Quando, em 1925, o Papa Pio XI instituiu esta festa de Cristo Rei, que, com Pio XII, seria colocada no último domingo do ano litúrgico, ele quis reagir deste modo, por um lado, contra uma mentalidade que, ao tempo, pretendia confinar o religioso e o sagrado à esfera do rigorosamente individual e, por outro, contra os excessos do clericalismo, que defendia o predomínio do religioso sobre a justa autonomia das realidades terrestres.
Era, no fundo, a velha questão das relações Igreja/Mundo.
E a disputa estava bem acesa: a Igreja (Pio IX e Pio X sobretudo) contra o Mundo, e o Mundo contra a Igreja (socialismos, marxismos, classe operária, etc.); Leão XIII foi o primeiro que apelou pelo respeito para com o mundo e suas realidades, nomeadamente para com a “miséria imerecida” dos operários (a Revolução Industrial dava ainda passos que eram os primeiros). Muitos setores da Igreja puseram-se logo a rezar pela conversão do Papa! Um pouco o que acontece agora com o Papa Francisco.
Neste contexto, a criação da festa de Cristo Rei apareceu a uns como mais uma arma para defender a ordem antiga e recusar o mundo moderno (todos nos recordaremos bem dos tempos das “almas bravas de soldados” transportando bandeiras e cantando “clarins, vibrem clarins!”, um pouco por toda a parte mas sobretudo no México, com os tristemente célebres “guerrilheiros de Cristo Rei”!). Mas a verdade é que muitos cristãos, sinceramente desejosos duma reconciliação entre a Igreja e o Mundo, nunca tiveram grande devoção por esta festa.
De facto, ela é a celebração de uma ideia – celebração ideológica – de um título simbólico ou honorífico, que surgiu no referido contexto histórico e ideológico. Porque a verdadeira festa de Cristo Rei é a da Epifania. Nela, o Messias é apresentado como Rei e procurado pelos próprios reis pagãos. Aí se realizou a palavra do Profeta: “Levanta-te, Jerusalém, eis a tua Luz! A Glória do Senhor se levanta sobre ti” (Is 60,1).
No entanto, Jesus não era um político! A sua realeza era diferente. Ele era rei no sentido de servidor, porque o melhor, o verdadeiro rei é aquele que serve o seu povo. E o seu serviço resume-se nisto: que, nele e por ele, todo o homem tenha acesso definitivo a Deus, de quem se tinha ou estava separado. Jesus é, portanto, o grande conciliador universal da Criação (Humanidade incluída) com Deus. E é desta missão (ou realeza) que a Igreja participa.
Só que, na concretização histórica desta atitude de serviço, a Igreja equivocou-se muitas vezes, caindo em contradições e pecados. E todas as realidades da vida humana, culturais, políticas, sociais e económicas, foram mundos em que a Hierarquia da Igreja quis ter uma última palavra, pois, sentindo-se a continuadora da missão de Cristo, pretendia que a sua ação se identificava com a do próprio Cristo. Era o regime de cristandade, e o Papa o senhor supremo duma Europa cristã.
Os inconvenientes do sistema ver-se-iam com o correr dos séculos. No interior da própria cristandade, cada vez se suportava menos a tutela da Igreja, sobretudo quando se começou a dizer a palavra liberdade. Até no exterior os povos resistiam, sempre que podiam, à pressão da civilização ocidental em que não se reviam e na qual se não exprimiam.
A história recente é bem mais conhecida: um mundo moderno que tenta furar o velho esquema com três palavras sagradas: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e um Antigo Regime que, apoiado na Igreja, tentava não cair. É a Revolução Francesa e a afirmação da Modernidade: uma Igreja assediada e defensiva, recusando toda a novidade, e só mais tarde capaz de entabular diálogo (Leão XIII, Pio XI e Pio XII).
Seja como for, depois da 2ª Guerra Mundial, João XXIII evitou uma guerra nuclear entre a América e a União Soviética, em Cuba, Paulo VI foi à ONU, com todo o mundo espantado, João Paulo II correu o mundo…, Francisco aproximou os EUA de Cuba e etc., e a Igreja tenta aproximar-se dos pobres, o que já acontece desde os finais do séc. XIX. Alguns cristãos — Bruto da Costa foi um deles — perceberam mesmo que “os principais factores explicativos da pobreza e da exclusão se devem procurar na sociedade” (Bruto da Costa, Exclusões sociais, p. 39).
Caberiam aqui muitas mais páginas de História, mas não é este o lugar de a reler no que diz respeito ao séc. XX e aos alvores do XXI. Calamos muita coisa até encontrar o Bataclan de há um ano, e daí para cá a gente já nem se lembra; agora é o que se passa na América, agora é o tempo de levantar muros, de Roma até Meca, atravessado o Mediterrâneo, e do Evangelho ao Corão…
De facto, a Igreja é chamada a ser a ponte entre a mundanidade do Mundo (desculpe-se a redundância!) e a realidade última do Reino; a Igreja é chamada a ser, para este mundo, nada mais que um sacramento, isto é, um sinal concreto duma realidade nova mas futura, no seio de um mundo concreto que é o nosso, o de cada tempo, não hostilizando-o mas compreendendo-o e amando-o, isto se quer ser capaz de lhe anunciar esse mesmo futuro. E nós somos Um Povo a Caminho.
Dantes, a realeza era um Poder; a de Jesus entende-se como um serviço. Dantes, Cristo era Rei duma cristandade exterior; hoje, entende-se como Rei dos corações, mesmo dos que o não conhecem. Mas não é por isso que é menos Rei. Quantos não cristãos, quantos mesmo sem nunca terem ouvido o seu nome, amam e lutam verdadeiramente pelo seu Reino, sem o saberem!
“Eu sou Rei. Mas o meu Reino não é daqui. Todo aquele que é da verdade e dá testemunho dela escuta a minha voz” (Jo 18,36-37). É destes que Cristo é Rei.