Marcos

São tão sugestivos os 4 evangelhos! Mesmo assim, há 50 anos a ensinar a lê-los, só agora me interessei pela figura de Marcos, o evangelista.

Há 4 Evangelhos e 4 deles escritores. Mateus era cobrador de impostos. Passando-lhe à porta, uma vez, Jesus disse-lhe “Segue-me!”; “e ele levantou-se e seguiu-o” (Mt 9,9).

Lucas, um grego de cultura e pagão de religião, nascera em Antioquia da Síria e foi discípulo de Paulo, a quem acompanhou em grande parte das suas viagens. Na Carta aos Colossenses (4,14), Paulo chama-lhe “o caríssimo médico”.

João, apóstolo, era irmão de Tiago; juntamente com Pedro formaram o grupo mais íntimo de Jesus: “Pedro, Tiago e João”. Paulo diz na Carta aos Gálatas (2,9) que esses três eram considerados as colunas [da nascente Igreja]. Acrescento que se a Tradição diz que o João Apóstolo é o João evangelista, há hoje exegetas (peritos da interpretação do texto) que defendem que não.

Da figura de Marcos nunca me havia interessado, dizia.

João Marcos era filho de uma Maria em cuja casa se reunia a primitiva igreja de Jerusalém (ninguém se esqueça que, em grego, a palavra eclesía queria dizer reunião): portanto, os seguidores de Jesus que viviam em Jerusalém, reuniam-se em casa de uma Maria.

Paulo e Barnabé estavam um pouco a norte, em Antioquia (da Síria) e resolveram fazer uma grande viagem por Chipre e Antioquia da Pisídia, a “anunciar a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus” (At 13,5). A meio da viagem, digamos assim, “João separou-se deles e voltou para Jerusalém” (At 13,13). Paulo e Barnabé continuaram a viagem combinada e depois de estarem em Antioquia da Pisídia, regressaram a Jerusalém.

Uma vez aí, levantou-se um problema: alguns fariseus, que tinham abraçado a fé, começaram a dizer que era preciso que os que chegavam do paganismo à fé tinham também de observar a Lei de Moisés (At 15,5).

Acabados os debates e assumidas as decisões tomadas, Paulo e Barnabé decidem uma nova carreira, desta vez à Macedónia.

Mas aqui é que foram elas! Barnabé queria levar o primo — João Marcos — mas Paulo não concordou: “Seguiu-se uma discussão tão violenta que se separaram um do outro” [Paulo de Barnabé]. E “Barnabé tomou Marcos consigo e embarcou com ele para Chipre, sua terra natal. Por seu turno, Paulo escolheu um outro companheiro, Silas, e atravessou a Síria e a Cilícia [nome de uma antiga região na costa sul da Ásia Menor, hoje Turquia]” (At 15,39-41).

*

Não há dúvida que podemos estranhar algum comportamento dos seguidores de Jesus na Igreja primitiva: porque é que Paulo não perdoou a João Marcos não se sabe o quê e, por isso, não tenha permitido que ele os acompanhasse? Barnabé queria que o primo fosse com eles numa segunda viagem. Mas isso não aconteceu (At 15,39).

Inesperadamente porém Marcos, que era primo de Barnabé; aparece em Roma, ao lado de Pedro e de Paulo — “meu companheiro de prisão” (Cl 4,10), diz Paulo. Santo Ireneu, epíscopo grego e teólogo que terá vivido entre cerca os anos 130 e 202, disse que Marcos foi discípulo, intérprete e transmissor de quanto havia sido pregado por Pedro. E de facto, peritos modernos são de opinião que o Evangelho de Marcos, de João Marcos, filho de Maria (não a mãe de Jesus), reflete as catequeses que Pedro fazia em Roma, ele que tinha sido testemunha presencial dos acontecimentos, atitudes, gestos e ensinamentos de Jesus. João Marcos, que não tinha conhecido Jesus pessoalmente, tirara apontamentos dessas catequeses de Pedro; e que fora a partir deles que pôde escrever o Evangelho que todos conhecemos e terá sido escrito antes da destruição de Jerusalém acontecida no ano 70.

Já muitas vezes por aqui se disse que, na Igreja Primitiva, não era tudo um mar de rosas: At, 2,42-47 e 4,32-35.

Não era um mar de rosas, não: a reação de Paulo à decisão de João Marcos (At 13,13b), a violenta discussão de Paulo e Barnabé (At 15,39), a fraude de Ananias e Safira que mentiram “ao Espírito Santo” (At 5,1-5), a atitude de um tal Simão que queria dar dinheiro aos Apóstolos para que eles lhe arranjassem o poder de impor as mãos e de darem o Espírito Santo … (At 8,18), ou até o recadinho do João da 3ª Carta que mandado a Diotrefes — “quando eu for aí vou-lhe dizer na cara o que ele anda para aí a fazer…, que até não acolhe os irmãos…, e expulsa-os da igreja…” (10) —, tudo isso nos diz que, já naquele tempo, não era tudo um mar de rosas..

No entanto, “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações…, e tinham um só coração e uma só alma” (At 2,42-47)!

Arlindo de Magalhães, 21 de janeiro de 2018

Vocações

Milton – Avery | ‘Stormy Sky, Stormy Sea’ | 1938

Vocações há muitas: vocações e vocações. Vocações fundamentais: Deus chamou muita gente na história bíblica: Abraão, Moisés, Samuel, David — o rei pecador, Job, e quantos mais…

Vocação vem do latim vocare (chamar). Os psicólogos explicam que a vocação resulta da reunião de componentes de ordem biológica, psicológica e social que se ordenam em função de interesses, de motivos de realização, de projectos, de níveis de aspiração e eficiência que permitam a um indivíduo determinadas opções de vida. Falar de componentes de ordem biológica e psicológica é falar da natureza do homem criado, natureza que é dom e criação por Deus. Entramos no domínio da graça pura. Francisco de Assis, Beethoven, Van Gogh, Luther King, como esta lista de nomes podia continuar interminável, vocações claras de construção do homem e da humanidade, chamem-se eles Johan Sébastian Bach ou Mozart, Miguel Ângelo ou Matisse, Ronaldo até no mundo da bola!

Há, na Igreja, vocações e carismas que não são individuais: os beneditinos, os do Ora & Labora; os franciscanos, num tempo de fome criaram o da mendicância; no nosso tempo, Madre Teresa de Calcutá e as irmãs que arrastou atrás de si, naquela profunda Índia, etc.. 

A Igreja é – deveria ser – a “pátria da Liberdade”.

Vem isto a propósito das vocações (ou “chamações“) dos dois primeiros discípulos de Jesus, Simão, depois chamado Pedro, e André.

À partida parece que eram tirados a papel químico: irmãos, e ambos discípulos de João Baptista. Pelos evangelhos sinópticos, sabemos deles mais alguma coisa: eram os dois pescadores.

No entanto, eram muito diferentes como o futuro haveria de mostrar: a um – Simão – haveria Jesus de pôr-lhe o nome de “pedra” (donde Cefas ou Pedro), não certamente pela sua rudeza mas pela sua firmeza. Por isso, seria escolhido para fundamento da Igreja (nele recaiu o ministério de Pedro, hoje assumido pelo Bispo de Roma). Mesmo assim, Pedro haveria de negá-lo, quem diria?

Do outro, André, sabemos muito menos, apesar de ter sido ele que levou o irmão Simão a Jesus (os primeiros são os últimos). Ele pode ter tido alguma primazia entre os Doze, pelo menos no princípio: foi ele que encontrou o rapazito com os cinco pães e os dois peixes que haveriam de ser distribuídos pela multidão (Jo 6,8). Foi ainda ele que, juntamente com Filipe, foi um dia falar com Jesus no sentido de este receber uns gregos que queriam falar com ele (Jo 12,22). Para além disto, pouco mais  sabemos de André, a não ser que, tal como seu irmão Simão, era natural de Betsaida (Jo 1,44), um pequeníssimo e insignificante porto pesqueiro, onde Jesus curaria um cego mas cujas gentes nem assim acreditaram (Mc 8,22-26). E de André não mais sabemos. A tradição, não documentada, pretende-o evangelizador do mundo grego, o que conviria com o já referido episódio dos gregos que, um dia, levou até Jesus.

De Betsaida era também Filipe natural. E este Filipe, na noite do dia da traição de Judas, assumindo-se certamente como porta-voz do grupo, fez a Jesus um pedido à medida da incredulidade dos seus conterrâneos: “Quem me vê, vê o pai, Filipe. Como é que tu me dizes ‘mostra-nos o Pai’? Há tanto tempo que eu estou convosco e ainda não me conheces, Filipe!” (Jo 14,8-9)”. Quando isto, ainda estavam todos à mesa com excepção de Judas que já tinha saído para entregar Jesus.

Seja como for, à partida iguais, o mesmo chamamento, no mesmo dia inclusive, e tão diferentes os chamados!

 Na Igreja, como diz Paulo, “há diversidade de dons mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” (1 Cor 12,4-7).

É preciso continuar a lutar por uma Igreja — concretizada em comunidades — em que todos tenham lugar e (possibilidade e capacidade de) participação. Digo todos: os cómodos e os incómodos, os construtores e os críticos, os marginalizados e os de direito, os activos e os cristãos de presença, todos os baptizados e não só os ordenados, também os leigos/as, as mulheres e os homens, os idosos, as crianças e os jovens, os brilhantes e os apagados, os de um partido e os de outro partido, sobretudo os pobres mas também os ricos que procuram o Senhor de coração sincero. Tudo o que não for isto é a nossa incapacidade ou — o Senhor no-lo perdoe — o nosso pecado.

Arlindo de Magalhães, 14 de Janeiro de 2018

Sinal de salvação

 

E a gente não sabe que mais admirar: se a Manifestação (isto é, a Epifania) de Cristo ao Mundo, ou se a realidade do Mundo aberto ao Senhor que vem, o Cristo, o enviado, escolhido e ungido! Espantoso caminho de convergência!

Talvez seja necessário explicar que a festa da Epifania é o Natal do Oriente. O seu aparecimento aconteceu mais ou menos do mesmo modo e ao mesmo tempo que o Natal do Ocidente que se celebrava a 25 de Dezembro. De facto, era em 6 de Janeiro que, pelo cômputo do tempo das astronomias orientais, nomeadamente a egípcia, se colocava a celebração do Natal. Foi aí, portanto, que os cristãos orientais colocaram a festa da Manifestação dO Cristo, dO Messias que tinha sido enviado, a festa da Manifestação dO Filho de Deus, não só da sua Natividade. No Oriente, o milagre da Manifestação de Deus (em grego uma manifestação dizia-se epifania, algo que se manifestava, um relâmpago, do verbo faínô > tornar visível) celebrava um mistério: Deus-Homem! Pode lá ser!, perguntavam os seguidores de Ario (256-336), pai do arianismo (o presbítero ariano, nascido em Alexandria do Egipto, defendia que o Enviado do Pai não era “consubstancial ao Pai”, como resolveria o 1º Concílio ecuménico, ano 325, realizado em Niceia (atual Turquia): “consubstancial ao Pai”.

No Ocidente — onde mais tarde se inventaria tudo, de armas a relógios, de computadores a robots —, festa era celebração ou memória de algo que aconteceu e nada mais que festa. Os ocidentais sempre fomos práticos, determinados, objetivos. Uma festa ao nascer, outra a relembrar a chegada dos Magos, um acontecimento lá na aldeia, e pronto, já está.

Liturgia mistérica no Oriente, Liturgia episódica no Ocidente!

No entanto, se as Igrejas, tão diferentes, eram tão unidas, do Oriente ao Finisterra do Ocidente, como tiveram audácia para enfrentar o mundo pagão que lhes era circundante?

Ou melhor: porquê, hoje, em tempos de ecumenismo, as Igrejas, nomeadamente a Romana e a Ortodoxa, têm tanta dificuldade em dialogar e comungar?

Uma Igreja não monolítica nem monocórdica mas atenta às sugestões várias que lhe vinham de fora e de dentro, foi capaz de ser luz, de evangelizar, atendendo aos povos, suas culturas e costumes, seus ritmos festivos e suas necessidades? E todos os Povos, então os da bacia do Mediterrâneo!, convergiram para Cristo, como os Magos do Evangelho, através do seu Sinal ou estrela, isto é, da Igreja (não é ela a LUZ DAS NAÇÕES > Lumen Gentium, o grande documento do Vaticano II?), com as suas riquezas e presentes, o ouro, o incenso e a mirra dos seus trabalhos, lutas e dores, alegrias e esperanças (Gaudium et Spes, o 2º grande documento do Vaticano II), a provocar mesmo a indiferença dos que, à partida, estariam mais aptos para o a receber?

É preciso que o Sinal de Cristo emita a sua Luz de modo a poder ser captada pelo recetor, que essa é a sua grande Missão: Sal da Terra e Luz do Mundo, Sacramento (Sinal) Universal de Salvação.

Para tal, vamos agora correr daqui para ali, multiplicar-nos e desdobrar-nos em mil atividades, solidariedades e iniciativas, em mil projetos, fazendo do já tão denegrido ativismo a nossa regra de ouro? Igreja que somos, a Fé, a Esperança e a Caridade serão o nosso motor ao Amor com que nos amarmos todos, porque é” nisso que “reconhecerão que sois meus Discípulos” (Jo 8, 31).

Arlindo de Magalhães, 7 de Janeiro de 2018

Como foi possível?

Grace Carol Bromer, ‘The Four Evangelists’
https://gracebomer.wordpress.com/

Muitos dos primeiros conheceram Jesus pessoalmente; outros conheceram os que tinham conhecido Jesus; e assim por diante. Ele era o filho de Maria e do carpinteiro. Mas praticamente todos os primeiros, com excepção de Pedro – digamos assim (ver Mt 16,13-16) – só depois da ressurreição confessaram a divindade de Jesus.

Naquele tempo, ninguém sabia a data do nascimento de ninguém. Nem os primeiros cristãos tiveram grande disponibilidade no que a Jesus respeitava porque conviver com o paganismo lhes levava o tempo todo e dava conta da cabeça, para mais num Estado de direito em que religião e política se misturavam, fosse na Palestina, ou noutra parte qualquer do Império. Um pouco mais tarde, as coisas pioraram ainda: começaram a ser perseguidos (pelo estado romano). Mais difícil do que conviverem com o paganismo, foi para eles como sobreviverem no meio da perseguição. E em tempo de guerra não se limpam armas!

No séc. IV, porém, ano 313, a liberdade religiosa foi decretada no Império: o estado romano já não podia viver nem contra os cristãos nem sem eles, que já eram mais que muitos.

A partir daí, a Igreja começou a poder existir legalmente, à luz do dia: foi-lhe então possível organizar-se e – importante ainda – reunir-se. E, passados 12 anos, então sim, começou a preocupar-se com a questão da humanidade e da divindade de Jesus. Como podia ser, Deus e homem ao mesmo tempo? A pedido do próprio Imperador, a Igreja congregou-se então em Niceia, ano 325 (1º Concílio ecuménico) para debater a questão: Jesus era um homem normal, um super-homem, ou Deus também? Concordaram então os eclesiásticos, os reunidos (porque eclesía quer dizer reunião), que ele era “consubstancial ao Pai”, digamos que, feito da mesma substância que o Pai. Foi esta a expressão mágica então encontrada para o dizer. Esta palavra substância, aqui e naquele tempo, não implicava materialidade: que Jesus fosse da substância do Pai, feito do mesmo que o Pai, queria dizer que era igual ao Pai. Niceia tentou explicar melhor: “Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai, isto é, da mesma substância que o Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, nascido, não criado, embora todas as coisas, as do céu e as da terra, tenham sido criadas por ele. Por nós homens e para nossa salvação desceu, incarnou e fez-se homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia” (da declaração de Niceia).

Mas foi só andando da Páscoa para trás que os primeiros, olhando a excecional humanidade de Jesus, concluíram que, de facto, ele era verdadeiro Deus, Filho de Deus.

A reflexão não pararia aqui, no entanto: os tempos possibilitavam que se fosse muito mais longe na reflexão. Se em Niceia se andou da frente para trás, da Ressurreição para a vida vivida entre a Galileia e Jerusalém, logo de seguida se começou a pôr tudo muito direitinho, mas agora já do princípio, do nascimento para a Cruz e Ressurreição, nascido que fora de Maria, que crescera depois em sabedoria, estatura e em graça diante de Deus e dos homens, tudo isto em casa de seus pais (Lc 23,51-52). E, assim sendo, toca de celebrar o seu nascimento, o Natal.

É de 254, 29 anos apenas depois de Niceia, a primeira notícia de que, em Roma, já se celebrava o Natal. Foi tudo muito rápido. E, então sim, tudo muito direitinho, pôde dizer-se assim: “Por nós homens e para nossa salvação, 1º – desceu do céu, 2º – incarnou no seio da virgem Maria, 3º – fez-se homem, padeceu e 4º – ressuscitou ao terceiro dia”. De trás para a frente.

Mas… como foi isto possível? Como pôde Deus ter nascido? Recordo-me daquelas palavras emocionadas que o escritor cristão primitivo pôs na boca de José: “Como é possível? Como é possível ter forma de criança Aquele que criou todos os seres? Como pôde fazer-se pequeno na terra Aquele que é grande nos céus? Como pôde um estábulo conter aquele que contém todo o universo? Como podem estes bracitos ser envolvidos em panos, se é o seu braço que governa o céu e a terra? Como é isto possível?” (Analecta sacra 1,229).

Começou aqui a magia do Natal. Neste mesmo séc. IV, Atanásio (c. 296-3739, o santo bispo de Alexandria que estivera presente no Concílio de Niceia, o “martelo do arianismo” (o arianismo negava a divindade de Jesus), tinha tido necessidade de precisar: “Estas coisas não se realizaram de maneira fictícia, como disseram alguns. Longe de nós tal pensamento! O nosso salvador foi verdadeiramente homem, … era verdadeiramente humana a natureza do que nasceu de Maria segundo as divinas escrituras: era verdadeiramente humano o corpo do Senhor. Verdadeiramente humano, quero dizer, um corpo igual ao nosso” (Sermão 1 para o dia de Natal).

E que fizeram os cristãos para celebrar o nascimento deste homem que confessavam ser Deus? Muito simples.

Os cristãos conviviam ao tempo com uma grande festa pagã que movimentava toda a Europa e se celebrava a 25 de Dezembro: era a festa do início da estação do Inverno (que começa quando os dias começam a crescer e o sol a levantar-se progressivamente mais alto na linha do horizonte), a festa do Natalis Solis Invicti (Nascimento do Sol invencível). Os cristãos substituíram-na então, sem qualquer tentação de triunfalismo, pela festa do Natalis Solis Iustitiae (Nascimento do Sol da Justiça), como tinha chamado o profeta Malaquias (4,2) ao Messias que havia de nascer. Uma mesma festa com conteúdo diferente: os pagãos celebravam o astro Sol, os cristãos aquele cujo “rosto resplandecia como o sol” (Mt 17,2).

Saídos da clandestinidade, terminada a perseguição, os cristãos afirmavam-se: e se, desde o princípio, a Páscoa era ponto firme da sua celebração, ela ganhou um novo alento com a celebração do Natal, que, a partir de então, a Igreja nunca mais dispensou. Porque Jesus não é só o ressuscitado, é também o nascido. Não é só Deus, é homem também. Não é só Filho de Deus, é também Filho de Maria, sua Mãe, como haveria de ser dito 100 anos depois de Niceia, em Éfeso, no ano de 430 (3º Concílio ecuménico). Foi este o século da grande reflexão cristológica que, pelos séculos fora, não deixou de se fazer sentir noutros domínios, na iconografia, por exemplo.

O Natal não é, por isso, para os cristãos, uma celebração secundária. Por mais voltas que lhe demos, por mais que no-lo digam que é a festa “da família” e “das prendas”, a festa do Natal é a celebração de um Deus que nasceu homem como os homens, por causa dos homens e para salvação dos mesmos homens. A festa do Natal cristão é da comunidade dos cristãos e dos cristãos em comunidade. Nós não podemos passar sem o Natal!

A festa do Natal é uma festa cristã, isto é, dos cristãos. Se não é, é melhor acabar com ela, com a festa do Natal…

Arlindo de Magalhães, 24 de Dezembro de 2017

Um vulto que a História e a Igreja não esquecem

 

Pairava sobre a Europa uma grande angústia coletiva. O século XIV fora “um século sem esperança” (sempre que se veja uma imagem de Jesus ou de sua mãe, a escorrer-lhes sangue por todos os lados, carregados de dores, as Pietás e seu filho carregados de lágrimas e cruzes…), não duvidem, são do séc. XIV, ou delas copiadas (lembram-se de um filme, A paixão de Cristo, de Mel Gibson, a que alguns comentadores puseram o título de Um Coelho esfolado?).

Quem não tinha medo perante o “Rex tremendae maiestatis”! (Ó rei da tremenda majestade!). A par, a obsessão pela salvação pessoal!

Ao mesmo tempo e até por isso — lembrem-se do que disse aqui há semanas: o povo perguntava a si próprio porque é que o antigo pagão era feliz e o cristão daquele tempo vivia infeliz e atormentado —, ao mesmo tempo e até por isso — dizia — a credibilidade da Igreja, sobretudo a romana, começara a ser posta em causa. Este clima de dúvida generalizada e progressiva, descrendo das verdades impostas por via hierárquica, levou a que, tanto ao nível das elites como das massas populares, muitos perguntassem, e com boa-fé, se a Igreja hierárquica era realmente a Igreja de Jesus.

A par disto, com a descoberta da Bíblia — que a descoberta da imprensa em 1445 foi um verdadeiro fenómeno (do grego fainô > aparecer) —, nasceu a sede de uma Igreja evangélica, livre e simplificada, capaz de substituir a que existia naquele tempo e que há muito já deixara de espelhar o rosto autêntico de Jesus.

Um humanismo cristão, reformista, começou a fazer a crítica das alienações religiosas que tinham sido muitas no fim da Idade Média. Reforma precisa-se!, “do papa ao sacristão, do imperador ao pastor!”, escreveu um dos maiores pregadores e historiadores religiosos do séc XV (Geiler de Strasbourg, 1445-1510). A reforma — Lutero à frente — respondeu a uma situação específica das massas e anseios coletivos.

Claro que, nem tudo o que Lutero fez o fez bem: foi um antissemita particularmente virulento, mesmo para os costumes da época; denunciou, outro exemplo, a promiscuidade entre a Igreja Católica e o poder temporal, embora ele próprio tenha estado sempre estreitamente ligado à nobreza alemã, não hesitando em recomendar que as revoltas camponesas (que as suas ideias, aliás, tinham ajudado a instigar) fossem reprimidas sem dó nem piedade; os anabatistas, outro exemplo (que pretendiam que o batismo das crianças não era válido e ainda que o dos adultos tinha de ser revisto), foram por isso perseguidos e massacrados, etc. Lutero errou aqui e ofendeu acolá.

Morreu no dia 28 de abril do ano que corre, o Pe Carreira das Neves (1934-2017), um dos nomes mais importantes dos estudos bíblicos em Portugal.

Vou pô-lo a falar:

«A Europa continua a ser, a nível religioso, na maioria dos seus habitantes, uma Europa cristã, católica, ortodoxa e protestante. E todos sabemos que, nestes quinhentos anos, não faltaram ataques doutrinais de heresia de católicos contra protestantes e de idolatria de protestantes contra católicos. Pior ainda, houve guerras sangrentas entre as duas fações doutrinais. Pertenço ao tempo em que um católico não falava a um protestante…

É verdade que nestes últimos 50 anos, tudo mudou por obra e graça do Concílio Vaticano II ao defender a liberdade religiosa como um dos princípios fundamentais dos direitos humanos (Dignitatis Humanae), do estabelecimento da democracia representativa em Portugal, do nascimento da União Europeia e do trabalho ecuménico entre católicos e protestantes. Pelo meio surgiu o trabalho teológico e histórico de académicos católicos e protestantes. Hoje em dia existe uma boa relação académica, religiosa, espiritual, de amizade e respeito entre católicos e protestantes. Nunca esquecerei o impacto que recebi ao ler, em 1975, o que o grande teólogo católico Pe Ives Congar escreveu sobre Lutero: ”Lutero é um dos maiores génios religiosos de toda a história. Coloco-o no mesmo plano que Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Pascal. Posso afirmar que é ainda maior. Ele repensou todo o cristianismo. Ofereceu-nos uma nova síntese, uma nova interpretação”. (…)

Não há dúvida que hoje em dia os católicos veem a pessoa de Lutero pela positiva e não pela negativa, e o mesmo sucede com luteranos em relação a católicos. Valerá, então, a pena voltar à história do século XVI sem reler, uma vez mais, essa figura outrora tão amada e tão odiada? Se o que tapa os olhos de católicos e protestantes foi retirado do campo de visão de ambos os lados, para quê voltar às feridas do passado? Penso que vale a pena repassar e reler, mais uma vez, a vida de um homem que marcou a história religiosa da humanidade, sobretudo da história do cristianismo. Regressar a Jesus Cristo, a São Paulo, aos Evangelhos, à história dos Padres da Igreja, é regressar às fontes com os olhos da exegese bíblica de hoje e com os olhos da cultura religiosa, científica, política e social dos nossos dias. Se Lutero nascesse hoje, tudo seria diferente».

Meus irmãos: pouco vos disse de Lutero nestes últimos domingos. Oxalá entendamos todos que católico-romanos e luteranos-protestantes que são a mesma coisa, anglicanos ou lusitano-evangélicos, batistas e anabatistas, e etc, etc, etc, somos todos cristãos: batizados e caminhantes para o Reino, Jesus é o Senhor e a Eucaristia o farnel para o caminho.

Os sinais da verdadeira Igreja — disse Lutero — são o baptismo, o sacramento do altar, o poder de atar e desatar o pecado, a pregação da Palavra de Deus, o símbolo apostólico (o credo), o Pai-nosso e a oração da Igreja, a honra e o respeito da autoridade, o louvor e a estima do casamento, e o sofrer dos irmãos em tempo de perseguição e morte por causa do Evangelho.

Com o tempo, a História pediria mais: a questão de Deus, o mundo do trabalho e dos pobres, a doutrina social, e quanto mais disse o Concílio Vaticano II: desde logo que a Igreja é “um mistério, um sacramento e um instrumento”, um “Povo de Deus”, mas não só de católicos, pois que os humanos somos todos irmãos. No tempo de Lutero estas questões não eram ainda questão. Mas o seu nome, a sua figura, a sua capacidade e a sua verdade, são linhas de um vulto que a História e a Igreja não esquecem. Por isso lhe dedicamos estas simples reflexões.

Arlindo de Magalhães, 26 de Novembro de 2017

Entre o Homem e Deus

Porta da igreja do castelo de Wittenberg, Saxónia

“O justo vive da fé” (Rm 1,17), escreveu S. Paulo aos romanos: está na Escritura. Exatamente como lá está, não há dúvida: a Escritura, diz Lutero, não necessita de ser ilustrada, nem esclarecida, seja pelo que for, seja por quem for, a Escritura diz e está dito que “o justo vive da fé”. Ponto final parágrafo.

Por isso, entre o Homem e Deus, não é necessária mediação alguma. Não há nenhum sacerdócio especial (papas, bispos, cardeais, cónegos, abades, curas, reitores e capelães, etc), basta o que difere um presbítero de um batizado. Não precisamos nem de um ”papa romano” como não precisamos de tantos sacramentos, bastam o Batismo e a Eucaristia. De mais nenhum fala a Escritura. O “sacrifício da missa” — eu de facto aprendi na catequese que a missa é a “repetição incruenta do sacrifício da cruz”! — é a mais grave e horrível invenção que apareceu na Igreja romana, quando basta a Eucaristia, a celebração da ceia, em recordação da paixão e morte do Senhor. Nada de missas e missinhas por tudo e por nada.

Com tudo isto e muito mais, estava já aberta a porta ao “livre exame”, que afirmava que todo o cristão era livre de interpretar a Escritura.

E com isto Lutero tentou limpar do mundo eclesial tudo o que lhe pareceu que estava a mais. Digamos que quase em tudo tinha razão; mas não foi capaz de controlar a velocidade com que tudo aconteceu.

Posso contar, por exemplo, porque é que ele se casou, tinha já 37 anos? Ensinava que o casamento é um mandamento absoluto e universal de Deus, uma necessidade da natureza humana. Mas ensinava também que o casamento não era um sacramento, não constava na Escritura. Para ele, o casamento competia ao Direito civil, não ao eclesiástico. Então…, Se é como dizes, porque não te casas? Instado por alunos e amigos, resolveu-se. Casou e teve 6 filhos, 3 rapazes e 3 raparigas.

Lutero lutou por uma Igreja limpa, e não institucional. A Igreja do seu tempo, aquela que ele conheceu quando foi a Roma e aquela outra, mais política que religiosa, da sua Saxónia, estava cheia de lixo.

Lutero quis fazer o que, muito mais tarde, João XXIII tentou quando surpreendeu o mundo e lhe disse que reuniria um Concílio ecuménico nestes termos: “Vou abrir a janela da Igreja para que possamos ver o que acontece do lado de fora e para que o mundo possa ver o que acontece na nossa casa”

Lutero era um homem profundamente religioso, espiritual, na linha da melhor tradição germânica (são do seu tempo grandes figuras com quem contactou: Erasmo, Eck, Hus, Muntzer, Melanchthon, Zuinglio, …), muito mais religioso que todos os papas, bispos e padres do seu tempo, todos juntos. Soube testemunhar o Evangelho com força e convicção, génio verdadeiramente vulcânico e arrasador (“eu não faço nada a meias”, dizia).

Tinha defeitos? Sim, tinha. Primeiro, era alemão, embora ainda não houvesse propriamente uma Alemanha (no seu tempo havia uma Saxónia composta de tribos germânicas), sofria de um egotismo exagerado: tudo nele era filtrado pelo EU, livre e independente, verdadeiro “imperialismo do sujeito”; só o seu ponto de vista lhe parecia certo e verdadeiro, critério da Verdade. Mercê desse subjetivismo foi um radical. “Doctor hiperbolicus” lhe chamou Erasmo que também o disse “capaz de grandes intuições”.

Harnack (1851-1930), teólogo e historiador alemão do século passado deixou escrito que “o orgulho de Lutero consistiu em ter sido mais sério que os seus contemporâneos. Lutero deu sobejas provas de humildade. Houve também, é certo, um Lutero arrogante e provocador. Mas, numa época em que a violência era de regra e a grosseria reação corrente, que esperar de Lutero depois de o Núncio Alexandro (1480-1542) o ter mimoseado com extrema violência e grosseria chamando-lhe novo Ario, basilisco, novo Maomé, Satanás, cão, assassino e animal…”?

Lutero reagiu e ultrapassou os seus adversários num crescendo inaudito. E quanto mais o atacavam, mais ele se opunha à igreja romana.

Arlindo de Magalhães, 18 de novembro de 2017

O justo vive pela fé

 

Já disse que Martinho Lutero, nascido em 1483, era um monge agostinho. Ordenado presbítero em 1507, foi Doutor na Universidade de Wittenberg (1508) e depois seu professor (1513).

A sua primeira educação, a familiar, foi bastante dura: por todos os lados, bruxas, demónios, duendes, feitiçarias, aparições mágicas… A fé, melhor, a crença alemã daquele tempo era toda ela supersticiosa, de origem pagã, espíritos malignos que voavam pelos ares ou penetravam nas águas e nas terras pantanosas… Lutero foi educado a temer o demónio. A luta entre Deus e o diabo, entre Cristo e Satanás, decidiria quem possuía a Igreja e o Mundo. Foi neste contexto, que o pai quis que o filho estudasse Direito. Mas ele começou pela Filosofia.

O demónio, o inferno, o medo de não se salvar e a necessidade de procurar Deus, de o encontrar, a ele, à sua graça e à sua salvação, já Doutor, decidiu-se pela vida religiosa. A vida monástica uma realidade popular e reconhecida socialmente. A todo o custo, o jovem Martinho queria sossegar as suas inquietações espirituais e, por isso, trocou os barulhos do mundo pelo silêncio eloquente do mosteiro. O prior que o recebeu, uma vez conhecidas as suas qualidades intelectuais, concluiu que Lutero oferecia suficientes garantias de poder ser chamado por Deus para a vida religiosa e, portanto, entrou no convento. Assim aconteceu em 1506, tinha 23 anos.

Ordenado presbítero um ano depois, 1507, em 1508 era professor de Filosofia e estudante de Teologia. Com tudo isto, no entanto, o ânimo de Lutero não se livrava das suas melancolias e inquietações, e dos seus escrúpulos. Continuava a não saber como ultrapassar as suas inseguranças e temores, continuando a pensar que Deus era um juiz aterrador e castigador, tremendamente justiceiro e misteriosamente arbitrário. A aparente grandeza e soberania de Deus era para ele uma fonte de angústia.

Em 1510, era já professor de Teologia, e no ano seguinte foi a Roma com um outro irmão seu, religioso, tentando esclarecer um assunto da Ordem monástica. Já então, como diz o dito popular, Roma veduta, fede perduta (“Ir a Roma é perder a fé”), veio de lá convencido que Roma era uma cidade morta, e a Igreja… é melhor não pensar nisso…

Regressado, em 1512 era Doutor e continuou professor de Teologia. No meio de todas as suas dúvidas, tentou alcançar a verdade teológica: professor, começou a denunciar não!, a encontrar no cristianismo que se vivia desordens teóricas e práticas que levantavam muitas dúvidas.. A partir da sua cátedra começou mesmo a fustigar bispos, presbíteros, doutores e religiosos. Mas manteve-se fiel: “Os hereges querem mal à Igreja porque a atacam falsamente e dizem que é um lodaçal de vícios e perversidades. Mas não. A Igreja é o novo povo da fé, nascido da água e do Espírito, a sua cabeça é Cristo; ela cresce e aperfeiçoa-se no meio de luzes e sombras, de pecadores e santos, de perseguidores e hereges. Deus vivifica-a e condu-la à glória futura” (Texto de Lutero).

Estávamos em 1515, Lutero costumava estudar numa sala com estufa situada numa Torre do convento agostinho e, um dia — deve ter dado um grande berro —, apoderou-se dele uma firmíssima intuição ou iluminação concetual como fruto maduro de tanto pensar e orar:

A justiça de Deus não é uma justiça distributiva, nem condenatória, nem punitiva.

A justiça de Deus justifica “per solam fidem” (só pela sua fé). Deus acolhe o pecador e comunica-lhe a sua justiça. A salvação não resulta do esforço do homem [sacrifícios, promessas, peregrinações, rezas…], é totalmente gratuita: recebe-se só pela fé (“sola fides”). A justiça de Deus é aquela de que S. Paulo fala na sua Carta aos romanos: “Iustus autem ex fide vivit” [O justo vive da fé] (Rm 1,17).

Fixado nesta descoberta ou limpeza, encetou ou tentou a purificação da Igreja: tudo o que era lixo, quase tudo, foi para a lixeira. Ficou a fé, porque o justo vive da fé. E basta.

Antes odiava o Deus justo e castigador dos pecadores. Mas agora, uma vez que por “justiça de Deus” se entendia aquela graça (Paulo chama-lhe justiça) pela qual Deus justifica o homem, convertendo-se num Deus de misericórdia, agora o cristão sente-se como que se as portas do Paraíso se lhe abrissem à sua frente e ele (o cristão) nele (paraíso) entrasse. Agora, “o justo vive da fé”!

Não é verdade que “o homem vive da fé”, como diz Paulo (Rm 1,17)? “Eu, que tinha perdido Jesus, o Cristo, na teologia escolástica, encontrei-o agora em Paulo” (Lutero).

Consequências?

Arlindo de Magalhães, 12 de Novembro de 2017

O novo povo da fé

Se o mundo europeu estava muito mal — o século XIV tinha sido “desgraçado” — a Igreja estava pior.

Primeiro, desde 1054 que a Igreja estava partida em duas: a ortodoxa e a romana, num Cisma dito “do oriente” (skisma, palavra grega > separação). Os cabeças das Igrejas ocidental e oriental, Roma e Constantinopla, excomungaram-se mutuamente. Até hoje, apesar de todos os perdões! Depois, num período de 40 anos, 1378 e 1417, outro cisma, este “do Ocidente”. Houve neste tempo dois Papas ao mesmo tempo. A França acusava que o Papa era sempre e só romano — e o papa foi viver para Avinhão, na França; a Itália apareceu logo a dizer que Papa só em Roma, e logo arranjaram outro que ficou em Roma. Dois Papas, cisma do Ocidente.

Dentro da Igreja, de resto, na Igreja de Jesus!, o padre era o único cristão: o leigo não tinha, não podia, não sabia, ninguém o ensinava, ele só tinha que fazer o que os clérigos mandavam; os leigos cumpriam sem perceber porquê nem para quê.

Os leigos eram uma desgraça mas os Papas eram pior, preocupados apenas com os estados pontifícios e com as suas famílias. A sua vida moral nem dela se deve falar aqui. Tinham filhos que depois eram cardeais e coisas do género… Os papas não eram papas, eram militares e políticos…, eram apenas papas-reis ou reis-papas.

E tinham os cristãos que fazer muitas coisas para se salvar: muitas devoções piedosas, culto de santos, relíquias, peregrinações, jejuns, sacrifícios, rezas, as 1as sextas feiras chegaram mais tarde… Mas já havia Purgatório que “purgava” os pecados até à sua eliminação completa… Só assim as almas podiam chegar à presença de Deus.

Mas mais. Em vida, os cristãos podiam enviar pontos para as almas do Purgatório. De cá (deste mundo) ajudavam-nas assim a sair de lá (do Purgatório); mas podiam também depositá-los na sua conta, o que lhes permitia libertar-se mais depressa do fogo do Purgatório, se lá caíssem. Para isso, já se celebravam muitas missas, é verdade. Mas surgiu então outra maneira de acumular pontos.

Roma queria e estava a construir os palácios da Renascença.

À volta do papado, cardeais e patriarcas, bispos e arcebispos, abades e monsenhores, prefeitos apostólicos, prelados e vigários, todos queriam era rendas (dinheiro). Formação teológica não existia, tudo vivia na incultura, na ociosidade, no concubinato.

E o pobre homem ou mulher, ainda se não chamava leigo nem leiga, se viviam preocupados era a sua salvação, a salvação da sua alma: Céu, Inferno ou Purgatório? É aqui que começa o individualismo, como disse já na semana passada: eu quero é salvar a minha alma; tu arranja-te como puderes! Neste quadro histórico ressurgiram as novas indulgências.

Os papas de Roma, cidade em ruínas, quiseram fazer nela um céu na terra. Que ainda hoje existe: Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Bramante, capela Sistina, etc, etc, etc. Mas como pagar isto tudo?

Já à missa só se assistia, portanto dela não participava a assembleia (enquanto o padre botava a missa, os nossos avós rezavam o terço!); já a Bíblia não se lia, que ninguém sabia latim e ela não se podia traduzir para as línguas vernáculas porque tinha muitas coisas que… (eu ainda sou do tempo em que o IX Canto d’Os Lusíadas também não se podia ler nem imprimir em livros escolares).

Tempos de muitas estupidezes!

A questão das indulgências, hoje, é difícil de explicar e entender.

Na Igreja primitiva havia três pecados que impediam a comunhão com Deus e com os irmãos: o homicídio, o adultério e a negação da fé. Para ser readmitido na comunidade, isto é “na Igreja”, o penitente tinha de converter-se (tempo houve em que tinha de fazer um catecumenato penitencial de anos muitos, de meses então, etc).

Esta dura exigência …, 1º) alargou a lista de pecados, 2º) mas também amoleceu a dureza do tempo penitencial. E a Igreja começou a ter indulgência com o pecador. Esta palavra latina tem uma amplitude muito grande, mas é aqui um sinónimo de condescendência, de tolerância.

Estávamos no século XVI. E que aconteceu?

Em 1506, o Papa Júlio II (1503-1513) prometeu indulgências — perdão ou abrandamento de certas obrigações penitenciais — a quem ajudasse com dinheiro a construção da basílica de S. Pedro, em Roma. O pior, um verdadeiro escândalo, foi quando no Sagrado Império romano-germânico (digamos na Alemanha) se organizou uma campanha que distribuía indulgências mas exigia que se pagasse uma taxa: um “autêntico negócio pecuniário”.

Contra esta pouca-vergonha, levantaram-se muitas vozes: “A descomposição da Igreja era tal que absolutamente se levantaram vozes em busca do autêntico cristianismo, à procura de Deus e da sua graça; isso implicaria limpar o campo da fé de toda a prostituição”.

Mas o nosso Lutero não disse que a salvação depende unicamente da fé e da graça de Deus (solus Deus, sola fides, sola gratia: os três solus de Lutero).

Daqui nascerá uma nova conceção da Igreja. A Hierarquia, o sacerdócio ministerial, o Papado, não têm razão de ser. Lutero dirá mesmo que este último é “uma invenção do Diabo”.

Rejeitada a Igreja podre, visível e institucional, começa a perceber-se que era necessário voltar à Bíblia (nem todos saberão que a imprensa nascera em 1445, 38 anos antes do nascimento de Lutero: o primeiro livro impresso por essa “épica invenção” foi a Bíblia, que rapidamente se espalhou por todo o mundo e que permitiu que se voltasse à Sagrada Escritura!).

Tudo isto na busca de «“um povo novo”, o “novo povo da fé”, nascido da água e do Espírito Santo, povo cuja cabeça é Cristo, povo que cresce e se aperfeiçoa no meio de luzes e sombras, de pecadores e santos, de perseguidores e hereges, povo que Deus vivifica e conduz à glória futura» (texto de Lutero).

Arlindo de Magalhães, 5 de Novembro de 2017

Desperta, Jerusalém

Adolph Gottlieb, “Frozen Sounds”, 1951 | © The Adolph and Esther Gottlieb Foundation

 

 

Babilónia terá nascido cerca do ano 1750 aC e conheceu o seu apogeu com Nabucodonosor II (605–562 a.C.) mais de 1.000 anos depois.

No ano 722 tinha caiu a Samaria e, mais tarde, em 587 aC Israel. Foi esta uma queda mais grave pois que, com a conquista da Judeia, foram-se Jerusalém e o Templo, a “morada de Deus no meio dos homens”, praticamente destruído. Gravíssimo! E mais: Nabucodonor levou consigo para a Babilónia, cativos, os melhores do Povo de Iavé.

“A cidade fiel, outrora cheia de Direito, nela morava a justiça mas agora são todos assassinos! Eras como a prata mas ela transformaste-te em escória; eras como um bom vinho mas agora misturaste-te com água. Os teus governantes são rebeldes, companheiros de ladrões, todos à procura e regalias e recompensas” (Is 1,21-23).

“Judá foi exilada e oprimida por dura servidão; foi deportada entre as nações sem achar repouso! (Lm 1,3).

E por séculos se choraram os filhos de Iavé, eles e por eles. O nosso Camões recordou-os, recriando o Salmo 137:

“Sôbolos rios que vão por Babilónia me achei,
Onde sentado chorei as lembranças de Sião.
Nos salgueirais pendurei os órgãos com que cantava,
Aquele instrumento ledo deixei da vida passada.
Qu’era da música minha que eu cantava em Sião?”.

O perigo em tempos de crise é procurar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda sem muros…

Os profetas, porém, quase logo perceberam que não perduraria aquela desgraça:

“O Senhor terá compaixão de Jacob e voltará a escolher Israel, estabelecendo [os seus filhos] na sua terra” (Is 14,1); “Ouve-me, Israel: Fui eu que te criei, que te formei e acompanhei desde o seio materno e te socorri. Nada temas, meu carinho, meu eleito! Vou derramar água sobre aquele que tem sede! Não temas, meu carinho, meu eleito! Vou derramar água sobre o que tem sede e fazer correr rios sobre a terra árida! Vou derramar o meu espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção sobre os teus descendentes!” (Is 44,1.3.)

Tanta promessa e quanta graça!

Mas no ano 538 aC, Ciro, o Persa (2 Cro 36,22 /Esd 1,1; Is 44,28) sobe por aquele Médio Oriente acima e conquista a Babilónia, ano 539 aC, proclamando que os deportados judeus podem voltar à sua terra: “Eis o que diz o Senhor a Ciro, seu ungido: Vou derrubar as nações à tua frente, desatar o cinto dos reis, abrir-te as portas das [suas) cidades. Nenhuma ficará fechada. Irei diante de ti a aplanar-te os caminhos pedregosos” (Is 45, 1-2).

Os judeus exilados estão, portanto, a partir de agora, autorizados a regressar à sua terra de Judá, em particular a Jerusalém, para reconstruir o Templo. E obrigou a Babilónia a devolver ao Templo todos os tesouros arrebatados, e deu mesmo dinheiro para pagar a reconstrução do Templo.

Claro que os melhores judeus do tempo, os profetas, concluíram que Ciro havia sido escolhido por Deus para libertar o seu Povo exilado: “Para que se cumprisse a Palavra do Senhor, Ciro, rei da Pérsia, mandou publicar em todo o seu reino o seguinte decreto: ‘O Senhor, Deus do céu encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém’” (Esd 1,1). “Eis o que o Senhor… diz a Ciro: ‘És o meu pastor e cumprirás em tudo a minha vontade’. E a Jerusalém dirás: ‘Serás reedificada’, como ao Templo ‘Serás reconstruído’” (Is 44).

Que diria Israel a tudo isto?

“Desperta, Jerusalém! Eu, o Senhor, sou o teu Deus! Desperta e levanta-te! Reveste-te da tua força, Jerusalém, cidade santa! Fugi da Babilónia…, mas não às escondidas: o Senhor irá diante de vós e o Deus de Israel seguirá na vossa retaguarda!” (Is 51 e 52).

”Saireis radiantes de alegria e ireis em paz para vossas casas. Montanhas e colinas irromperão a cantar diante de vós, a cantar. E todas as árvores dos campos em que passardes vos aplaudirão. Em vez de silvas crescerão ciprestes, e em vez de urtigas crescerá a murta. Isto será um título de glória para o Senhor e um sinal eterno que jamais perecerá” (Is 55).

Eu, o Senhor, sou o Senhor e mais ninguém!” (Is 45,6), ouviste?

Parece que não!

Arlindo de Magalhães, 22 de Outubro de 2017

O banquete

Pieter Bruegel, ‘O Casamento Camponês’ (1567)

Se bem que nenhum de nós tenha lido a Bíblia de fio a pavio, há na Bíblia textos mil vezes escutados: um deles acaba de ser lido, mais uma vez, o do banquete no cimo do monte, uma das mais belas peças da literatura mundial.

Antes de estender a toalha, convém saber que 1,5 capítulo antes, o primeiro dos três Isaías (o Livro de Isaías foi escrito por três profetas chamados todos Isaías) escreveu uma primeira série de vaticínios, de juízos cósmicos, que haveriam de cair sobre a humanidade.

Um pouco o que acontecera a Noé: “A Terra estava, diante de Deus, corrompida e cheia de violência. … Vou exterminá-la — disse Deus — … Tudo quanto existe sobre a Terra desaparecerá!” (Gn 6, 11.13).

Digamos que Isaías se inspirou no Génesis:

“A Terra está deserta e dispersados os seus habitantes, leigos e sacerdotes, escravos e senhores, senhoras e suas servas…, o vinho novo está fraco e a vinha murcha, … cessou a alegria dos tambores, acabou o ruído dos foliões, calou-se a cítara e as bebidas sabem a amargo… a cidade cai aos pedaços e as casas estão fechadas, e na cidade só há escombros. [Mas, como no dilúvio] Levantar-se-á a voz do mar, o terror; a cova e a mentira é o que vos espera, habitantes da Terra, … abrem-se as cataratas lá do alto, a terra cambaleia e treme, move-se e contorce-se…, pesa sobre ela o seu pecado…” (Is 24).

Mas, outra vez Iavé se condoeu do seu povo, como no dilúvio: “Não voltarei a amaldiçoar a Terra por causa do homem nem a castigar os seres vivos. Enquanto subsistir a Terra, haverá sempre sementeira e colheita, frio e calor, Verão e Inverno, dia e noite” (Gn 8,22).

E tal como aconteceu na terra corrompida do tempo de Noé, agora Deus promete também a todos os povos uma festa, o tal banquete escatológico do fim dos tempos, de “boas carnes e vinhos preciosíssimos. E de toda a terra desaparecerão as lágrimas e tudo quanto oprima o povo. Alegremo-nos e rejubilemos, que a mão do Senhor pousará sobre este monte” (Is 25,10).

No meio desta visão profética, podemos perguntar que cidade é a que anda por aqui, cidade que cai aos pedaços e onde apenas há escombros. É Babilónia, a grande cidade ou região para onde haviam já sido trasladados os mais destacados habitantes de Jerusalém, homens e jovens, quando, no ano 587 aC, foi tomada e destruída por Nabucodonosor.

Babilónia era o nome de uma região e da cidade mais evoluída do mundo naquele tempo. Banhada pelos rios Tigre e Eufrates (na Mesopotâmia > meso+potamós, no meio de 2 rios, o Tigre e o Eufrates), foi ali que nasceram a Escrita e o Direito. Teria surgido por volta do ano 1750 aC. Por mais de 1.000 anos, Babilónia foi a senhora, estendeu-se, deu cabo da Judeia, de Jerusalém e do seu Templo, e levou os deportados para a Babilónia. Mas, em 539 aC, cairia derrotada  por Ciro, rei persa que libertaria os judeus no exílio: “Um homem chamado Ciro conquistaria Babilónia e libertaria os judeus” (Is 44,28 e 45,1).

Neste primeiro mundo de riqueza e de luta — Noé, Nabucodonosor, Ciro, David e Salomão, etc, e Mesopotâmia, Suméria, Caldeia, Assíria, Babilónia, Jerusalém, etc — o profeta percebe que, de facto, só um banquete de “todos os povos” (Is 25,6)…, permitam-me, só uma ONU!

«O perigo em tempos de crise é procurar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros

A guerra começa aqui e termina lá. Vemos as notícias nos jornais e na TV… Hoje, muita gente morre e a semente da guerra que gera inveja provoca ciúmes, a cobiça no meu coração é a mesma coisa que a bomba que cai num hospital, numa escola, matando crianças – é o mesmo. A declaração de guerra começa aqui, em cada um de nós. Por isso, pergunto: “Como defender a paz no meu coração, no meu íntimo, na minha família?”. Defender a paz, mas não só: edificá-la com as mãos, todos os dias. E assim conseguiremos fazê-la no mundo inteiro. …

Recordo quando começou a tocar o alarme dos Bombeiros, depois nos jornais e na cidade… Isto atraía a nossa atenção para algo que aconteceu, uma tragédia ou outra coisa. E logo ouvi a vizinha de casa chamar minha mãe: “Senhora Regina, venha, venha!’”. E minha mãe saiu a correr, assustada: “O que é que aconteceu?”. E a mulher, do outro lado do jardim, disse a chorar: “A guerra acabou!”» (homilia do Papa Francisco na Casa Santa Marta, em Roma, 2017/02/16).

Foi este o banquete no cimo do monte!

Arlindo de Magalhães, 13 de Outubro de 2017

Diante de Deus

Kazimir Malevich, ‘White on White’ (1918)

A questão de Deus está presente em todas as páginas da Escritura, ele e a sua revelação a Israel. Disse Ezequiel (18,25): “Vós dizeis que a maneira de proceder do Senhor não é justa” (Ez 18,25).

Era injusto o Deus de Israel?

Dificuldade de Israel e nossa, a de acusarmos Deus quando qualquer coisa (parece que) não funciona. É também o nosso modo de o procurarmos, de nos interrogarmos sobre Ele: quem é Deus?, que é Deus?

Antigamente, o catecismo e a própria filosofia procediam pela afirmativa: Deus é um ser eterno, omnipotente e omnisciente, criador e senhor de todas as coisas. Mas este Deus morreu.

Foi Jesus que acabou com ele: Pai nosso (Abbá!) e Reino de Deus são agora duas palavras indispensáveis para entendermos o Deus de Jesus Cristo.

Diante de um Deus legal ou/e moral, fechado em normas e preceitos positivos, Jesus falou de um Deus que aponta o amor sem fronteiras e convidando-nos a que sejamos bons como Deus o é (Mt 5,21-48).

Diante de um Deus que se afirmava à custa do homem – e por isso o homem estava, por exemplo, ao serviço do Sábado (de Deus) – Jesus falou de um Deus que quer saciar toda a fome e toda a sede do homem, um Deus anti-mal para quem até o sábado está ao serviço do homem: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o Sábado” (Mc 2,2t ss).

Diante de um Deus com quem o homem unicamente se podia relacionar chamando-lhe “Senhor! Senhor!” e a quem devia oferecer sacrifícios sem se preocupar com o irmão, Jesus falou de um Deus que prefere a misericórdia, que exige a reconciliação e a fraternidade, cujo culto seja verdadeiro e o templo não se converta numa casa de bandidos (Mat 5,23-24; 7,21-23 e 21.12-17).

Diante de um Deus aferrado às tradições humanas (os que lavam as mãos antes de comer mas deixam passar o camelo e filtram o mosquito, etc) e passam ao largo do caído na valeta do caminho para não incorrerem em impureza, Jesus falou de um outro Deus que nos remete sempre para o fundamental, o Deus do bom samaritano, da honradez e da justiça, da sinceridade, da compaixão e da misericórdia (Mt 5,1-8 e 23,13-28; Lc 10.30-37).

Diante de um Deus de perdão que só podia ser utilizado sete vezes – Jesus falou do Deus do perdão sem limites, “setenta vezes sete”, isto é, “sempre” (Mt 18,21-22).

Diante do Deus que tolerava o serviço a outros mundos – dinheiro incluído -, Jesus reclamou a entrega exclusiva ao Deus verdadeiro abandonando todos os ídolos (Mt 6,24, 13-44-46, 19,16-24).

Diante do Deus do fariseu e do irmão mais velho do pródigo, que se apresentavam com créditos recolhidos e se julgavam com direito a desprezar os pecadores, o Deus de Jesus optou por estes últimos, publicanos e prostitutas, os perdidos e os que não contam (Mt 21,28-32; Lc 15,1-32 e 18,9-14).

Diante de um Deus do poder que se impõe e oprime, do triunfo que esmaga e deslumbra, o Deus de Jesus respeita o homem e a sua liberdade, possibilita e pede a resposta de uma fé livre e adulta (Mt 4,1-11, 12,38-40, 16,1-4).

Diante de um Deus dos sábios e entendidos, o Deus dos pequenos e dos simples (Mt 11,25); do Deus dos arrogantes e poderosos, o dos humildes (Lc 15,32); diante do Deus dos ricos, dos saciados e dos que se riem, o Deus dos pobres, dos famintos e dos que choram.

Podia continuar com as contradições mas fico por aqui. Jesus falou de um Deus Pai e seu Reino de que nos aproximaremos pelo amor pessoal e livre, pela bondade infinita, pelo amor fraterno, pelo perdão sem limites, pela misericórdia escandalosa, pela graça irritante que derrama sobre todos os homens. Ele apresenta-se como pai de todos mas proclama claramente a sua preferência pelos perdidos e pelos simples, pelos pecadores e pelos pobres. Um Deus escandaloso, conflictivo e exigente, mas ao mesmo tempo um Deus que declara a vaidade dos ídolos (chamem-se dinheiro, nacionalismo, o que for) e o valor do ser humano. Para este Deus de Jesus, a pessoa tem um valor único e nada pode ser feito contra ela, tão pouco a lei, o culto ou o sacrifício…

… por isso é que ele – Jesus, o Servo de Iavé, ontem e hoje – foi crucificado!

“Vós dizeis: a maneira de proceder do Senhor não é justa. Espera aí, Casa de Israel: será a minha maneira de proceder que não é justa, ou o teu modo de proceder que é injusto?” (Ez 18,25). Por isso é que “os publicanos e as mulheres de má vida irão diante de vós para o Reino de Deus” (Mt 21,32).

Arlindo de Magalhães, 1 de Outubro de 2017

A Vinha do Senhor

Poucas culturas dependerão tanto de um trabalho carinhoso e delicado do homem e do clima como é o da vinha.

A Palestina, terra de vinhas — era famoso o vinho do Líbano (Os 14,8) e o de Jelbón, cerca de Damasco (Ez 27,18) —, ensinou Israel a apreciar o fruto da videira e a acarinhar um trabalho difícil que dependia muito do clima. Por isso, sempre a religiosidade antiga sempre se associou à misericórdia ou castigo de Deus: se havia vinho, graça de Deus; se a cultura era fraca, castigo divino.

Cultura preciosa e difícil, longa até, tinha qualquer coisa de misterioso. No mínimo, de diferente, percorrida da vinha à adega, ao bom vinho, sobretudo o velho e bem tratado (Is 26,6), o que «alegra o coração do homem», dizia o Salmista (104,15), o que tem «espírito», dizemos nós, sinal da alegria de Deus.

Por tudo isto, o Povo de Israel foi muito justamente considerado a Vinha do Senhor, como tão bela e poeticamente se exprimiu o Profeta Isaías: “A vinha do Senhor do Universo é a Casa de Israel e os homens de Judá serão a casta escolhida” (Is 5,7). Esta vinha, a Casa de Isarel, o Senhor a cultivou com carinho e atenção: mas não deu uvas boas. Ela era «a sua plantação preferida, “dela esperava o Senhor a rectidão, mas, afinal, só deu sangue derramado; esperava a justiça, e só deu gritos de horror» (Is 5,7).

Nesta altura do ano, a utilização destes textos bíblicos traduz a grande consonância existente entre a Liturgia e o ritmo da antiga (e ainda actual) vida rural e agrícola (europeia). Agora que, na Europa mediterrânica, onde foi criada a Liturgia, particularmente a romana, as uvas estão maduras e se fazem as vindimas, cascos e lagar já lavados e pessoal contratado ou, em muitos casos, “pessoal reunido” (familiares. amigos, turistas…), a vindima como que comunga, em zonas vinícolas, um aroma que anda no ar. E é a partir deste trabalho agrícola, neste momento o mais premente, que a Liturgia cristã arranca para a proclamação da Palavra.

É verdade que, se as vindimas são, no ritmo agrícola da vida rural, a última das grandes colheitas do ano (logo entrava o Outono e se iniciava um ritmo quotidiano mais pausado, que anunciava a chegada do Inverno), na nossa vida moderna e urbana, ao contrário, é o ano que começa: terminaram definitivamente as férias para todos, começaram as aulas e também o ano político, o judicial, o económico, o laboral, etc.

Com tudo isto, a Liturgia como que dá uma «guinada», perdoe-se-me o termo: depois desta temática da Vinha, todo o ambiente litúrgico se volta para os Fins, começa progressivamente a ser escatológico, num clima que se adensará e crescerá de intensidade até ao fim do ano litúrgico, que desembocará no Advento, o tempo por excelência da celebração da Escatologia.

Chegados aí – ao Advento – a Liturgia não mais abrandará a comandar e conduzir toda a vida eclesial, nomeadamente na sua vertente pastoral, até ao cume que é a Páscoa, que, por sua vez, tem no Pentecostes o seu clímax.

É importante, por isso, esta mudança temática que a Liturgia engrena por estas alturas de meados de Setembro/inícios de Outubro. Fá-lo em consonância com os ritmos rurais e agrícolas da sociedade tradicional em que foi criada a Liturgia romana ou, no caso, mediterrânica: quando o seu ritmo abrandava e mais disponíveis estavam as pessoas, fim do Outono e Inverno à porta, acelerava-se a Liturgia festiva (o Natal e, pouco depois, a Páscoa).

Embora de modo completamente diferente, também assim acontece na vida urbana. Após a grande dispersão e mobilidade das férias de Verão, as comunidades começaram já a reencontrar-se, as Assembleias a repôr-se, e é grande em todos a vontade de recomeçar…

“Até os que chegam mais tarde, recebem tanto como os primeiros!”.

Arlindo de Magalhães, 24 de Setembro de 2017

O perdão é estrutural

Paul Klee, ‘Rayo Multicolor’
1927

Tal como há oito dias, também hoje o trecho do Evangelho acabado de ler faz parte de um discurso – de um ensinamento – de Jesus sobre a atitude da comunidade para com o perdão (Mt 18, 6/35).

Mateus começa por converter uma instrução de Jesus num diálogo entre ele e Pedro, instrução que arranca de uma pergunta feita pelo discípulo ao Mestre: “quantas vezes posso perdoar?” (Mt 18, 21-22). À vingança sem limites dos primórdios, Jesus contrapõe o perdão sem limites.

Segue-se depois uma parábola (23-34) que tem pouco a ver com o ensinamento de Jesus. A questão era: perdoar quantas vezes?

A parábola, no entanto, não diz respeito à pergunta anterior – “quantas vezes posso perdoar?” -, antes ilustra o que Jesus tinha dito aos discípulos noutra altura, quando lhes ensinou a oração do Pai-nosso: “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (Mt 6,12), pois que ”se perdoardes aos homens, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós” (Mt 6,14).

Mateus explicava então às comunidades proto-cristãs que ele frequentava ou até formara que tinham de levar a sério o ensinamento de Jesus, contido na oração do Pai-nosso: “Pai nosso…: perdoa-nos as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

A isto se chamava, no contexto da cultura judaica, um midrash, um ensinamento edificante, poderíamos até dizer na nossa linguagem moderna, uma homilia edificante. Portanto, uma explicação que não deixasse dúvidas.

A parábola tenta mostrar a necessidade de imitar a misericórdia de Deus: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai” (Mt 5,48), “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36), “Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperardes em troca. Então, será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bom até para os ingratos e os maus” (Lc 6,35).

A parábola utiliza uma linguagem clara e arrasadora. Quem objetaria contra?

Não esqueçamos que Mateus escreve o seu Evangelho para cristãos procedentes do judaísmo. E, no Judaísmo, apesar do que já dizia o Livro do Levítico (19,18) – “Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo” – e apesar de Tobias – “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” (Tb 4,15) -, no Judaísmo, dizia, a lei vigente ou a Moral possível era “olho por olho, dente por dente” (Lv 24,20).

Ainda hoje é assim. Mateus dirigia-se a cristãos provenientes do Judaísmo, por volta do ano 80. A esta data, já o processo de separação do Judaísmo e do Cristianismo tinha chegado ao fim. Até já Jerusalém – no ano 70 – tinha sido arrasada pelos romanos. Mateus e a comunidade (judeo-cristã) procedem da Sinagoga, mas estão já em rutura com ela, num tempo em que o Judaísmo oficial, arrasado pelos romanos e sem Templo, intentava calar qualquer movimento dissidente por ele estabelecido, em particular o próprio movimento cristão.

Mateus percebe que a sua comunidade – proveniente do Judaísmo – tem dificuldade em ceder numa questão tão importante como esta do perdão. Por isso, venha ou não a propósito, sempre que pode, afirma-lhes que, para os discípulos de Jesus, é fundamental, é estrutural e radical o perdão: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois ele faz com que o sol se levante sobre os bens e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter?” (Mt 5,43-46).

Eu sei. Eu sei que o perdão é sempre muito difícil. Mas faz parte integrante do cerne da mensagem de Jesus. Também sei que não se ama um inimigo como se ama um amigo, muito menos um irmão ou um filho. 

Eu sei. Mas também sei que se o perdão não faz parte da ética da cultura que corre, continua a fazer parte da Boa Nova de Jesus. E mesmo que o perdão apareça impossível, temos sempre o exemplo de Jesus, guardado não por Mateus, mas pelo médico Lucas, não tão preso à cultura judaica, ele que escrevia para cristãos vindos do paganismo: “Perdoai-lhes, ó Pai, que não sabem o que fazem!” (Lc 23,34).

Arlindo de Magalhães, 17 de Setembro de 2017

Quem dizeis vós que eu sou?

Filippo Rossi (2015)

“Quem dizem os homens que é o Filho do Homem? E quem dizeis vós que eu sou?” (Mt 16,13 e 15) – perguntava Jesus aos seus discípulos.

Por volta dos seus 27 ou 28 anos, Jesus, que vivia com os pais num povoléu chamado Nazaré (Mt 2,22), começou a andar por toda a Galileia, dita “dos gentios” há já muito tempo (Is 9,1), isto é, região meio paganizada, a norte, e foi depois a Jerusalém, a sul, onde seria executado provavelmente no dia 7 de abril do ano 30. Palmilhou, portanto, intensamente a Galileia, embora por pouco tempo: nem sequer três anos. Não é possível reconstruir com exatidão os lugares desse seu andar, nem os caminhos por onde se movimentou. Sabemos que andou nas proximidades do lago de Genesaré, na Galileia…

Passava de uma aldeia para outra, mas nunca terá visitado nem Séforis, uma grande cidade no interior da Galileia do seu tempo, nem Tiberíades, esta na margem do lago que também se chamava Tiberíades. Séforis e Tiberíades eram as duas cidades mais importantes da Galileia. Em contrapartida, durante algum tempo, demorou-se por Cafarnaúm (“E tu, Cafarnaúm, julgas que serás exaltada até ao céu?”, Mt 11,23), cidade situada também nas margens do lago. Em todos esses lugares, curava os doentes e anunciava, com espanto de todos, o “reino de Deus”. A sua fama espalhou-se rapidamente e as gentes começaram a andar atrás dele, daqui pràli, para o seguir e escutar.

Usava uma linguagem regional mas sugestiva. As suas bocas e ditos breves e diretos, bem como as parábolas, eram inconfundíveis. Quase nunca falava de si. A sua pregação concentrava-se no que ele chamava o “reino de Deus”, como acima se disse já. A sua mensagem entroncava na tradição judaica, mas não o falar: numa linguagem simbólica e poética, nascida na sua experiência de Deus, ele ensinava depois: “Os que choram serão consolados e os mansos possuirão a terra” (Mt 5,4-5); “O Céu é o trono de Deus e a terra o estrado dos seus pés” (Mt 5,35). Mas o reino do céu, o reino, era sempre o tema mais importante. O Reino, o ser misericordioso como Deus-Pai o é (“não devias tu ter piedade do teu irmão como eu a tive de ti?”, Mt 18,33), e o perdão dos inimigos (“perdoa-nos… assim como nós perdoamos a quem nos ofendeu…”, Mt 6,12).

É difícil precisar a historicidade transmitida pelas tradições evangélicas; mas a verdade é que Jesus era também um curandeiro popular que tinha grande aceitação em todo o povo. Essas curas eram entendidas pelos setores mais afundados, pobres e sofredores da sociedade, como sinais da chegada do reino de Deus, embora Jesus tenha sempre resistido a realizar sinais espetaculares: “trouxeram-lhe todos os que sofriam de qualquer mal, os que padeciam doenças e tormentos, os possessos, os epiléticos e os paralíticos” (Mt 4,25).

No entanto, Jesus tinha um comportamento estranho e provocador. Violava constantemente as maneiras normais de conduta naquela sociedade. Não praticava as normas estabelecidas pelas leis e costumes da pureza ritual: nem sempre lavava as mãos antes de comer (Mt 15,20), não jejuava nem cumpria o preceito sabático (Mt 12,12), vivia rodeado de gente indesejável — cobradores de impostos, prostitutas, leprosos e muitos mais — e de mendigos e pobres, de famintos e de marginalizados, comia com pecadores e publicanos, falava em público com mulheres e admitia-as como discípulas… Era o caso de Maria Madalena, que ocupava um lugar importante entre os que se movimentavam à sua volta. Ainda por cima, segundo tudo indica, Jesus tinha uma atitude particularmente acolhedora para com as crianças (Mt 11,25); assumira essa atitude não sem mais mas com nítida intenção de mostrar que o reino de Deus estava aberto a todos, sem excluir quem quer que fosse.

Fora do pequeno grupo de discípulos e do círculo de simpatizantes, Jesus atingiu, portanto, uma enorme notoriedade na Galileia e nas regiões vizinhas. Não diminuía este acolhimento popular quando Jesus passava de um lugar para outro. Juntavam-se-lhe massas de gente, relativamente grandes. Por isso, muitas vezes as autoridades se espantavam diante dele, perguntando-se o que se lhe devia fazer, pois o consideravam perigoso: “seguiram-no grandes multidões, vindas da Galileia, da Decápole, de Jerusalém, da Judeia e de além do Jordão” (Mt 4,25). As autoridades e outros tentavam difamá-lo e desacreditá-lo.

Jesus não foi bem recebido, por exemplo, pelos seus conterrâneos: “ Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria…?” (Mc 6,3).

Não admira, pois, a pergunta de Jesus aos discípulos: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem? … E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,20).

Arlindo de Magalhães, 27 de Agosto de 2017

O pão essencial

Sieger Koder

Pão e água. Fome e sede. Comprar e vender. Viver ou sobreviver. Partilhar ou (ver) morrer. Tivesse eu que enviar uma mensagem telegráfica de comentário ao que acabámos de escutar e seria algo semelhante a isto que ditaria. Uma vez mais, e como “é costume” nos Domingos deste Tempo dito Comum, é “da vida e à vida”, da sua quotidianidade e simplicidade que a Palavra nos “fala” e para onde nos remete. Palavra de palavras bem conhecidas (por muitas vezes as ouvirmos), mas que sempre nos recordam o essencial. Vejamos se sou capaz de tal “tradução”.

Na primeira leitura, Isaías fala-nos de alimento. Em primeiro lugar, daquele que é essencial e básico à nossa subsistência: da água, que sendo das “nascentes” só pode ser da mais pura e cristalina; do vinho, sinónimo de vida e de alegria para os hebreus e de verdade para os latinos (“in vino veritas”), os mesmos que na referida água, por sua vez, viam a saúde (“in aqua sanitas”, é a segunda parte do mesmo adágio); finalmente, do leite, o “super alimento” por excelência, seja o materno ou “do pacote”, líquido ou em pó… Mas depois Isaías refere uma “outra fome” que nem tais alimentos saciam: a de Deus. Porque “nem só de pão”, há uma “outra fome”, que clama por um “outro alimento”: um “alimento espiritual”, constituído pela Palavra (“Ouvi-me (…) escutai e a vossa alma viverá…”) e fortalecido pela fidelidade, que nos é total e gratuitamente oferecido pelo próprio Deus (ao contrário do outro, o corporal, pelo qual temos que pagar, como o nosso trabalho e dinheiro que dele auferimos). Assim, a “Aliança” que Deus quer estabelecer connosco é, antes de tudo, dom gratuito e total de uma vida plena e feliz; em troca, nenhum dinheiro nem qualquer espécie de despesa; apenas duas palavras e uma atitude: dar graças, e fidelidade.

E, no Evangelho, é o mesmo acento tónico, com mais concretas consequências…

Estamos na presença do conhecido trecho da (primeira) “multiplicação dos pães” (a segunda ocorrerá no capítulo seguinte – Mt 15, 29-39 – onde se referem igualmente um grande número de curas, a fome da multidão, os pães – sete – e “alguns peixinhos”), e todo ele é um relato simbólico: no “local deserto e afastado” vislumbra-se a referência ao Êxodo, e, através desta, à fome e à sede experimentadas pelo povo hebreu na sua travessia… Mas igual e paradoxalmente é ao “maná” do céu enviado por Deus para saciar o Seu povo que o texto aponta: outrora foi Moisés, agora é Jesus quem oferece um novo maná, igualmente reconfortante (ao ponto de os “cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” terem comido e ficado saciados) e abundante (pois com as sobras se encheram “doze cestos”, símbolo das 12 tribos, ou seja, todo o povo de Israel a quem este “novo maná” se destina). Jesus é, assim, (pelo menos) tão importante como Moisés… mas certamente mais poderoso que Elias (com quem o haveriam, aliás, de confundir – Mt 16, 14) que alimentou mais de 100 e ainda sobrou (1 Rs 4, 44)… Sentado na relva, qual pastor a guardar as suas ovelhas, ele alimenta aqueles que o seguem, e fá-los saborear do descanso em “prados verdejantes” (Sl 23, 2).

Finalmente, repare-se nos seus gestos, todos eles prefigurativos da Eucaristia: Ele chama os discípulos (para o serviço), Ele toma nas suas mãos os pães, abençoa-os, parte-os e entrega-os aos discípulos (futuros “ministros da comunhão”) para que os repartam pela multidão… Até a referência às “mulheres e crianças” parece ser alusão ao carácter familiar que a Eucaristia deve ter, rompendo assim com as “barreiras sociológicas” que então imperavam…

Mas, ao contrário do que comumente se costuma pensar e dizer, creio que é no início do relato que encontramos o “segredo” deste texto. Reparemos que Jesus, apesar de se ter “afastado para um local deserto” (certamente para chorar, em silêncio, a morte de seu primo João Baptista, de que acabara de ter conhecimento), não manda embora quem vai atrás dele. O seu sofrimento era grande, certamente… mas nem isso lhe toldou o olhar e a sensibilidade diante do sofrimento daqueles que d’Ele se abeiram a pedir socorro, a mendigar a cura das suas enfermidades. Uma vez mais, Jesus mostra-nos que, mesmo quando seria “lícito”, ”normal” exigir(mos) dos outros algum isolamento (em razão do sofrimento que nos atinge), este nunca nos deve permitir que “viremos as costas“ aos nossos próximos: não é no isolamento “do alto dos montes” que a verdadeira paz é alcançada; é no partilhar da dor com/do nosso semelhante que a cura (dele e nossa) acontece…

E é tão forte esta comunhão e tão intenso este “processo de cura” que Jesus nem dá pelo tempo a correr. É por isso que os discípulos O interrompem: “Este local é deserto e a hora avançada. Manda embora toda esta gente …” Ou seja: “já é tarde… não temos que comer nem nada para alimentar esta gente toda… é melhor mandá-los embora… e que cada um se arranje…”. Jesus dá-se conta, uma vez mais, de que nem eles perceberam ainda o que tantas vezes lhes tinha já ensinado… por isso responde com dureza: “Dai-lhes vós de comer!” Diante deste “comprar” (em que ecoa também o texto da primeira leitura), Jesus impõe que se “dê de comer”, pois isso sim é o fundamental: não é o dinheiro com que se compram coisas, mas sim a capacidade, a inteligência, a disponibilidade para tudo fazer de modo a que todos tenham direito ao seu “pão de cada dia” o mais importante. À tentativa da “saída limpa” dos discípulos (“cada um que se arranje”) Jesus responde com a exigência da responsabilização individual: “dai-lhes vós de comer”. Porque aonde poderá ir quem anda “cego de fome”? Como poderá encontrar o caminho certo aquele a quem a fome e a sede turvam o olhar e o entendimento? Já diz o povo: “Casa onde não há pão…”

Mas os discípulos, embora anuindo, continuam céticos: só dispõem de cinco pães e dois peixes. Parece-lhes muito pouco… mas para Jesus é suficiente. As “parcelas” do seu “cálculo” são diferentes: contam sempre com a “Graça”, a graça que brota da partilha, fraterna e desinteressada. Porque quando todos partilham do (pouco) que têm, a fome de todos é saciada. Por aqui – melhor o percebemos agora – passa uma das “lições” essenciais do texto: só uma sociedade humana profundamente “eucarística”, em que todos sejam capazes e estejam disponíveis para partilhar do seu pão com os famintos, tornará possíveis as estruturas, os agentes e as ações necessárias à justa e equilibrada repartição de recursos suficientes para todos. É isto que nos ensinam os povos das margens do rio Nagara (Japão), os andinos de Cusco e Puno (Peru), os pastores Masai do Quénia e da Tanzânia, que juntos caçam ou pescam, juntos trabalham, tudo partilham: do que sabem e podem, e do que a Natureza lhes dá e que eles sumamente respeitam; e, certamente por isso, nas suas comunidades ninguém morre à fome.

Não nos equivoquemos: se vivermos “nos altos dos montes” dos nossos desejos e preocupações, de costas voltadas para os que vivem “cá/lá em baixo” no “vale… de lágrimas” da existência, perderemos a nossa identidade cristã; não seremos fiéis a Jesus; a Eucaristia que (semanal ou diariamente) celebrarmos pouco ou nada valerá, pois será inócua, porque insensível ao “sacrifício do mundo” que, quotidianamente, tais vidas entregam no Altar onde vimos (ou deveríamos vir, precisamente) partilhar o pão e o vinho e, neles e através deles, a Vida…

Por isso, o “grande milagre”, hoje como naquele tempo, não será tanto o da “multiplicação”… mas sim o da “conversão”. Falo do milagre da conversão da nossa sensibilidade, que se quer (mais) atenta, (mais) ativa e (mais) proactiva, responsável e responsabilizante, que nos faça disponíveis para a compaixão diante do sofrimento alheio, principalmente daqueles a quem falta o mais básico/elementar: o “pão de cada dia” e a “dignidade inerente a todos os membros da família humana (…) fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (in “Preâmbulo” da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948). “Milagre”, porque grande (enorme!) sim, mas feito de “coisas pequenas”: pequenas e singelas iniciativas, totalmente ao alcance das nossas capacidades e competências, para as quais não precisamos (porque não devemos) “ficar à espera de alguém… lá de cima”. Iniciativas concretas, modestas, parciais, certamente… mas gotas de um oceano que só pelas mãos de todos poderá ser vazado…

Foi (e é) desta “conversão” à “fraternidade (d)e proximidade” que a Igreja se fez (e faz) universal. Foi na partilha (do pão e do vinho, dos gozos e das dores, no e do Caminho) que a Europa se fez nova… E há de ser, necessariamente, na mesma partilha (distribuição e retribuição) justa e solidária que a velha Europa se há-de refazer.

Porque o dinheiro, esse, “já está todo feito” (apenas mal repartido, dizem os Economistas). E o pão, esse, há quanto “chegue e sobre” (a Terra assim no-lo diz, e assim o demonstram os relatórios da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). O que falta então? “Mais flores! Mais flores!”, dizia o poeta… e com razão: que desabrochem novamente as flores da Esperança e da Partilha, da Fé alegre e do Amor operativo, esse tal de que nos fala S. Paulo: o total, o invencível, o pleno, de que nada, “nem a morte nem a vida” nos poderá separar…

É (também) disto que é preciso voltar a “avisar toda a gente”

Luís Leal, 6 de Agosto de 2017

Reagir ao desalento

Reserva das dunas de S. Jacinto

Se fosse necessário resumir numa palavra a mensagem que o Papa Francisco quer transmitir perante os graves problemas de Humanidade, recorreríamos à palavra Esperança. Há futuro porque “o Futuro a Deus pertence”: empenhar-se na consecução de um mundo justo tem sentido, não é uma tarefa inútil. Não vamos sós porque o Senhor que “faz novas todas as coisas” (Apo 21,5) abre-nos o caminho.

O Papa publicou já três documentos que levam no seu título uma mão cheia de esperança: “A alegria do Evangelho” (2013), “Louvado sejas, Senhor” (2015) e “A alegria do Amor” (2016). Cada um deles é um cântico, um poema a agradecer a beleza da vida e o nascer de uma manhã luminosa. Exatamente!, uma mensagem de esperança aos migrantes e refugiados de Lampedusa ou de Lesbos, às vítimas da máfia calabesa em Cassano, aos movimentos populares de Roma ou de Santa Cruz, na Bolívia, às crianças das ruas de Manila, aos desempregados de qualquer país europeu, aos excluídos de Kangemi em Nairobi, … sabe-se lá que mais.

Os problemas do meio ambiente de que temos falado e a sua intrincada relação com a exclusão dos seres humanos podem desalentar-nos. São problemas muito complexos e de dimensões colossais. Sabemos que muitos deles vão ainda perdurar pois que, uma vez postos em marcha, talvez possamos ainda travá-los, mas não detê-los. O alcance destes problemas é global e a nossa contribuição individual será sempre pequena e quase impercetível.

É, portanto, necessário reagir ao desalento. “Há sempre uma saída… poderemos sempre fazer alguma coisa para resolver os problemas” (LS 61). Esta é a nossa experiência, em tantas circunstâncias da vida escondidas na obscuridade. De repente, abre-se a luz e descobre-se uma nova vida.

Aqui e ali começam a aparecer chispas do Reino no meio da escuridão do quotidiano: aqui, Comunidades há que reduzem o seu consumo; ali, cidades e países que reciclam; além, fora com o plástico; escolas em que as crianças aprendem desde pequeninas a valorizar e cuidar do meio ambiente; mercados de produtos de “segunda mão”; reservas naturais com atividades humanas limitadas; tratamento de águas residuais; legislações que protegem o meio ambiente, impedindo a contaminação ou sobre-exploração dos recursos naturais; políticas fiscais que redistribuem a riqueza, combatem a desigualdade e protegem os mais pobres; ordenamentos jurídicos que penalizam o desrespeito pelos direitos humanos; economias ao serviço do bem comum; tecnologias limpas e energias alternativas sem emissões de carbono; e uma melodia suave, quase impercetível ainda, mas que já se ouve, a cantar a necessidade de modos de vida sustentáveis e inclusivos que nos farão mais humanos…

Realmente, o Reino já está a caminho. A toalha no cimo do monte (Is 25,6) começa a estender-se. E, lá, “muitos virão sentar-se à mesa” (Lc 13,29).

Em julho de 2014, faz agora 3 anos, em Caserta, pediram a Francisco: “Papa, dê-nos esperança!”. E ele respondeu: “Esperança não posso dá-la. Mas posso dizer-vos que, onde Jesus estiver, estará esperança. Onde estiver Jesus, os irmãos amam-se, comprometem-se a salvaguardar a sua vida e a sua saúde, e respeitam até o meio ambiente e a natureza”.

“Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança”, diz o Papa Francisco no final da Louvado Sejas!

Entretanto, uma pergunta: Precisamos mesmo de usar palhinhas de plástico? Só nos Estados Unidos, todos os dias são usadas perto de 500 milhões de palhinhas de plástico. E isto é uma estimativa.
 Não são recicladas e acabam em aterros sanitários, nas ruas e na água. Há alternativa? Sim. Uma delas é não as usar (Público de 2017.07.03)

Arlindo de Magalhães, 16 de Julho de 2017

É preciso nascer de novo

Foz d’Egua, Piodão

É preciso nascer de novo! “Não haverá uma nova relação com a natureza sem um homem novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (LS 118).

O planeta, as culturas, os povos e cada um de nós necessitamos de transformações profundas. Todos somos parte uns dos outros. Todos perfazemos um todo em que nada do que sucede a um dos membros é indiferente ao conjunto.

E é aqui que começa o diálogo: da natureza com o homem, do planeta com a vida, da humanidade com a natureza, das culturas entre si…

E é aqui que entra o diálogo como forma de encontro. Diálogo entendido não como negócio de interesses, mas como procura do bem comum para todos. “Dialogar não é negociar. Negociar é tentar levar a maior fatia do bolo comum. Mas não é isso que eu quero dizer. Dialogar é procurar o bem comum dividido por todos” (Papa Francisco, 2015, Discurso no 5º Congresso da Igreja italiana).

A própria encíclica Louvado sejas foi publicada em maio de 2015, meio ano antes da realização da C(onferência) das O(nu) em P(aris), em dezembro de 2015, oferecendo assim a sua reflexão pessoal e da Igreja Católica.

Francisco diz que a política honesta busca sem descanso o bem comum, o que é uma das formas mais altas do exercício. “O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade competem ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos” (EG 240).

E a política também se degrada quando se abdica em favor da economia, encarregada de defender o bem privado. A economia tem de estar ao serviço da política e não o contrário, a política da economia: “A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (LS 189). A política e a economia podem e devem colaborar para que os bens que pertencem ao conjunto da humanidade cheguem a todos os seus membros.

Se todo o documento — Louvado Sejas — tem o diálogo como uma espécie de pano de fundo, destaca-se em alguns campos.

Primeiro, no âmbito internacional: o meio ambiente é um bem comum que ultrapassa as fronteiras. Veja-se a questão de Almaraz, ao lado do Tejo e a dois passos da fronteira portuguesa. A contaminação pode acontecer num país mas estendendo-se, no entanto, os seus efeitos fora de fronteiras.

Em segundo lugar, diálogo no interior de um país. Aqui contamos com muitas mais ferramentas para um debate público. É a nível local que, muitas vezes, se pode gerar uma diferença na vida das pessoas.

Em terceiro, destaca-se o diálogo entre as religiões na defesa do meio ambiente e dos mais pobres: “A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a dialogarem entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade” (LS 201).

Finalmente, “é indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber. Isto impede de enfrentar adequadamente os problemas do meio ambiente”. Torna-se necessário também um diálogo aberto e respeitador dos diferentes movimentos ecologistas, entre os quais não faltam as lutas ideológicas” (LS. 201)

«A gravidade da crise ecológica obriga-nos, a todos, a pensar no bem comum e a prosseguir pelo caminho do diálogo, que requer paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que “a realidade é superior à ideia”» (LS 201).

Claro que não podemos ser ingénuos. Sabemos que o diálogo não é fácil, mas também não é decisivo. Mas é, no entanto, o único meio de que dispomos para, juntos, abordarmos estas questões. Não há outro caminho. A crise sócio-ambiental que enfrentamos exige «paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que “a realidade é superior à ideia”» (LS 201).

O diálogo, acompanhado de respeito e mesmo amizade, é o caminho.

Arlindo de Magalhães, 9 de Julho de 2017

Uma nova humanidade

Estou a chegar ao fim destas breves mas fundamentais reflexões sobre a Ecologia (a oikos + logos, em grego >  sobre o tratado da “nossa casa” que é o planeta). Estou a chegar ao fim, mas tenham paciência que o fim ainda não é hoje.

Li e reli, refleti sobre o texto do Papa Francisco. E tenho de concordar com muitos. O Papa Francisco vê ao longe uma humanidade nova: “Não haverá uma nova relação com a natureza sem um homem novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (LS 118). A antropologia (ántropos + logos) é a ciência do que é o homem. Só um homem verdadeiro é capaz de cooperar na consecução de uma ecologia a sério.

“Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (LS 118). O desafio requer da nossa parte ”um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade”, tudo novo (LS 111). É preciso “nascer de novo”, como Jesus disse a Nicodemos (Jo 3,4). Uma nova cultura, um novo homem, outra sensibilidade, novos estilos de vida, simplicidade de vida — “a sobriedade vivida livre e conscientemente é libertadora” (LS 223).

“É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração” (LS 223).

“É necessária uma revolução cultural” (LS 114) que nos explique o que deve ser o desenvolvimento: “Para que apareçam novos modelos de progresso, precisamos de converter o modelo de desenvolvimento global, e isto implica refletir responsavelmente sobre o sentido da economia e dos seus objetivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações. Não é suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso” (LS 194).

No início do século XX, houve um grande enfrentamento: “Politique d’abord” (primeiro a Política), depois a Moral e o Direito. Foram necessárias  duas guerras mundiais mas nem isso resolveu a questão. Agora, a luta é outra: agora é a política que tem de se sujeitar à economia. A política está agora a pagar o que ontem negava. Hoje, a economia não tem outro objetivo que não seja o do seu próprio benefício, gerando assim mais pobres e mais pobreza. É hoje necessário gritar e dizer que “não a essa economia da exclusão e da desigualdade social. E essa economia mata” (EG 53).

O Papa está consciente da limitação dos recursos da Terra e da vulnerabilidade dos pobres. Não se trata de que os pobres copiem os ricos. Mas “chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes” (LS 193).

Claro que na boca de muita gente e em muitos lados, a crítica não se fez esperar. Está maluco, o Papa! Como se pode repartir pelos pobres a riqueza dos ricos? Está maluco! … mas malucos estão os ricos e poderosos. Diziam-nos os mais pequeninos, há 15 dias, que a pobre viúva é que tinha razão, não os homens de muitas moedas!

Para aumentar o seu Património, podem os ricos querer esmagar os pobres?

Efetivamente precisamos de uma revolução cultural, de uma redefinição global das nossas sociedades e dos nós próprios!

É preciso nascer de novo! Seremos capazes?

Arlindo de Magalhães, 25 de Junho de 2017

Ecologia integral

Santa Maria, Açores (foto de Manuel Ferreira)

“Não haverá vida para os pobres num ambiente degradado; e não protegeremos o ambiente se nos esquecermos dos excluídos”. Assim acabei a homilia anterior. Esta dupla problemática — os pobres e um ambiente degradado — é um tremendo desafio. Não basta boa vontade para lhe respondermos.

Por isso, o Papa Francisco propõe um conceito novo: ecologia integral, isto é, o cuidado de tudo o que é vida, na multiplicidade das suas formas. A ecologia integral não consiste só e unicamente na defesa da natureza mas na proteção de tudo o que é vida, incluindo a humana, sobretudo onde se encontra em perigo.

A palavra ecologia (oikos + logos > tratado da casa) até há pouco tempo referia-se apenas à vida da natureza: que era necessário proteger os espaços naturais, lugares de beleza e harmonia, defender as espécies animais e vegetais, respeitar a água… Entendida desta maneira o que seja a ecologia, temos de dizer que já há muitos anos há muitas organizações a trabalhar na defesa do ambiente.

Entretanto, a seu tempo, João Paulo II falou já numa “ecologia humana”: “Além da destruição do ambiente natural, é de recordar outra ainda mais grave, a do ambiente humano, a que estamos ainda longe de prestar uma necessária atenção” (Centesimus annus 38).

Francisco dá agora um passo em frente: “Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos” (LS 91).

Portanto, a ecologia integral acrescenta à ecologia da natureza uma sólida preocupação pela vida humana, pelo bem comum, que exige respeito pelos direitos inalienáveis de cada ser humano e pelo tecido social (pessoas e instituições que garantem o ordenamento social e político). O bem comum está, portanto, acima de legítimos interesses particulares quando estes atentam contra os direitos dos outros seres humanos.

O bem comum apela à solidariedade e reclama a opção preferencial pelos mais pobres: “Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas postas de lado, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres” (LS 158).

Esta ecologia integral não pode esquecer a justiça entre gerações: temos a obrigação de deixar aos que viverão depois de nós um planeta em que eles possam viver e desenvolver-se como seres humanos em plenitude. Os nossos direitos não estão por cima dos deles.

Estendeu ainda mais o conceito de ecologia integral o Papa Francisco, lembrando a proteção das culturas num tempo em que assistimos a uma globalização cultural que está a pôr em risco numerosas, ricas e diferentes culturas humanas. Uma autêntica ecologia tem de respeitar estas formas culturais que carregam uma sabedoria e uma riqueza que remontam a sociedades anteriores à nossa, em que havia um conhecimento profundo do significado do ser humano.

Uma ecologia integral aponta também uma “vida boa”, isto é, digna de ser vivida e profundamente humana. Para isso, nós temos que conviver em harmonia com os mais seres humanos e com as demais realidades, ajudando-as a crescer.

O Pai, criador da vida, convida-nos a gozá-la — a “vida boa” — e a celebrá-la, a descobri-la, a admirá-la, a cultivá-la e a respeitá-la, tornando-se cada um de nós mais humano no processo. Esta é, sim, uma ecologia integral.

Arlindo de Magalhães, 4 de Junho de 2017

A água

Batistério de Mértola

Meus irmãos:

Na Liturgia cristã, o que é primeiro ou mais: o pão ou a água?

Claro que é a água: o pão alimenta, mas sem água não há vida.

Não há vida, dizem-no a ciência e os cientistas, mas não só. Francisco põe um exemplo:

“A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. …. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes setores da população não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez“.

Tão importante é a água que, mesmo no sacramento, antes do pão com os Apóstolos, a água com a samaritana.

A Escritura está cheia de água: ela “jorrará até no deserto” (Is 35,6); “Vinde beber desta água, … vós mesmos que não tendes dinheiro [para a comprar]” (55,1).

“Vós, batizados, — agora é Paulo que fala — morrestes ou morreis como Cristo. Ele morreu e foi enterrado na terra; vós sois enterrados como ele, mas na água; ressuscitareis depois da água tal como ele ressuscitou do sepulcro” (Rm 6,4).

Representar isto? No cristianismo primitivo, havia uma piscina (batismal): o batizando entrava na água dum lado e morria nela; mas saía do outro lado, ressuscitado homem novo. É só ir a Monforte (Palma), a Idanha ou a Mértola…, ou mesmo a Conímbriga (este batistério já não é bem, bem assim)…

S. Pedro dizia isto doutra maneira, não da mesma, claro: “O Pai do Senhor Jesus Cristo gerou-nos de novo para uma esperança viva! Aconteceu o mesmo que com a ressurreição de Jesus” (1 Pe 1, 3-6).

Vamos então ao sinal da água. O do pão virá depois, a seu tempo.

Arlindo de Magalhães, 21 de Maio de 2017