Lucas apontou nos Atos dos Apóstolos as quatro coordenadas essenciais que definem a comunidade. São elas, a didakê (ensino dos Apóstolos), a koinonía (a comunhão ou união fraterna), a fração do pão (Eucaristia) e a oração (2, 42). Quando, porém no séc. IV, S. Jerónimo traduziu a Bíblia para latim (Vulgata), reduziu estas quatro coordenadas a três: o ensino dos Apóstolos, a comunhão da fração do pão e a oração. Consagrava-se assim na letra uma das maiores confusões da teologia acontecidas na história.
Desde o princípio, diz o Novo Testamento insistentemente, que a Igreja se reunia, na comunhão da fé, à volta da Mesa do pão e vinho que se comia, aquele, e bebia, este, tal como Jesus fizera na véspera da sua Paixão, em memória da sua Morte e Ressurreição: fazei isto em memória de mim, disse Jesus. Esse pão partia-se à frente de todos e entre todos (à própria celebração se chamava mesmo a Fração do Pão) para poder ser distribuído por todos (como se fazia ao vinho aliás), em sinal de comunhão. Exatamente como acontece quando eu vou comer à tua casa, em sinal de amizade e de partilha, isto é, de comunhão; se acontece que a nossa comunhão diminui, seja pelo que for, eu deixo de ir e/ou tu de me convidar. Em sinal de comunhão na fé, na memória da morte e ressurreição de Jesus, e como expressão da fraternidade que somos e vivemos, comemos esse pouco de pão, expressão visível da nossa comunhão fraterna e da nossa união por Cristo, com Cristo e em Cristo.
Quem come este pão e bebe este vinho é o corpus vere (o verdadeiro corpo de Cristo), ou seja, o corpo real da Igreja na qual Jesus está realmente presente (sempre que dois ou três se reunirem em meu nome eu estarei no meio deles, Mt 18,20; vós é que sois o corpo de Cristo, dizia Paulo aos Coríntios, 1 Cor 12,27; fomos todos batizados para formar um só corpo, 1 Cor 12.13). A koininía (comunhão) dos que somos membros do Corpo de Cristo exprime-se no facto de comermos todos o corpus mysticum (corpo místico de Cristo), o sacramento ou sinal que é o pão e o vinho da Eucaristia.
Uma coisa é, portanto, o verdadeiro corpo de Cristo (a Igreja, a assembleia dos que estão em comunhão), e outra o corpo místico, o sinal sacramental da comunhão desse corpo de Cristo.
Ou seja, o pão da Eucaristia é o sacramento da presença real de Cristo.
Com os maus velhos tempos, porém, trocaram-se as coisas: passou a chamar-se “a comunhão” ao pão da Eucaristia que era (e é) apenas o sinal da comunhão eclesial ou fraterna (por isso comiam em conjunto), mesmo que os que comiam esse pão andassem à batatada uns com os outros. E vieram depois palavras raríssimas – trans-substanciação, trans-significação e outras mais – a tentar explicar o inexplicável.
Quando não há comunhão no corpo real (corpus vere) de Jesus que é a Igreja, isto é, se há fraturas mortais no corpo de Cristo, que ninguém ouse comer desse pão ou beber desse cálice, porque o faz indignamente; “que cada um se examine, portanto, porque comendo e bebendo sem perceber que se trata do sinal da comunhão do corpo de Cristo, come e bebe a sua própria condenação” (1 Cor 11,27-29).
Estamos todos a ver porque é que a Ceia do Senhor, a Fração do Pão, a Eucaristia, a expressão da comunhão do corpus vere através do corpus mysticum, foi sempre uma coisa tão importante para os cristãos.
Por isso, teimosamente a celebramos, todas as semanas no mínimo, orando assim: primeiro, “Nós vos damos graças porque nos admitistes à vossa presença para vos servir nestes santos mistérios”, isto é, porque sendo um só corpo, participamos do Corpo e Sangue de Cristo; segundo, “humildemente vos suplicamos que, porque participamos do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos um só corpo (e isso nós to pedimos, Senhor).
Resumindo: dando graças por sermos o verdadeiro Corpo de Cristo – o que significamos comendo e bebendo do mesmo pão e do mesmo vinho colocados sobre a mesa, à volta da qual, como irmãos, nos reunimos -, mas ao mesmo tempo, participando desse sinal sacramental, pedimos que sejamos, continuemos a ser, esse corpo.
Nós, os cristãos, nunca nos sentamos em cima de nada, nunca temos certezas definitivas, se somos o que somos, sabemos que podemos deixar de o ser. Damos, portanto, graças por ser o que somos, mas ao mesmo tempo pedimos que continuemos a sê-lo. Damos-te graças, Senhor, e pedimos-te, Senhor. É alimento que se toma ao chegar a casa, cansado, em fim de dia; mas é-o também para dar forças para a jornada que prossegue, que somos um povo a caminho.
Por tudo isto é que o Vaticano II disse que a Eucaristia é ponto de chegada e ponto de partida, fonte e cume da vida da Igreja e o centro da assembleia dos batizados (PO 5).
Arlindo de Magalhães, 31 de maio de 2018