Na primeira metade do século XI, um pobre filho dum pobre sapateiro francês, de nome Jacques Pantaléon, era o arcediago (arkô, o primeiro + dos diáconos) de Liège. Foi depois Bispo de Verdun e Papa com o nome de Urbano IV (1261-1264). Estava ele ainda em Liège e, num Sínodo diocesano ali realizado em 1246, criou-se uma festa litúrgica para se celebrar apenas e só a Eucaristia, a festa do Corpo de Deus, pois nela — na Eucaristia — está o “Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, tão real e perfeitamente como está no céu”. É verdade que havia já a Liturgia de 5ª Feira Maior…, mas isso era uma confusão pois se misturava a Eucaristia com o lava-pés, com a entrega do Mandamento Novo, nada como uma festa especial…, só da Eucaristia. E assim foi: no ano seguinte, 1247, já houve festa.
Era já Papa o antigo Arcediago de Liège, e um monge e duas religiosas, tudo agostinhos, lembram-se de lhe pedir que se estendesse por toda a Igreja essa celebração nascida em Liège. E o Papa disse que sim, claro! Era vivo ainda o conhecido São Tomás de Aquino (1225-1274), um dos mais importantes teólogos cristãos de todos os tempos, e pediu-se-lhe que escrevesse textos belos para a festa — porque é que não se faz isto hoje, textos belos para a Liturgia?! — e, entre outras poesias, ele escreveria o célebre Tantum ergo Sacramentum! (Um tão grande sacramento!).
Em pleno séc. XIII, Idade Média quase a terminar, já ninguém se lembrava de um decreto do imperador Constantino, datado do ano 321, proclamando que o até então 1º dia da semana, o dia do sol (o 2º seria o da lua: lunes > lundi > lúnedi, etc) passaria a ser o dia do descanso semanal, o dia do Senhor. Já ninguém se lembrava disso e, portanto, no die dominicæ ressurrectionis Domini, o dia da Ressurreição do Senhor, já quase se não cumpria a recomendação do Senhor “fazei isto em memória de mim”. Ninguém se lembrava, sobretudo os que pertenciam ao mundo agrícola e necessitavam de acudir aos animais e mesmo ao regadio dos campos.
Em 1264, o Papa Urbano decretou a solenidade anual do Corpus Christi que rapidamente se espalhou pela Europa, aqui e ali com uma soleníssima procissão, em algumas cidades ou vilas sobretudo. Em Portugal, pode referir-se Melgaço e Amarante, Porto e Lisboa, etc. Histórias de grande tamanho. Aqui ao lado, na vizinha Espanha, em Toledo, é um espanto a procissão do Corpo de Deus. Ao pálio pegava sempre o Primeiro Ministro, ateu que fosse. Um dia, julgo que no tempo do PSOE no governo, o Primeiro-ministro decretou: acaba-se com o feriado do Corpo de Deus! Muito bem!, responde o Cardeal, a procissão passa para o Domingo seguinte. A seu tempo, apresenta-se o Primeiro-ministro. Não, não pega no pálio! Grave problema Igreja – Estado!
A procissão do Porto era de arromba:
«Eu El Rey [D. Manuel I] faço saber aos que este alvará virem que os oficiais da Câmara da Cidade do Porto que nela serviram os anos passados, me envyaram dizer por sua carta que por alguns inconvenientes lhes pareceo que convinha ao serviço de Nosso senhor e meu tratar de por em melhor ordem a procissão de corpus Christi da dita cidade por nela irem alguns jogos E danças não decentes ao tempo por a muita antiguidade com que se ordenaram…».
Estes poucos apontamentos bastam para percebermos que a festa do Corpo de Deus, nos seus princípios e nos seus fins, realização religiosa que é, teve sempre intromissões do mundo político e laico: falei aqui no imperador Constantino, na des-evangelização da cristandade medieval, no empobrecimento da Liturgia eucarística em que as pessoas apenas assistiam à Missa e pagavam, que nem a Palavra lha davam pois era em latim de cabo a rabo, do domingo que se sabatizou, do “primeiro dia da semana”, que chatice!, ele podia ter ressuscitado num Sábado!, agora dava mais jeito!, em 1910, a República varreu a maior parte dos feriados religiosos e o Corpo de Deus lá foi até 1952, repescado pelo Estado Novo. Dizem que a História não se repete, mas nem sempre: há dias deitaram fora o Corpo de Deus, mas ele cá está outra vez! Não por razão religiosa!
Somos uma bola de bilhar: íamos pràli, mas vem outro e manda-nos pràcolá…, isto para lá do encontrão que recebemos. Cartão vermelho!
Arlindo de Magalhães, 26 de Maio de 2016