Não é fácil ler em moderno a parábola do homem rico e do pobre Lázaro: “ignorar estas realidades seria tornarmo-nos como o rico que fingia não conhecer o pobre Lázaro que jazia junto do seu portão” (Solicitude da Questão Social, 42).
São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da migração intercontinental, da educação, do aumento da criminalidade, da rutura dos laços familiares, da emergência da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem ações concertadas a nível mundial.
Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que se mostra incapaz de defender tanto os interesses da maioria dos cidadãos como os dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.
Nós, os cristãos, temos alguma coisa a ver com isto, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nem nos documentos, mesmo que se trate de encíclicas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?
É por isso que há uma grande relação entre conversão individual e mudança de estruturas: “A originalidade da mensagem cristã não consiste diretamente em afirmar a necessidade da mudança de estruturas mas na insistência na conversão do homem que exige essa mudança. Não teremos um continente novo sem novas e renovadas estruturas; mas, sobretudo, não haverá um continente novo sem homens novos que à luz do Evangelho saibam ser livres e responsáveis” (assim diziam já os Bispos latino-americanos, reunidos na sua 2ª Conferência, em Medellín).
Um dia, no longínquo ano de 1511, Frei António de Montesinos (1475?-1540), dominicano espanhol que apostolou pela América Central, na ilha La Española (hoje República Dominicana) surpreendeu com este sermão: “Estais todos em pecado mortal, nele viveis e morreis, pela crueldade com que tratais estas gentes inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça sujeitais estes índios a tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade empreendeis horrorosas guerras contra estas gentes mansas e pacíficas que ocupavam as suas terras cujos recursos destruís, com chacinas e depredações? Como as mantendes presas e esgotadas, sem lhes dardes de comer nem cuidardes das doenças que lhes advêm dos excessivos trabalhos com que as sobrecarregais e das quais lhes resulta a morte, ou antes, dos trabalhos com que as matais na mira de apanhar sempre mais e mais ouro? Que cuidado pondes em que sejam evangelizadas e conheçam a Deus, seu criador, sejam batizadas, ouçam missa, guardem as festas e os domingos? Não se trata de homens? Não têm eles alma racional? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?”.
Frei Bartolomeu de Las Casas estava lá e ouviu o sermão. Mais tarde, convertido já e dado à causa da defesa dos índios, contava assim na sua História das Índias Ocidentais: “Deixou-os, uns atónitos e sem pinta de sangue, outros ainda mais empedernidos, e alguns outros algum tanto compungidos; mas, ao que vi depois, nenhum se converteu”.
Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida é que, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar, estas estruturas de pecado.