Liturgicamente falando, faz hoje um ano que me saiu aqui uma catilinária sobre o que fizemos ou deixámos fazer ao Natal. Nem todos saberão o que é uma catilinária. Catilinária vem de Catilina — Lúcio Sérgio Catilina —, era este o nome de um militar e senador da antiga Roma (108-62 aC), célebre por ter tentado derrubar o Senado da República e com ele a República romana. Homem de crimes e vícios, já condenado à morte, morreria entretanto num encontro militar com as legiões do Poder. Pelo meio, muitas lutas, e uma delas com um célebre escritor e político também romano, Cícero (106-43 aC), que, em pleno Senado, perguntou diretamente a Catilina, numa também célebre intervenção acusadora e veemente, áspera e violenta: “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” (Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?). Desde então, a um sermão ou intervenção pública e direta, acusatória, dá-se o nome de catilinária.
Há um ano, dizia, saiu-me aqui uma catilinária. Disse assim, falando do Natal: Na antiga prática da Igreja, «jejum todo o dia 24, Eucaristia à meia noite, porque ele nasceu de noite, é o que Lucas diz, e quando da Missa do Galo se regressava a casa, então, sim, começava a festa: comezaina, pois claro, não havia festa sem muito e sem doce, tal como se faz aqui na Vigília Pascal. E a Ceia como que se prolongava por todo o dia 25, o almoço… Claro que isto faziam-no as famílias. Mas o Natal não era a festa “da família”: era a festa “do nascimento de Jesus”.
No entanto, com o tempo, no domingo a seguir ao Natal, e ainda na aura do mesmo, começou a fazer-se a festa da família, como manda ainda a Liturgia: «Senhor, que na Sagrada Família nos deste um modelo de vida, concede que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na tua casa…», diz a oração do rito de entrada do Missal romano. Mas repare-se bem: de início, fazia-se jejum a pensar nos pobres.
Mas o mercado não esteve com coisas: não descansou enquanto não misturou a festa cristã da família com a do Natal (faria o mesmo com a festa da Mãe, que passou para maio porque em 8 de dezembro estragava o comércio do Natal!!!). E todos achámos muito bem! Repare-se: o que se jejuava em favor dos pobres transformou-se em prendinhas de Natal, não dadas aos pobres, mas… em família à família, em dia que liturgicamente não era o da família, mas o comércio conseguiu que passasse a ser! Não foi no nosso tempo que isto começou. Mas só acabou de vez quando os americanos inventaram o S. Nicolau — Papai Noel — a distribuir Coca-Cola!
Mesmo assim, quando começou isto das prendas, ainda com alguns laivos de mistério, sobretudo dos mais pequenos, só depois da Missa do Galo é que o Menino Jesus vinha pôr a prenda no sapatinho, de madrugada! Pois era! Mas agora, “num é”! Agora, dá um trabalhão imenso escolher as prendas, comprar as prendas, embrulhar as prendas… Quem fez isto, quem foi? Quem manda em nós, que fazemos tudo o que eles querem? E depois queixámo-nos.
Se bem que me possam continuar a dizer “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, a presença da luz no nascimento de Jesus é possivelmente a ideia mais glosada em toda a liturgia do Natal. O facto de se pensar que ocorria a 25 de dezembro o solstício do Inverno (o dia do início do Inverno) — dia em que efetivamente as jornadas começam a crescer, dia celebrado já pelos romanos como um triunfo da luz sobre as trevas — fez com que os cristãos começassem a celebrar nesse dia o Sol que nasceu do alto, o Cristo que desceu à nossa terra, “Luz que brilha nas trevas”, ou, como cantamos, “Hoje uma grande Luz desceu sobre a Terra, Vinde e adorai o Senhor!”.
O ambiente da celebração da meia-noite é propício para a evocação deste mistério. No coração da noite, a comunidade cristã reúne-se num espaço de luz, que é símbolo da fé. E a Luz é Cristo, Palavra e Eucaristia, um facho de esplendor que irradia os seus raios a iluminar todos os que creem e celebram o seu santo nascimento. E é neste ambiente que se revela todo o sentido da profecia de Isaías: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; ele habitava uma região de sombras, mas apareceu uma luz fulgurante” (9,2). O texto de Isaías e o de Lucas: “naquela região, havia uns pastores que passavam a noite ao ar livre a guardar os seus rebanhos… A glória do Senhor envolveu-os de claridade!” (Lc 2,8-9).
Por isso, Santo Agostinho dizia no séc. V: “Desperta, ó homem, que por ti Deus se fez homem. Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará”. E Santo Anselmo, no séc. XI: “Olha, Senhor, para nós; ouve-nos, ilumina-nos, manifesta-te a nós. Vem morar connosco e seremos felizes; sem ti, passamos muito mal”. Porquê? explicava João naquela entrada fulgurante do seu Evangelho: “Nele é que estava a Vida. E a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam” (Jo 1,4-5). Continuarei a dizer que o Natal está paganizado. Porque está. Mas a todos, irmãos, de perto e de longe, estejam ou se ausentem, boas festas de Natal!
Arlindo de Magalhães, 20 de Dezembro de 2015