismo, participam da sua morte e ressurreição, são homens novos, capazes de viver em liberdade e amor.

Na sua 1ª Carta, Pedro, num outro texto repassado dos tons da cultura religiosa e litúrgica do templo de Jerusalém, diz o mesmo doutra maneira: «Vós participais na edificação de um templo espiritual onde sois sacerdotes a fim de poderdes oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus» (2,4-5).

Isto é: assim como Jesus já não ofereceu ao Pai nem novilhos nem cordeiros, mas se ofereceu a si mesmo em toda uma vida agradável, também nós somos convidados a viver como ele viveu, os valores que ele viveu, uma vida nova e diferente como ele viveu, segundo os valores do Reino de Deus, a verdade, o amor e a paz.

Isso é o que Deus quer do homem. E pronto. Numa palavra, trata-se de que assumamos todos, como Jesus, a nossa vida, com as suas responsabilidades concretas, pessoais, familiares, profissionais, culturais, sociais, nacionais e internacionais. A tudo isso o autor desconhecido da carta [enviado aos Hebreus] que chama sacrifício em favor dos homens e ao mesmo tempo agradável a Deus, utiliza muitas vezes a palavra sacrifício. E este sacrifício todos os sacerdotes do Novo Testamento, isto é, todos os batizados, o podem oferecer a Deus.

Todos os trabalhos, portanto, que sobre cada um de nós impendem, trabalhos do mundo ou da Igreja, os cristãos assumem-nos nesta perspetiva sacerdotal. O enfermeiro quando assiste o doente, o médico quando cura o paciente, o assistente social quando ajuda o necessitado, o advogado quando orienta o consulente, o político quando busca soluções, o lavrador quando cultiva a terra, o operário quando constrói a obra, o empresário quando gere retamente…

Podem todos e cada um transformá-la num meio de o homem se aproximar de Deus, para reconciliar as dimensões da vida humana carregada de conflitos, para ajudar a suportar as tensões e os sofrimentos inevitáveis que ela comporta, para humanizar mais o mundo como Casa do Homem que deve ser.

Eu lembro-me muitas vezes daquela oração diária dos antigos jocistas: “Meu Senhor Jesus Cristo, ofereço-vos o meu dia inteiro: os meus trabalhos, as minhas lutas, as minhas alegrias e as minhas penas…”.

O Ritual do Batismo, depois da água e da unção Ritual do Batismo, diz ao batizado: “fazes agora parte de um Povo de Reis, Sacerdotes e Profetas”. Quando posso, tento explicar esta linguagem, quando não posso…, alguém dirá para si “Este está tolo!”.

Arlindo de Magalhães, 28 de outubro de 2018

Sofrimento

Pablo Picasso

Às várias figuras do Antigo Testamento se dava o nome de servos de Iavé: Abraão, Moisés, David, um futuro rei ideal, etc.

Mas há quatro poemas do Segundo Isaías (o livro dito do profeta Isaías foi escrito por três pessoas diferentes) que falam particular e especialmente no Servo de Iavé. Acabámos de ouvir um bocadinho do último dos quatro: “Aprouve ao Senhor esmagar o seu servo pelo sofrimento para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Mas terá uma posteridade duradoura, e viverá longos dias. E por isso, por causa dos seus sofrimentos, verá a luz” (Is 53,10-11). Nós conhecemos um outro bocado bem maior deste poema, que se lê todos os anos em 6ª feira Maior:

“Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós. Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes, cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as faltas de todos nós” (Is 56,2a-6).

O servo de Iavé deste 3º Isaías entendeu-se que se referia ao Messias prometido que havia de vir, servo esmagado pelo sofrimento que haveria de pagar o pecado, mas também de salvar a humanidade, tomando sobre si as suas iniquidades. Assim se pensou, de facto, durante séculos, até ontem.

Como assim?

Estes poemas foram escritos num antigo e determinado tempo histórico, tempo de problemas reais e muito concretos: Israel esperava já a libertação da Babilónia a levar a cabo por Ciro, o rei persa, que a geraria. E isso aconteceu. Nessa altura, Israel aumentou o objetivo: esperar, não já a libertação, mas o reino messiânico. ”Te(re)mos o Emanuel, Deus connosco!” (Is 8,10).

Modernamente foi fácil perceber que Isaías, os Isaías, eram 3, não eram historiadores, eram poetas. Poetas que não perceberam que o tal servo de Iavé não era “um Emanuel, um Deus connosco” (Is 8,10). Percebeu-se que o Servo de Iavé não era um indivíduo, era o povo de Israel, destroçado pelo sofrimento causado pelo desterro para a Babilónia, um país estrangeiro que o amordaçou, depois de perdida a independência.

Os poemas do Servo de Iavé referiam-se ao sofrimento dum povo, Israel, que libertado do seu pecado, se converteu, de novo abrindo as portas do um futuro. E de facto, 70 anos depois do desterro para o exílio, o povo pôde voltar ao seu país, à sua terra. Claro que, mesmo depois de retornado, logo se viu outra vez confrontado com novas situações de sofrimento, perseguido por aqueles a quem a Bíblia chama muitas vezes os ímpios, os maus, mas a quem, mesmo assim, continuava a ser prometida a salvação e a glória.

Mais tarde ainda, o Novo Testamento pensou que o Servo de Iavé era Jesus, o Cristo. Embora o autor dos ditos poemas não tenha tido a intenção de adivinhar futuros — a paixão e morte de Jesus para a remissão dos pecados. Não foi para isso que Jesus apareceu na História! Por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus, e incarnou…, e se fez homem?

Mesmo assim, as perguntas não acabaram aqui. O mal, a morte, os maiores enigmas da vida do homem.

Os mestres da suspeita acusaram o cristianismo de montar negócio em cima da dor e do pecado.

E o sofrimento?, não é algo que existe mas não devia existir? Que Deus é este – perguntavam – se existe o sofrimento?

Praticamente no nosso tempo, durante e depois da 2ª Guerra Mundial, esta pergunta foi radicalizada sobretudo dos lados da fé (judeus e cristãos): há Auschwitz porque não há Deus, ou porquê Deus apesar de Auschwitz? Em qualquer dos casos, sempre a mesma pergunta: se há Deus porquê o sofrimento?

Só quem sofreu o sofrimento e o venceu, qualquer que ele tenha sido, o entende. Por isso me curvo sempre diante dos homens e mulheres curtidos ao peso de sofrimentos e dores: esses adquirem normalmente a têmpera dos fortes e inquebráveis. Os mais somos aço fraco, não temperado nem sujeito a prova de esforço, que quebra à primeira dificuldade, pois que vivemos hoje quase todos numa cultura de facilidade que ignora e esconde o sofrimento.

Sofrimento não quer dizer dor de dentes que se debela com uma ida ao médico ou uma simples pastilha, não quer dizer também andar um bocado mais fatigado psicologicamente, também há pastilhas e médicos para isso, sofrimento é mesmo dor, funda e pungente, de perda quase sempre, seja pelo que for, e esforço, trabalho e luta, pelo que se persegue e quer construir, de desespero às vezes, seja por não poder dar de comer aos filhos, por ver destruída a liberdade, por não poder construir a liberdade, a paz e a justiça ou ver simplesmente acometida a vida. Sofrimento é ver negado o futuro, é o desastre e a absoluta impossibilidade de ser homem. Sofrimento é o terrível da doença e da dor física.

Teremos de resignar-nos diante do sofrimento? As religiões da velha Índia, por exemplo, preocupam-se sobretudo com esta pergunta. E nós, meu Deus, temos de calar-nos perante a morte do nosso André?

Mas damos graças pelos que não cedem perante tudo aquilo que esmaga os homens e desfigura a sua humanidade: pelos que estão nas tarefas políticas entendidas como um serviço que se presta aos outros e à comunidade, pelos que trabalham sem desanimar na investigação científica; pelos que estão presentes em todos os momentos junto dos feridos da vida, por aqueles que simplesmente realizam o seu trabalho diário com abnegação, pois têm consciência de que são fios de uma malha que, se se romper, torna os pobres ainda mais pobres e os excluídos ainda mais excluídos, etc Paulo dizia que se alegrava com os sofrimentos que suportava porque assim completava na carne o que faltava à paixão de Cristo (Cl 2,4), consciente de que a dor faz parte do tempo presente (Rm 8,18); por isso, “até este momento, sofri fome e sede e nudez, fui esbofeteado, andei perdido e cansei-me a trabalhar com minhas próprias mãos. Amaldiçoado abençoei, perseguido aguentei, caluniado consolei. Tenho sido até hoje, verdadeiramente lixo do mundo e escória da humanidade” (1 Cor 4,11-12). Mas completava: “Mas estou convencido que a condição do tempo presente não tem comparação com a glória que há de revelar-se em nós” (Rm 8,18).

Meus irmãos: as vindimas acabaram, começa a cheirar a amanhã, a Advento!

Arlindo de Magalhães, 21 de outubro de 2018

A Sabedoria

Lota da Póvoa de Varzim

A Sabedoria é uma riqueza humana de que praticamente todos temos consciência – povos, grupos humanos ou indivíduos – adquirida na vida (por isso a Sabedoria implica adultez) e por experiência própria (individual ou colectiva), muito mais que pela educação/instrução. O especialista de uma qualquer matéria pode não ser e não é normalmente um sábio.

Todos os povos (o francês ou o inglês), todos os grupos humanos (o Benfica ou a Comunidade), todos os indivíduos (eu ou tu) têm uma sabedoria própria, numa parte recebida (a tradição) noutra adquirida (na Escola ou de um amigo/pessoa ou instituição marcante), mas sobretudo reflectida e construída a partir da experiência própria.

Nos povos antigos, a sabedoria colectiva guardava-se na memória ou na tradição oral. Todos os povos têm os seus adágios, os provérbios, as frases-a-propósito, as suas histórias, os refrães, as cantilenas, etc. Quando a escrita se popularizou, muita dessa sabedoria popular passou-se ao papel, a escrito. Foi sobretudo no séc. XIX, com o Romantismo, que isso se fez relativamente à cultura popular – Almeida Garrett, quando o percebeu, foi a correr palmilhar o país de cima a  baixo a recolher o romanceiro, o adagiário, o costumeiro, etc, embora a percepção da necessidade de o fazer tenha começado muito antes de o próprio Jesus ter vivido entre nós.

Foi assim em Israel, como praticamente em todos os povos, sobretudo a partir de grande sábio, o rei Salomão. Quem se não lembra de A sentença de Salomão do velhinho Livro da terceira (“Parta-se o menino ao meio…”)? De facto, foi depois do exílio e do retorno à pátria, depois desse período da vida nacional em que o povo de Israel, face ao desastre e à possibilidade do seu total apagamento, foi obrigado a perguntar-se por si próprio, que Israel começou a passar a escrito a sua Sabedoria de povo já maduro. É esta a origem de uma série de Livros bíblicos sapienciais, cinco ao todo, uma espécie de Pentateuco sapiencial (os Livros dos Provérbios, de Job, de Coelete ou Eclesiastes, de Ben Sirá ou Eclesiástico, e o da Sabedoria propriamente dito). Tal como, no passado, pelos profetas, foi depois pela boca dos Sábios ou da Sabedoria que Iavé se dirigiu ao Povo.

Ela é ”um sopro do poder de Deus, uma irradiação pura da glória do Omnipotente” (Sb 7,25). Por isso, “a sua intimidade [da Sabedoria] com Deus proclama a nobreza da sua origem…, ela está iniciada na ciência de Deus e é ela quem escolhe as suas obras” (8,3-4). Por isso, Salomão, o Sábio por excelência, ora assim: “dá-me a sabedoria que se senta junto do teu trono… [pois que] mesmo que alguém seja perfeito entre os homens, sem a sabedoria que vem de ti, não é nada! (9,4.6).

Além do sábio Salomão, que foi rei nos anos 970-930 aC, conhecemos o nome de um outro sábio, Jesus Ben Sirá, que deve ter escrito o livro que leva o seu nome por volta do ano 190 aC: “Toda a Sabedoria vem do Senhor e permanece junto dele para sempre” (1,1) Mas a sabedoria de Israel é, na sua maior parte, como aliás a de qualquer povo, uma sabedoria anónima, do povo, popular no melhor sentido da palavra. Os próprios Salomão e Ben Sirá, considerados sábios, não terão feito mais do que passar a escrito a sabedoria multi-secular do seu povo. Um provérbio – afirmação de uma verdade – é sempre fruto de um grande amadurecimento, conseguido a partir da observação. E é esta sabedoria experimentada e pessoalmente vivida que, a exemplo do que acontecia nas nações vizinhas – Mesopotâmia e Egipto, sobretudo – Israel organizou por escrito o que, de geração em geração, chegou até nós conservando assim uma tradição que, por fim, adquiriu um carácter religioso e como tal entrou na Bíblia como autêntica Palavra de Deus. “Deus ama quem vive com a sabedoria” (Sb 7,28).

Arlindo de Magalhães, 14 de outubro de 2018

À porta das igrejas

Stephanie Pharr Performing ‘The Wedding Complex’. hymHouse, Eyedrum Art and Music Gallery. 2014

Foi em 1991 que, neste domingo 27 do Tempo Comum, pela primeira vez abordei aqui a questão dos cristãos casados catolicamente, divorciados e voltados a casar (desta vez civilmente). Dei-me conta que eram muitos mais do que eu julgava, aqui na Serra do Pilar; muitos já me tinham abordado pessoalmente. Depois dessa data, foram bastantes os que me procuraram e bastantes os que — palavra passa palavra — aqui procuraram depois misericórdia e paz.

Em 1964, o inglês Graham Greene (1904-1991), tinha já  escrito um romance – O Nó do Problema – a tratar desta complicada questão: a indissolubilidade do casamento católico. Já nessa altura, Greene dizia que o casamento deixara de ser — se é que alguma vez o fora! — um sinal visível de uma realidade invisível e misteriosa que é o amor de Deus pela Humanidade, o que levou o apóstolo Paulo a chamar-lhe “sacramentum magnum”- “grande sacramento” (Ef 5,32).

A multidão dos sinistrados conjugais tem-se amontoado à porta das igrejas. Alguns vão já entrando, é verdade, embora com dificuldade, mas sempre de olhos postos no Reino dos Céus. Mas a maior parte apanha mas é, pela frente, os legistas — não pode, não pode, não pode!,  e sem licença dos puros não entram mesmo.

No entanto, em Roma, a porta já começou a abrir-se: pouco mudou ainda, mas Francisco deixou já bem claro que quer toda esta matéria bem refletida, que ele é o Papa, para lá de todos os cardeais, dos fracos teólogos fracos, dos párocos, dos legistas e dos cartórios. É que o Evangelho é muito mais que a Lei, e o Reino de Deus muito mais que a Igreja.

A Igreja católica foi-se dando conta de que era necessário abrir as portas da misericórdia e do perdão mesmo perante a disciplina do sacramento. Poderia citar João Paulo II: “que eles [os divorciados] não se considerem separados da Igreja, podendo e devendo, enquanto batizados, participar na sua vida” (Familiaris consortio, 84). E recordo também Bento XVI, era ele ainda simplesmente Ratzinger, em 1972: ” a Igreja tem um coração de mãe, que procura sempre o bem e a salvação de todos, sem excluir ninguém” e anima os fiéis a “acolherem as pessoas que vivem estas situações [de divórcio e recasamento]. É importante que o estilo da comunidade e a sua linguagem estejam sempre atentos à pessoa, a partir dos filhos, que são os que mais sofrem”. No quadro de uma comunidade aberta, é preciso fazer tudo para “educar os filhos na vida cristã, dando testemunho de uma fé vivida e praticada, sem os ter distanciados da vida da comunidade”.

Um bispo da nossa diocese, Armindo (1997-2006) era o seu nome, ousou assim, em 2005 em entrevista a um semanário da nossa praça:

«impedi-los [os católicos divorciados e voltados a casar civilmente] de participar totalmente na parte sacramental cria situações difíceis para eles e para quem os acolhe. (…) O anúncio do Reino de Deus, sem dúvida [que é mais importante que a instituição]. Privilegio sempre este aspeto. O direito canónico é temporal. Agora enquanto é vigente… A instituição precisa de ter regras. (…) Se o leigo conseguiu acertar a sua consciência com a do padre, o problema é deles. De resto, não há padre que não tenha encontrado casos como estes ao longo da sua vida…».

Veio então o Papa Francisco. Desta questão tem falado muitas vezes, em documentos e ocasionalmente. Cito apenas:

“nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar, … [mas isso] impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade” (A alegria do Amor, 325).

Permito-me citar o Pe Anselmo Borges:

“O que é que todos procuramos? A felicidade, o elemento constitutivo da felicidade é o amor, um amor sólido, estável e fiel. Mas isso hoje está como se sabe… Portugal é o país da Europa com mais divórcios, 70 por cento dos casamentos terminam em divórcio… Na falta de um amor comprometido e estável, é-se invadido pela desconfiança em relação a si próprio (o que é que eu valho e para quem e o que é que eu sou?) e pelo medo e a insegurança face ao futuro instável. E pela solidão, … uma das maiores pobrezas da cultura atual …, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações”

Arlindo de Magalhães, 7 de outubro de 2018

Tu és o Rei?

Miki De Goodaboom, ‘A Ascensão de Jesus’

Naquele dia, de manhã cedo, levaram-no a casa de Pilatos que lhe perguntou: Tu és o rei? E ele respondeu: Tu o dizes. Foi então acusado pelos sumos sacerdotes; e ele… nada! (Mt 27,12-13). Mas Pilatos insistiu: Não ouves o que dizem de ti? E ele não respondeu coisa alguma. Os sumos sacerdotes acusavam-no também de muitas coisas: Não respondes nada? Não ouves de quanto te acusam? Mas ele nada respondeu! (Mc 15,4). Fez como o servo do Senhor: Maltratado, humilhou-se e não abriu a boca” (Is 53,7). Pedro diria: Cristo… ao ser insultado não respondia com insultos, ao ser maltratado não ameaçava, entregava-se àquele que julga com justiça (1 Pe 2,23-24).

Já uma vez, em Cafarnaum, estava ele a ensinar na sinagoga, e muitos dos que o seguiam diziam: Ele está tolo? Ouvistes o que ele disse? E muitos dos seus discípulos puseram-se a andar. E ele perguntou aos Doze: Também vós me quereis abandonar (Jo 6,66).

Um tempo antes, ele tinha-lhes dito estas palavras: Julgais que eu vim estabelecer a paz na Terra? Não! Vim estabelecer, sim — vo-lo digo — mas não a paz, a divisão. Daqui em diante estarão cinco divididos numa só casa: três contra dois e dois contra três, o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (Lc 12,51-53).

Bem profetizou Isaías a estes hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está muito longe de mim. Vazio é o culto que me prestam; e as doutrinas que me ensinam não passam de preceitos humanos (Mc 7,6-7).

É verdade que Nenhum profeta é bem-recebido na sua terra (Lc 4,24). Por isso é que aquele homem que estava na Sinagoga e tinha um espírito maligno, se pôs a disparatar: Que tens a ver connosco, Homem? Vieste para nos arruinar? Eu sei que tu és o Santo de Deus! E ele ordenou-lhe: Cala-te! (Lc 4, 33-35). Mas muitos outros encheram-se de furor e combinaram o que poderiam fazer contra ele (Lc 6,11).

Uma vez, chegando a Nazaré, escandalizados, os da sua terra perguntavam-se: Mas não é este o filho dum carpinteiro? (Mc 6,3)

Um dia, chegado a Jerusalém — ele com os discípulos — entrou no Templo e começou a expulsar os que, lá dentro, vendiam e compravam. Deitou por terra as tendas dos cambistas e os bancos dos vendedores de pombas, e não deixava que levassem nada para dentro do Templo. E bradava alto e bom som: A minha casa é uma casa de oração para todos os povos, mas vós fazeis dela um covil de ladrões! (Mc 11, 15-17).

O Templo não é uma casa de vaidades nem de formalidades, é uma casa de oração para todos os povos, casa de oração ou até casa daqueles que, lá no fundo, deitam no tesouro tudo o que têm para viver (Lc 21,4).

E fez um chicote de cordas e expulsou-os todos do Templo, escorraçou as ovelhas, os bois e as pombas, moedas dos cambistas espalhou-as pelo chão, e bradava: Fora daqui! A casa de meu Pai não é nenhuma feira! (Jo 3,15.1).

Em sua autoridade!, sumos sacerdotes e doutores da Lei perguntaram-lhe: Com que autoridade fazes estas coisas? Quem te deu licença? Ele respondeu-lhes: — Eu faço-vos outra [pergunta]. Respondei-me a mim que eu depois digo-vos com que autoridade o faço! Perguntou-lhes se o batismo de João era do céu ou dos homens. Mas eles começaram a discutir uns com os outros e, não sabendo responder-lhe, confessaram: Não sabemos. E ele disse-lhes: Então, também eu não vos digo com que autoridade faço estas coisas (Mc 11, 28b-33).

Uma vez, foi ao Templo e pôs-se a ensinar: A minha doutrina não é minha é daquele que me enviou… Quem fala por sua conta procura a sua glória pessoal; mas quem procura a glória daquele que o enviou, esse é verdadeiro e nele não há impostura. … Respondeu aquela gente: Tu tens demónio! Mas ele replicou-lhes: Não julgueis pelas aparências; julgai com retidão! (Jo 7, 14-24).

Entre os fariseus havia um chamado Nicodemos, que o procurou uma vez, de noite: falaram do nascer do alto, da água e do Espírito, dos homens que odeiam a luz e praticam o mal (Jo 3, 1). Com isto, uns queriam matá-lo (Jo 7,1); outros diziam que ele era um homem de bem (Jo 7,12); outros ainda que andava a desencaminhar o povo (Jo 3, 7), dizendo que as suas obras eram más (Jo 7,12).

E não só Nicodemos. Havia outros que lhe faziam muitas perguntas. Um escriba, por exemplo, chegou-se uma vez a ele e perguntou: Qual é o primeiro dos mandamentos! E ele respondeu: O nosso Deus é o único Senhor (Mc 12,29-31). E acabou a conversa!

Na última Ceia Pascal, saiu-se a dizer: A minha alma está numa tristeza de morte … O espírito está pronto, mas a carne é fraca (14,38). Pai, afasta de mim este cálice. Não, não se faça o que eu quero, mas o que tu queres! (Mc 14,34-36). Apareceu então Judas e com ele uma grande multidão enviada pelos príncipes dos sacerdotes, escribas e anciãos. E disse-lhes: Viestes para me prender com espadas e varapaus como se eu fosse um salteador? Mas eu estava todos os dias no templo, a ensinar, e nunca me prendestes…! (Mc 14,43.48-49).

Quando chegaram ao calvário, crucificaram-no. E ele disse:  Perdoa-lhes, meu Pai, que não sabem o que fazem! (Lc 23,34). Inclinando a cabeça, entregou o espírito (Jo 19,30).

Depois de tudo isto, José de Arimateia que era um dos discípulos — secretamente, por medo das autoridades judaicas — pediu a Pilatos que lhe deixasse levar o cadáver. E Pilatos permitiu-lho.

Nicodemos, aquele que muito antes tinha ido ter com ele de noite, apareceu também trazendo uma mistura de perto de cem libras de mirra e aloés. Tomaram então o cadáver e envolveram-no em panos de linho com os perfumes, segundo o costume dos judeus.

Foi então que alguns se recordaram de uma coisa que ele tinha dito: Eu tenho muitas mais coisas a dizer-vos e a julgar a vosso respeito; mas do que falo ao mundo é do que ouvi àquele que me enviou e que é verdadeiro (Jo 8,26).

Arlindo de Magalhães, 30 de setembro de 2018

Vinde todos

Zlatko, ‘Music Art’

Ezequiel, um dos maiores profetas de Israel, sacerdote em Jerusalém, foi deportado para a Babilónia juntamente com a parte melhor de Israel, no ano 587 aC. O Livro do Profeta Ezequiel, escrito a contar toda essa desgraça, tem uma estrutura dramática muito simples, dividida em períodos claramente definidos. A sua mensagem preocupa-se apenas com uma única questão: recuperar a esperança de uma comunidade nacional e religiosa, submetida a uma grave crise ética, religiosa e política. A conversão era uma condição necessária para um futuro novo de um povo destroçado.

“O teu nome [ó Deus] espalhou-se entre as nações, graças à tua beleza. … Porém, tu [meu povo] confiaste na tua beleza!” (16, 14-16); mas, descansa, “eu usarei de misericórdia para com toda a casa de Israel e cuidarei do meu santo nome. E vou reconduzir os cativos de Jacob (39, 25-26).

Um catedrático alemão do Antigo Testamento (Universidade de Padeborn) intitulou assim um artigo — Fracassar é voltar a começar, sempre de novo (Selecciones de Teología 226, Abril-Maio 2018). Refere-se o artigo ao exílio da Babilónia do Livro de Ezequiel.

Desde o acontecido em Janeiro passado que eu disse que era necessário voltar atrás, partir de novo, remendar a meio não basta. É preciso voltar à estaca zero.

A crise teve diversas causas. Não foi só uma, há uma que é evidente, outras se encostaram.

Um jogo de futebol. O golo entusiasma, levanta-se a assembleia, até a que estava sentada, levantam-se os braços, beijos e abraços. De repente entra outro golo do mesmo lado, começa a cantoria… e a dança, canção conhecida ou de imediato cantada…, não necessita maestro nem coisa que o pareça!

Imagine-se agora: um estádio cheio, tudo sentadinho e caladinho, quando há golo, começa uma orquestra a tocar, uma orquestra e um grupo coral contratado, agora tocam eles, bem ou mal; o golo, a orquestra e o grupo coral a tocar e a cantar, e a assembleia – sócios, adeptos e claques — tudo muito sentadinho e quietinho que estão a ouvir a música, mas a ver a bola não!!!

Na tradição judaico-cristã, cantar era uma coisa permanente. Desde esse tempo que os anjos cantam todos no céu, fotografados muitas vezes de instrumentos musicais na mão; Moisés cantava (Ex 15,1), Israel cantava (Nm 21,17), o salmista apelava a que cantassem todos, “cantai ao Senhor” (13,6), “cantai a glória do seu nome” (66,2), “Vinde todos, cantemos ao Senhor” (95,1), “Cantai ao Senhor um cântico novo” (98,1), “o Justo cante” (Pr 29,6), “Exultai e cantai de alegria” (Is 12,5), cantavam o hino ”Jesus e os discípulos (Mt 26,30), Paulo e Silas cantavam (At 16,25), cantavam, cantavam todos, até “o galo cantava” (Mt 26,34), “Está alguém contente? Cante louvores” (Tg 5,12).

Que quer dizer tanto canto e tantos cantadores? São todos malucos ou [a assembleia]  a “cantar é cantar duas vezes”?

A Liturgia! A Liturgia é expressão comunitária e simbólica da fé; o canto é dela, da assembleia…, bem ou mal, canta. Na velha Europa mediterrânica não se canta [ou melhor, canta-se pouco] nem se dança. Já alguma vez participaram numa celebração litúrgica africana?

A Liturgia é a expressão comunitária da fé. A Liturgia não precisa de grupos musicais (?) como os que dão cabo de uma celebração litúrgica do casamento? São mais importantes que os noivos! Tocar? Tocar o quê? Ninguém aprecia música clássica, a não ser nos casamentos: uns tocadores não sei de quê, paga-se-lhes… E depois ninguém ouve…

A Liturgia é a expressão comunitária da fé. A música, a verdadeira música, é expressiva seja do que for. Sabem todos o que é a Missa em si menor? Mas eu não digo. Expliquem-me porque é que nos casamentos tem de se cantar sempre a Ave Maria de Gounod? Ninguém gosta de música clássica, mas a Ave Maria de Gounod!

Uma expressão comunitária é a expressão de uma comunidade. Uma comunidade não paga a trabalhadores musicais que lhe expressem as emoções, até os fadistas de Coimbra iam cantar debaixo das janelas delas!

É incompreensível que a assembleia esteja, caladinha, a ouvir alguns a cantar.

Esta é a questão. Esta foi a questão. E a resposta já começou.

Arlindo de Magalhães, 23 de setembro de 2018

O Servo do Senhor

Em maior ou menor escala, somos todos pecadores, no pecado individual e comunitário. Talvez mais neste que naquele, pois, com relativa facilidade ignoramos a responsabilidade inerente à integração, no meio onde vivemos. Desta inserção resulta o auxílio mútuo que, por justiça, nos devemos.

A libertação do pecado flui naturalmente do arrependimento, a que se segue o perdão. Só perdoando, o homem é perdoado. “A medida que utilizares com os outros, será utilizada contigo” (Mt 7,2). “Perdoai-nos, Senhor, como nós perdoamos” (Mt 6,14).

Perdão e amor são as máximas que Jesus nos deixou. E “o discípulo não é maior que o Mestre (Mt 10,24)”.

A primeira lei era clara: “olho por olho, dente por dente” (Ex 21,24). Muitas foram, depois disso, as palavras da Sagrada Escritura, não já em defesa do ódio e da vingança, mas pelo contrário em defesa do amor e do perdão. “Ao apresentar a tua oferenda no altar, vê se estás em paz com o teu irmão: Perdoa-nos, Senhor, como nós perdoamos” (Mt 5,23); “Não julgues para não seres julgado” (Mt 7,1). O Senhor fez-nos um só povo, filhos do mesmo Pai, e quer-nos a viver o amor fraterno em todas as dimensões.

O Servo do Senhor é desprezado e perseguido por todos. No cumprimento da sua missão, sujeita-se às humilhações e ao sofrimento, mantendo sempre uma firmeza inabalável e uma serena e alegre confiança em Deus (Is 24,2).

Esta misteriosa figura que aparece com muita frequência no Livro de Isaías, o protocristianismo viu nela o Cristo, o Ungido, na sua Paixão, abandonado pelos discípulos e pelas multidões, mas sempre fiel à sua missão redentora, consciente de que a salvação passa pela cruz.

Um exemplo  (Is 50,5/10):

“O Senhor abriu-me os ouvidos, mas eu não resisti nem me furtei.
Dei as costas aos que me batiam e a face aos que me puxavam a barba, mas não fugi nem aos ultrajes nem aos escarros.
O Senhor, meu Deus, virá em minha ajuda, razão por que não me deixei abater, apesar de o meu rosto se ter tornado mais duro do que se de pedra fosse; e sei que não serei confundido. Está perto quem me justifica.
Pretende alguém instaurar-me um processo? Vamos os dois juntos!
Quem é o meu adversário? Que se apresente!
O Senhor, meu Deus, virá em minha ajuda! Quem ousará condenar-me?” 

Ter fé, ou seja, crer, não é só nem principalmente admitir um determinado credo. É essencialmente estar em atitude de acolhimento à inspiração e graça de Deus. É ainda aceitar o compromisso vital da própria fé que não é outro senão o da correspondência do amor de Deus, emanando daí o amor ao próximo realizado ou vivido em obras.

“Crer não é ter as soluções nem um haver encontrado as respostas. Crer é habitar no caminho, viver na tensão…” (José Tolentino ao Papa Francisco, no Retiro “O elogio da sede”).

No passado dia 4 de Setembro, o Papa Francisco formulou assim: “a verdade é mansa e silenciosa”pelo que“com as pessoas que procuram apenas o escândalo e a divisão, as únicas opções a seguir são as do silêncio e da oração”.

Arlindo de Magalhães, 16 de setembro de 2018

Abertura

No Testamento Antigo, julgavam os nossos antepassados que os males que o homem sofria eram sempre um castigo de Deus.

Tanto as desgraças individuais (doenças, ruína económica, morte violenta, etc.) como as coletivas (fome, epidemias, guerras, etc.) eram todas sinal de que Deus tinha virado as costas ao seu povo. Ao contrário, quando uma desgraça se convertia em alegria, quando se superava um desastre, quando a escravidão ou a opressão conhecia a liberdade…, tudo se entendia como sinais de que Deus perdoava e estava de novo de acordo com o seu povo.

Assim, quando o profeta Isaías anunciou que o povo exilado na Babilónia ia alcançar a libertação, entendeu que era Deus que voltava a aproximar-se do seu povo, proclamando que “os olhos dos cegos, tal como os ouvidos dos surdos, se abrirão, o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35, 4-7).

Ao tempo de Jesus, a surdez ainda se entendia como consequência do pecado, e do pecado de todos. Não só a surdez. Todas as doenças que aparecem nos Evangelhos representam os males que os homens sofrem por culpa de uma sociedade injusta, organizada contra o plano de Deus. A surdez era um desses males.

E o povo acreditou. Surdo, verdadeiramente surdo, o povo não escutava a verdade dita pelos enviados de Iavé, os profetas.

(Uma paragem para relembrar uma coisa que aqui se explicou há bem pouco tempo: no tempo de Jesus, as pessoas perdiam a audição muito cedo, porque não limpavam o canal auditivo. E não sabiam que a saliva era o melhor que, ao tempo, havia para o fazerem! Por isso Jesus, no Evangelho de hoje “colocou-lhe, ao surdo, os dedos nos ouvidos e, com saliva, tocou-lhe a língua”).

A “um surdo que falava com dificuldade” – conta hoje Marcos – “suplicaram a Jesus que lhe impusesse as mãos” (Mc 7,32).

Por isso não perceberam o que Jesus dizia e fazia.

Em Isaías como nos Evangelhos, as curas e a saúde das pessoas anunciavam o começo de uma libertação mais profunda de todo o povo e de toda a humanidade. A cura do surdo-mudo significava que os discípulos de Jesus tinham ouvidos para ouvir uma Boa Notícia e língua para a anunciar a todos os homens, porque todos somos iguais diante de Deus.

Mas há no nosso mundo surdos que não compreenderam ainda que a cor da pele não divide, que levantar muralhas e cortinas de ferro ou de cimento armado não resolve problema nenhum, que uma sociedade dividida em ricos e pobres, cultos e incultos, cristãos ou muçulmanos, etc., etc., é uma loucura total. O racismo, legalizado ou não, que existe ainda em tantos lugares do planeta, a começar pela periferia das maiores cidades do nosso país, é consequência de um mundo injusto em que a pessoa humana não é o principal valor.

Jesus abriu os ouvidos de muitos anunciando que a humanidade tem uma meta, histórica e meta-histórica, a fraternidade, e um caminho para a alcançar, a luta pela libertação.

Não só com o que se passa na Europa mediterrânica, mas também no nosso meio. Somos todos muito surdos.

«Cura-nos, Senhor, das feridas da malícia, da ignorância e das feridas da lassidão. E que as tuas obras nos abram as portas do Espírito para a faina dos dias e o louvor das horas!» (José Mourão).

Arlindo de Magalhães, 9 de setembro de 2018

O fundamental

Gunta Stölzl, ‘Design for a Textile’, 1923

A carta de Santiago alerta exatamente os primeiros cristãos para o perigo de uma religião que não leve a sério os valores do Evangelho. A palavra da Escritura é para ser vivida no dia-a-dia. O cristianismo não é uma lista de formalidades e obrigações piedosas. O cristianismo é uma opção, uma escolha; e a comunidade, um espaço onde o cristão realiza e pratica essa sua opção, juntamente com irmãos e irmãs. “Ponde em prática a Palavra e não sejais seus simples ouvintes, como quem se engana a si próprio. (…) A religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-vos de toda a mancha do Mundo” (2,23 e 27).

O Livro do Deuteronómio – que Jesus conhecia bem – propõe uma série de princípios éticos orientados para criar laços de solidariedade, equidade e justiça. Porém, no século I da nossa era, isto é, no tempo de Jesus, o Judaísmo estava já preso pelas formalidades: sabemos, como dizia acima, do que se passava com o Sábado, com o Templo, com as esmolas, com os leprosos, etc. Lavar ou não as mãos antes de comer, por exemplo, deixara de ser uma simples norma de higiene para se converter numa outra que decidia quem era religioso e quem era pecador. Nós, os cristãos, não nos podemos rir deles: todos sabemos que, ainda no tempo dos nossos pais à sexta-feira se comia peixe e não carne, sob pena de pecado também! As religiões tinham e têm muitas vezes interditos morais que são simples preocupações de ordem higiénica (lavar as mãos e os pés, não comer carne de porco ou qualquer outra uma vez por semana, não beber álcool em excesso, não ter relações sexuais com consanguíneos mesmo afastados [razão de ser do tolo da aldeia])…

A tentação de canonizar os objetos, os rituais, os espaços, mesmo o tempo, não pode levar a pensar que a essência da relação com Deus está nos protocolos culturais, nos interditos morais e na prática de observâncias morais, mas não nos valores fundamentais (para nós, cristãos, o Reino de Deus e o mandamento novo).

Pensou-se, até ao tempo dos nossos pais, que o essencial da religião – de uma religião – estava no cumprimento de obrigações ou formalidades rituais: cristianismo, por exemplo, ouvir missa inteira nos domingos e festas de guarda, ou, no Islamismo, não comer carne de porco. Este pensar existia já no Povo judaico e em muitos outros Povos de Deus. Sabemos o que se passava no Judaísmo com o Sábado. Ainda hoje em dia, se uma pessoa se atreve a questionar certos costumes ou tradições religiosas e a propor alternativas coerentes com o Evangelho, rapidamente pode ser acusado de estar a desviar-se da autêntica doutrina. No entanto, já Isaías punha na boca de Deus que “as vossas celebrações e as vossas festas, estou cansado delas, não as suporto mais. … Cessai é de fazer o mal e aprendei a fazer o bem” (1,14.17).

Apesar deste pensar, anunciar a justiça e vivê-la no dia-a-dia, essa, sim, é a exigência fundamental das Escrituras judeo-cristãs. Os rituais, as prescrições, as cerimónias, podem ajudar-nos no caminho que leva a Deus, mas não o perfazem. Por essa razão, a exortação que, na 1ª leitura de hoje, Moisés dirige ao seu povo centra-se na necessidade de uma opção clara pelo Deus da Liberdade e da Justiça. Foi por isso que Ele o tirou do Egito. “Escutai, israelitas, as leis e preceitos que hoje vos ensino, a fim de os pordes em prática” (Dt 4,1).

Os primeiros cristãos experimentaram também o formalismo e o ritualismo. Mas depois de um tempo de fervor e dedicação, os ânimos começaram a ceder e a comunidade cristã viu-se rapidamente atada a costumes e tradições do passado, perdendo-se progressivamente a dimensão da fraternidade e da identidade.

Jesus – e a Liturgia de hoje – convida-nos a descobrir que a essência do cristianismo está na decisão de participarmos na construção do Reino de Deus vivendo de acordo com os princípios do Evangelho.

“Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33).

Arlindo de Magalhães, 2 de setembro de 2018

Sinal do Reino

Sergey Bakin (2001)

Há várias semanas que a Liturgia anda à volta do sinal da multiplicação dos pães e do sequente discurso do pão da vida.

Já por aqui comentei várias vezes o amplo significado que têm, no conjunto dos evangelhos, as comidas de Jesus, entre as quais se insere, com especial significado, a da multiplicação dos pães. Chamando-o comedor e bebedor de vinho (Lc 7,34, etc), os seus contemporâneos acusavam Jesus de se sentar à mesa com toda gente, judeus e pagãos, justos e pecadores, contrariamente ao que o Judaísmo obrigava, sem condições prévias e legalismos, purismos e discriminações. De resto, nos muitos relatos evangélicos das comidas de Jesus, há claramente duas dimensões: a memória de gestos concretos de Jesus, e a prática das primeiras comunidades lhe copiavam as atitudes, assim antecipando o Reino dos Céus. Os nossos primeiros, reuniam-se, comiam em comum (como na última Ceia) e depois celebravam “a Ceia [do Senhor] — “em minha memória” (Mt 22,14-18 e 19-20).

Quando a Igreja abandonou a prática das comidas em comum, ficou apenas a eucaristia ritualizada. Mas nem por isso, na Igreja primitiva, a eucaristia deixou de ser, também ela, o sacramento da superação da pobreza, do acolhimento dos pobres e famintos, da vitória sobre toda a separação social e económica, por muito que hoje estejamos habituados a olhá-la apenas como o memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.

Para os primeiros cristãos, celebrar a Eucaristia era antecipar sacramental e realmente a comunhão dos irmãos entre si e com o Pai, o que só se alcançará definitivamente quando o Reino chegar à sua plenitude.

Ouçamos São João Crisóstomo:

“No velho mundo, o rico prepara uma mesa esplêndida e goza abundantemente dos seus deleites, enquanto que a pobreza impede o pobre de desfrutar luxos semelhantes. Entre nós, pelo contrário, quando celebramos a Eucaristia, as coisas são muito diferentes: há uma mesma mesa para o rico e para o pobre. Tanto o imperador como o mendigo que pede esmola têm posta a mesma mesa. Quando vires no interior da igreja, o pobre juntamente com o rico, o plebeu com o magnate, o que lá fora treme diante do príncipe sentado cá dentro, sem nenhum temor, ao lado dele, repara que começa a cumprir-se aquela profecia que diz: Então (quando chegar o Reino de Deus) apascentarão juntos o lobo e o cordeiro” (Is 11,6).

Certamente que todos ou muitos de nós temos participado em algumas celebrações tão autenticamente vividas que terão sido, em muitos casos, antecipações, embora pálidas, do Reino de Deus. Em todo o caso, antecipações. Orígenes imaginava o Reino como uma grandiosa Eucaristia celebrada com Cristo na glória. E os primeiros cristãos pensavam que a última vinda aconteceria durante uma celebração da Eucaristia.

A própria reforma litúrgica do Vaticano II afirma tudo isto quando recomenda que, na Liturgia, “não exista nenhuma aceção nem de pessoas nem de classe social, nem nas cerimónias nem nos ornamentos exteriores” (SC 32). É por isso é proibido reservar cadeiras especiais, ou mesmo pôr as mulheres a um lado e os homens a outro. E isto porque as formas exteriores da celebração litúrgica devem manifestar aquilo que ela deve ser: uma vivência antecipada da fraternidade do Reino. E tudo para isso deve contribuir: o universalismo das preces, o rito da paz, o pão partido e distribuído igualmente por todos, etc.

Por isso alguém disse que a Eucaristia é um tratado de teologia política: protestamos desse modo contra uma sociedade em que uns são mais homens que outros, afirmando uma comunidade nova que dessa maneira antecipamos e realizamos, embora reconhecendo que, muitas vezes, “ricos e pobres comungam juntos na mesma igreja mas excomungam-se mutuamente na fábrica”. Já S. Paulo condenava os Coríntios: “Não comeis o corpo de Cristo nem bebeis o seu sangue, mas sim a vossa própria condenação” (1 Cor 11,17-34). E a própria Didaké afirmava: “Todo aquele que tiver uma contenda com seu irmão, não se junte à Comunidade sem se ter reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado”.

É verdade que, muitas vezes, à volta da Eucaristia as questões são falsas questões – que vestido, de pé ou de joelhos, quem pode ler, que cantar, comungar na mão ou na boca, – assim se evitando perguntas muito mais importantes sobre as condições necessárias para a celebração deste sacramento!

O imperador Teodósio, mandou uma vez matar uma pequena multidão de gente humilde da cidade de Tessalónica para vingar o assassinato de um funcionário. Santo Ambrósio, bispo de Milão, escreveu-lhe de imediato a comunicar que não mais presidiria à Eucaristia na sua presença. Claro que foi parar à cadeia!

Não podemos, é verdade, esperar que desapareça a última manifestação de injustiça para podermos celebrar a Eucaristia. Ela é um sacramento para nós cristãos, vivos e pecadores; os eleitos já não precisam destes sinais, porque já “veem Deus tal como ele é”. Para eles, os sacramentos já estão a mais. O que quero dizer é que uma comunidade só tem direito à Eucaristia se for verdadeiramente um sinal, e verdadeiro, do Reino. E isso tem a ver com o que a comunidade é fora do templo, e com as relações dos seus membros.

Arlindo de Magalhães, 26 de agosto de 2018

A Eucaristia

Salvador Dali (1952)

Não há muitos anos, uma senhora chegou, veio falar comigo e não demorou a dizer ao que vinha: — Sr. Padre, eu sou católica, mas há uma coisa que eu não percebo: dizerem que se come e bebe a carne e o sangue de Jesus. Isso não aceito! Eu não sou antropófaga!

Eu fiquei a olhar para ela!

No rescaldo da multiplicação dos pães que aconteceu no “outro lado do Mar da Galileia ou de Tiberíades” há já quase um mês – não veio no jornal, mas continua a vir no Evangelho de João –, chegamos agora à questão não já do pão-pão, do que mata a fome e simboliza mesmo o trabalho do homem (“comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gn 3,19), mas do pão da Eucaristia: símbolo > realidade.

O Concílio Vaticano II falou repetidamente dele – deste pão – ou dela – da Eucaristia –, dizendo que é a fonte e o cume da vida da Igreja, o ponto de chegada e de partida de toda a vida cristã: a Eucaristia é «fonte e centro de toda a vida cristã…» (LG 11,1) e «cume de toda a evangelização» (PO 5), etc., etc. Não será preciso explicar muito mais pois que, na vida desta comunidade, o experimentamos: pouco de devoções e de missas, tudo pela Eucaristia dominical, quanto nos custa prepará-la e quanto dela decorre!

Desde o princípio que, na comemoração semanal da ressurreição que criou o dia do Senhor, as comunidades cristãs só no primeiro dia da semana celebravam a Eucaristia: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão…”, conta Lucas nos Atos (20,7) que assim era em Tróade. Mas há mais, muitas notícias mais.

Os cristãos, irmãos que eram, constituíam uma igreja de “pedras vivas” (1 Pd 2,5): “vós sois o corpo de Cristo e cada um é um membro” (1 Cor 12,27). E, corpo vivo, precisa de comida: “Fazei isto em memória de mim!”.

Esta acumulação de símbolos — pão e vinho, comer e beber, corpo e membros, corpo de Cristo e igreja de pedras vivas, partir o pão (a fração do pão) e “quando vos reunis para comer a ceia do Senhor… enquanto um passa fome e outro fica c’os copos” (1 Cor 11,20-21) — se, por um lado, como diz o Vaticano II, constitui a fonte e o cume da vida da Igreja, por outro, rapidamente esta prática inicial se foi.

E, pouco a pouco, mas rapidamente, a celebração semanal — no “primeiro dia da semana” — passou a devoção diária: os monges passaram a ser todos ou quase todos presbíteros e a missa multiplicou-se, sobretudo a partir do momento em que ela e dinheiro ou espórtula se juntaram. E dos mosteiros a prática passou aos conventos, daí às paróquias e capelas, havia muitos padres e todos tinham de viver; o último estádio desta evolução, vergonhosa e ainda vigente, é já do nosso tempo: foi a de juntar intenções, 20 ou 30 que seja, na mesma missa; assim rende mais e não dá tanto trabalho.

Em quase todos os lados a missa continua a ser diária e a horas várias, deixou de ser celebração para ser devoção, missas não preparadas, missas por tudo e por nada, mas quase sempre por alma de e nunca pela vida de ninguém. Apesar da valorização que, há 50 anos, o Vaticano II deu à celebração eucarística chamada missa, ela voltou a ser anónima, formalista, não exprime nem celebra qualquer tipo de emoção, tecnicamente uma vergonha…

A juntar a tudo isto, a falta de presbíteros e a enormidade de tarefas que se carregam sobre um só (já há párocos com nove paróquias!).

O resultado é paradoxal: onde há fome de Eucaristia não há possibilidade de a encontrar (cada vez mais, nas periferias e interiores, há comunidades sem Eucaristia dominical ou em que os cristãos têm de calcorrear distâncias enormes e em que o Sr. padre está sempre com pressa pois tem de acorrer à paróquia seguinte).

Entretanto, nos grandes centros urbanos, apesar da maior oferta celebrativa, a cultura é agora outra: o “fim de semana”, as saídas, o desporto, as idas à terra, as festas, os condicionalismos impostos pelo comércio liberal, nada disto rima com o antigo domingo convocado pelo campanário.

A juntar a tudo isto e em pleno mês de agosto, a disfunção acentua-se: com tanta gente fora dos seus lugares de habitação, os cristãos não encontram resposta de acolhimento nos lugares para onde se deslocam. É frequente ouvir: “Não fui à missa porque no lugar aonde vou a coisa é tão má …!”.

Este é um problema prioritário que a Igreja portuguesa não controla. A torto e a direito, ouve-se falar em evangelização, ano disto ou daquilo, muitos que nunca se encontram onde que bom seria passassem, nas periferias, por exemplo, procissões e outras coisas mais e semelhantes, benzeduras de quase tudo…

Mas a questão da Eucaristia, essa nunca é questão prioritária! Nem há presbíteros que possam acudir-lhe!

Arlindo de Magalhães, 19 de agosto de 2018

O Pão

Jesus come e bebe com uns e com outros, “santos” e pecadores (mais com estes últimos do que com os primeiros). Porquê?

Foi para tentar responder a esta pergunta que há um par de anos atrás (cada vez mais distantes no tempo) um grupo de alunos, desafiados pelo seu professor, se meteram a discutir e aprofundar as “comidas de Jesus” que levam à eucaristia. Não tendo chegado a nenhuma conclusão definitiva, compreenderam que uma refeição, almoçar ou jantar, é MUITO mais que comer (saciar a fome).

Comer é partilhar, comungar, ter parte de…

Partilhar a minha casa que abro para ti e é nossa; partilhar a mesa posta e estar à sua volta; partilhar a comida que tenho, que sendo “minha” (fruto do meu trabalho e da minha família) é dádiva de Deus que contigo partilho; partilhar o vinho, “bebida dos deuses e alegria dos homens”; partilhar partindo o pão que foi amassado com a água do meu poço e com o azeite das minhas oliveiras, cozinhado no forno que aquecia em quanto esperava que a massa levedasse para o poder cozer;  partilhar o convívio que contigo acontece; partilhar e acolher-te no abraço com que te recebo… e saudade quando voltares para a tua casa. 

Por isso é que Jesus come e bebe. Mas não é só convidado! Ele também é anfitrião: atento, solícito. E que melhor cenário para esta refeição oferecida por Jesus que não o céu por teto e a mãe terra como mesa? (Havia muita relva naquele lugar… diz João).

Porquê estes textos tão ricos de significante e de significado, nesta altura do ano em que tanta gente está a partir de férias ou já em pleno gozo de férias? Porque é nesta altura do ano que se ceifa… que se malha o trigo e o centeio… em que a eira cheira a palha e grão! As searas cobrem os campos e pintam o horizonte com o seu tom dourado. E Jesus, atento como sempre, partindo das vivencias experimentadas vai falar do PÃO.

Olhando ao nosso redor, para o nosso país, para a nossa Europa, vemos pessoas a partilhar o “pão”? Sim, vemos. O que se passou esta semana é exemplo disso, tendo-nos feito recordar o que se passou em Portugal há menos de um ano… no entanto também vemos uma hora a fechar fronteiras, a “proteger” o seu “rapazinho que tem cinco pães de cevada e dois pequenos peixes” de outros meninos que vêm para lhe tirar o que tem para comer; o trabalho, que valha-nos Deus já não querem, mas também não deixam ir para outro; o seu modo de vida, diferente do estrangeiro que morre, morria e vai continuar a morrer no Mediterrâneo…

Que o bom Deus, misericordioso e Pai-solicito, nos conceda o dom da generosidade, da partilha e das mãos e braços abertos ao outro….  

Rogério Alves, 29 de julho de 2018

A Crise da Galileia

Joan Miró (1939)

Quando Jesus iniciou a sua chamada vida pública, começou a andar daqui p’ràli, não muito longe de casa, pelas aldeias dos arredores (Mc 6,6), entre a beira-mar ou melhor a beira-lago de Genesaré que era disso que se tratava e as pequenas montanhas da Galileia, Marcos diz ainda que entrou em algumas povoações de relativa importância, Cafarnaúm e Gerasa, por exemplo.

Aqui e ali, entrou em algumas Sinagogas da sua Galileia natal, junto do mar escolheu alguns discípulos, realizou aqui uns sinais, ali contou algumas parábolas, e por toda a parte falava do Reino de Deus…

Claro que a Galileia era um território pequenito em que nunca acontecia nada, e portanto a coisa soube-se logo ao longe, Marcos refere mesmo uns problemas, umas discussões, com os doutores da lei do partido dos fariseus (2,16) – a coisa deve ter chegado logo a Jerusalém que ficava muito lá para o sul, mas estas coisas sabem-se sempre!, e o poder tinha os seus canais de informação devidamente montados – mas nada de especial…

A família não demorou muito a entrar em cena (3,31), a tentar perceber o que estava a acontecer, talvez decidida a passar um correctivo ao familiar que lhe enxovalhava o nome. Mas Jesus lá se desenvencilhou do empecilho: Aquele que faz a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe (3,35).

As coisas complicaram-se, entretanto: e quando a coisa chegou aos ouvidos de Herodes. o tetrarca da Galileia, Jesus mesmo teve de retirar para a sua terra (6,1), como que a resguardar-se de um fogo que ameaçava pegar forte.

A tudo isto se dá normalmente o nome de “a crise da Galileia”: como ele próprio diria mais tarde, um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa (6,4).

Perante esta «crise da Galileia» que se abateu sobre ele (da parte dos judeus, «dos seus» familiares e dos conterrâneos), Jesus voltou-se para os Doze fazendo-lhes ver que perante o desengano e a falta de êxito a atitude nunca pode ser a da resignação. Agregar os Doze à sua actividade foi para ele como que rebentar com o beco sem saída para onde terão querido empurrá-lo. Por isso, Jesus enviou-os, dando-lhes indicações práticas sobre como comportar-se nas casas em que fossem acolhidos.

É aqui exatamente que é preciso saber ler. O que é que Jesus terá dito aos Doze quando os enviou? – ter-se-á perguntado Marcos quando escreveu o seu Evangelho. E como ele não sabia porque não tinha estado lá, imaginou. O que ele conhecia bem era como se fazia na primeira Igreja com os que andavam de cá para lá, em missão, a pregar Jesus ressuscitado: primeiro, eles não andavam de casa em casa e se, recusavam escutá-los, iam-se embora…. A partir daí, toca de imaginar o que Jesus poderá ter feito ou ensinado aos discípulos, mas que Marcos desconhecia. É que Marcos não tinha sido discípulo direto de Jesus e só entrou em cena muito mais tarde, ao tempo de Paulo e Barnabé (At 12,12.25).

A partir, portanto, do que se fazia nesse tempo, Marcos imaginou o que Jesus poderia/deveria ter feito quando enviou os seus discípulos em missão. Que pode fazer uma pessoa quando chega a algum sítio em tarefa pastoral? Hoje haverá alguns que, antes de mais nada, começam a fazer obras e a organizar viagens a que chamam peregrinações. Mas isso é não perceber nada de nada. Marcos, pelo contrário, fala em pregar o arrependimento, na expulsão de alguns demónios, é sempre muito importante curar uns doentes

E há uma outra informação importante neste relato: ungiam com óleo muitos doentes. Saliento esta informação porque, deste rito, só se fala uma outra vez em todo o Novo Testamento (Tg 5,13/16). Claro que não foi Tiago que o inventou. Já em prática ao tempo destes escritos – o Evangelho de Marcos e outros -, ele fundava-se na tradição de Jesus. O que nós desconhecemos hoje é o exato ensinamento de Jesus a seu respeito; mesmo assim, Marcos conhecia-o tão bem que imaginou que, já nesta missão, os Doze ungiam com óleo muitos doentes. Aqui se fundamenta o sacramento da Unção dos Doentes

Temos aqui de algum modo desenhada a maneira como os autores dos Evangelhos trataram literariamente a figura de Jesus.

Depois de o terem conhecido diretamente ou de terem recebido doutros a sua notícia, depois de testemunharem e analisarem o muito que ele fizera e dissera, o muito que ousara, depois de terem entendido por que o hostilizaram e depois o mataram na cruz e, sobretudo, depois de o experimentarem vivo após a ressurreição, concluíram (baseados na história mas dando um grande salto): Realmente este homem era Filho de Deus (Mc 15,39). Isto é, da história saltaram para a fé, baseados na história, mas de modo algum dela libertados.

Realmente este homem era Filho de Deus ou, noutra versão nossa conhecida, Tu és o Cristo (Mc 8,29).

Claro que esta afirmação é uma afirmação histórica: falavam de um homem histórico que tinha vivido entre eles. Mas não só. Porque, de facto, se os seus contemporâneos primeiro conheceram um homem, foi exatamente a partir da sua humanidade que o descobriram e reconheceram como Deus, sendo então capazes de o confessar como tal. É deste homem e deste Deus que os evangelhos (sinópticos) nos dão uma notícia clara: primeiro Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José, o tal que, logo aos primeiros problemas, recuou até “à sua terra”! (Mc 6,1), mas que, depois, reconheceram Filho de Deus. Por isto mesmo é que, para nós, os cristãos, a história é muito importante.

Dizer isto de outra maneira é assim: é nos homens que Deus se revela. Foi especialmente num homem que Deus se revelou. Esta é a grande novidade do cristianismo relativamente a todas as grandes religiões.

E pode também dizer que uma coisa é a História e outra a história dos Códigos.

Arlindo de Magalhães, 15 de julho de 2018