Corrupção

Vasily Kandinsky

Uma coisa, uma realidade, seja ela qual for, corrompe-se quando perde a sua natureza e se transforma em algo de diferente; quando isto acontece com um ser vivo, o que dele resta começa a cheirar mal. Da mesma maneira, uma sociedade ou uma pessoa estão corrompidas quando perdem a sua identidade. Também nestes casos, se percebe o seu mau cheiro.

Na vida da gente, há actividades sociais que se destinam a conseguir os bens internos que com elas se alcançam. A política, por exemplo, persegue o bem comum; a actividade empresarial, a satisfação das necessidades humanas; o jornalismo, a informação dos cidadãos e o enriquecimento da opinião pública; a educação, a transmissão de conhecimentos e valores que tornem as pessoas mais maduras; etc. O trabalho em geral, de resto, responde a necessidades pessoais e sociais, responde à criatividade de cada um e visa a obtenção de meios de vida. Estes bens são os que dão sentido às diversas actividades e lhes concedem legitimidade social.

Entretanto, estas actividades podem proporcionar também outro tipo de bens, que diria externos, pois que não sendo o que lhes dá nem sentido nem legitimidade social, têm também importância. Bens externos são, por exemplo, o lucro, a fama ou o poder que se podem conseguir pela dedicação à política, à arte, à medicina, à vida empresarial, ao desporto ou à investigação, ao próprio trabalho.

A verdadeira corrupção consiste em trocar os bens externos pelos internos, ou seja, consiste em alguém dedicar-se a uma actividade ignorando por completo os bens internos que ela proporciona, fixando-se unicamente nos bens externos que ela consegue. Nesse caso tudo se igualiza: o político, o empresário, o médico ou o jogador de futebol, todos eles o que querem é dinheiro ou fama e poder, e mais nada.

Quando uma sociedade troca os bens internos pelos externos, é a própria opinião pública que considera “gente de sucesso” aquele que alcançou mais dinheiro, mais fama ou mais poder, não importando à custa de quê. Hoje em dia, a maior parte dos meus contemporâneos quereria ser tão rica como não sei quem, e mais nada. “Qual é o doente que acreditaria na ciência de um médico que, para além de não ter fama, não tivesse móveis em casa?”, já no séc. XIX perguntava Balzac.

Chega-se ao ponto de considerar louco alguém que se dedica a uma actividade só na mira dos bens internos.

Este é o princípio do início da decomposição de uma sociedade. Dedicar-se a uma actividade só na mira de bens externos, fama, dinheiro ou poder (o trabalho é hoje, para muitos, apenas a ocasião de receber dinheiro), passando mesmo por cima dos códigos éticos que a deveriam reger, pensados para garantir os seus bens internos, é hoje norma comum e porta aberta à corrupção, coisa de que a gente até já nem se admira muito que aconteça como acontece.

De facto, a opinião pública já só fala de corrupção quando um político se apropria dos fundos públicos para seu uso próprio ou assina um determinado contrato a troco de uma recompensa pessoal. Mas a verdadeira corrupção não começa aí; apenas chegou, aí, na sua lógica, ao passo final.

A Liturgia dos domingos que celebramos é particularmente incisiva, nomeadamente pela boca do profeta Amós, eventualmente o mais violento de todo o Antigo Testamento.

Este homem exerceu o seu ministério profético no século VIII aC, época humanamente gloriosa em que o Reino do Norte se expandiu e engrandeceu (depois de Salomão o Povo tinha sido dividido em dois reinos, o do Norte ou Israel, e Judá ou do Sul), mas onde o luxo dos grandes era um insulto à miséria dos oprimidos e o esplendor do culto escondia a ausência de uma verdadeira religião. Com uma rudeza ingénua mas duríssima, o profeta condenou em nome de Deus a vida corrompida das cidades, a injustiça social e a falsa segurança procurada em ritos religiosos de que o espírito estava ausente. IAVÉ, Senhor do Mundo, que pune todas as nações, castigará duramente Israel em nome de uma grande justiça moral – ameaça o profeta. O dia de IAVÉ será de trevas e não de luz, a sua vingança será terrível. Ao falar assim, Amós está certamente a pensar na Assíria, o colosso vizinho, sempre à espreita de poder devorar o pequeno reino do Norte. Mas entreabre uma pequena janela de esperança a um pequeno resto de fiéis a IAVÉ.

Este ensinamento sobre o Deus de Israel – IAVÉ -, Senhor universal e todo poderoso, defensor da justiça e do pobre, é um dos pontos firmes da religião de Israel.

Amós de nada se inibe para o apresentar. Utiliza uma linguagem que parece de algum modo dirigida ao nosso próprio mundo. Já então os dias eram poucos para o negócio! O afã dos seus contemporâneos pelo terreno, pelo dinheiro e pelo material fazia-os sofrer particularmente nos sábados e noutros dias de festa (religiosa) pois que, por imposição da Lei, tinham de suspender nesses dias as suas actividades. Dizendo doutro modo, os contemporâneos de Amós lamentavam o facto de as superfícies comerciais não poderem abrir ao domingo. Sempre era mais um diita pró negócio!

Passados esses dias, no entanto, teoricamente dedicados ao Senhor, recomeçavam as medidas diminuídas, os preços aumentados, os pesos roubados. A cesta de compras do pobre era então presa das mais injustas violações. Os abusos chegavam a extremos desumanos. O pobre e o necessitado, poderemos falar do trabalhador de hoje?, tinham que vender a sua liberdade, o seu próprio constitutivo de Pessoa, aquilo em que nem Deus ousa tocar, para poderem subsistir.

É difícil dar uma imagem mais capaz e com maior valentia do pecado social de todos os tempos.

“Escutai bem, vós que espezinhais o pobre
e quereis eliminar os humildes da terra” (Am 8,4).

Mas Deus ama particularmente este pobre espezinhado pela injustiça. Jesus Cristo é mesmo a visibilidade de um amor gratuito e preferencial do nosso Deus pelos mais pobres e marginalizados, que ele acolhe com escândalo dos bem pensantes e poderosos e com quem convive e fala.

É para responder aos pensamentos injustos e iníquos dos fariseus e escribas, mas sobretudo para introduzir e ensinar os seus discípulos a caminhar na religião nova, que no Evangelho Jesus fala – sobretudo nas parábolas da ovelha e da moeda perdidas (domingo passado) – do coração cheio de misericórdia e da compaixão de um Deus que acolhe com simplicidade e se alegra quando algum “pobre” (pecador) se encontra com ele.

Arlindo de Magalhães, 22 de setembro de 2019